Maria Amélia Mano
Vida inteira e meia e fim, feita de histórias que
atravessam, sujam, mancham deslizam, escorrem pelas mãos de Marias. Entre os
dedos.
Farinha de Maria Filó afinada em peneira de palha,
perdão, pó caído em gamela, miolo de pão de hóstia de capela de reza sofrida.
Desejo em segredo.
Tinta vermelha de Maria Sueli nua, louca, pincel e
êxtase antes do choque e da lobotomia, quando se tornou só sombra de si. E
hospício ficou sem sorriso e sem cor.
Carvão de Maria Amália feito lápis na mesa da
cozinha, sozinha, aprendendo palavra proibida, escrita, sonho de ser outra. Ler
poema longe, muito longe dali.
Cordas do violão de Maria Eliana cantando essas
feridas da vida, Margarida, essas feridas da vida, amarga vida. Vida que adoçou
só um tantinho mais.
Linha de Maria Ana bordando enxoval que guardou em
baú quando amor da vida fugiu no altar e, velhinha, pediu de lhe vestissem de
noiva. Foi velada virgem de véu e grinalda.
Remendos das roupas dos filhos de Maria Ema,
lavadas, batidas na pedra da beira do arroio de água fria. Varal cheio, cheiro
de vento, geada e correnteza nos babados.
Acetona, esmalte e vela acesa de Maria Diná no
batuque, festa de Iansã, dança, roda de saia, de renda, despacho, trabalho de
manicure a domicílio. Pra receber tudo só no fim do mês.
Colher de pau de Maria do Céu no tacho, cravo,
canela e rapa guardada pro neto de olho comprido. Porque aquele olho é que
fazia mais doce o doce, e a vida.
Comprimido de descer menstruação de Maria Ângela na
pensão do meretrício, ofício feito com vinho barato, chá de cidreira e
confissão na missa. Deus sabe o que faz.
Barro de Maria Flor fazendo pote pequeno de botar
água quente, pra parto de partir mundo ao meio, de parir novo choro e riso, em
casa. Esperança do céu e da terra.
Pó branco na narina de Maria Helena pra enlouquecer,
entorpecer, suportar medo, ser menos infeliz, esquecer história. É preciso
inventar mortes pra viver.
Gema de ovo pra canário na gaiola de Maria Isabela,
pra ficar mais bonito, mais amarelo, mais preso, como ela só, como ela, solitário.
E Maria nem sabia cantar.
Sementes de Maria de Jesus pra nascer ervas, asas,
versos, confissões, rotinas em jarro de mágoa, em canteiro de canto pra aguar.
Chuva que cai dos olhos.
Vida inteira e meia e fim, feita de farinha, desejo,
tinta, loucura, carvão, corda de violão, canção, linha, remendo, tambor, festa,
feitiço, colher de pau, rapa de doce, sangue, reza, morte, parto, barro, pó,
medo, gaiola, solidão, canto, canteiro, chuva e sementes. Entre os dedos.
Crônica para a Oficina Santa Sede – Circuito
Ilustração: Akiko Hoshino
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