18 julho 2019

GARGALHAR-SE AOS QUASE 70 COM DIREITO A CARTEIRO


Estela Márcia Rondina Scandola

Escrevo-te estas mal traçadas linhas
Meu amor
Porque veio a saudade visitar meu coração
Espero que desculpes os meus erros por favor
Nas frases desta carta que é uma prova de afeição

Saí da fisioterapia antes do meio dia e pensei: vou almoçar no restaurante de oito reaus.
(me encanta esse plural pluralizador de possibilidades do português)
Quando andava pela Joaquim Murtinho, atravessando a João Crippa dei seta e o cel tocou. Fiquei nervosíssima. Era o toque que eu tinha colocado praquele ser masculino que tanto me encantava e que resolveu ir prá Índia. Nada havia sido combinado entre nós e o longo beijo com o acoplar dos corpos no aeroporto disse muito e não disse nada.
Peguei o telefone, fiz correr o tal verdinho e disse alô. Dirigi uns 100 metros procurando estacionar. Só consegui na Praça do Migrante. Enquanto isso ele me dizia que tinha chegado bem e os primeiros encantamentos.
Conversamos pelo fone do face e percebi que o nosso desejo seguia. Era fácil o sol do outono e o telefone me colocar inteiramente acesa, quente. Não era preciso disfarçar porque uma mulher falando ao telefone está tudo certo (podia ser filhos, netos... ninguém lembra de amantes). Nessa região de Campo Grande não costumam roubar os carros, por enquanto. Então fiquei com o vidro a meia altura. Sol a pino e conversa  também.
Talvez tu não a leias, mas quem sabe até dará
Resposta imediata me chamando de meu bem
Porém o que me importa é confessar-te uma vez mais
Não sei amar na vida mais ninguém

Estava estacionada como manda o figurino e a única diferença era uma mulher que ao falar se mexia muito, às vezes ria e outras mordia os lábios... só isso!. Saí para o restaurante e encontrei as demais colegas do Conselho. Como falar de tesão em tempos de desmonte da democracia? É muita desgraceira que o prazer  ter lugar em encontros de feministas...parece tabu (acho que é ainda... sei lá!) Comemos e eu ainda ruborizada tinha no sol meu melhor amigo. Ele havia me queimado. Julho em Campo Grande, vento gelado e sol quente é a regra.
Passei o restante dos dias com a sensação que havia uma relação entre nós e nos falamos várias vezes. Combinei a hora da fisioterapia (que aqueles choquinhos servem muito pouco) e pelo SUS somos 6 para cada fisio... então, melhor conversar com alguém que já fala da vaca sagrada e dos cheiros.

Tanto tempo faz
Que li no teu olhar
A vida cor de rosa que eu sonhava

Quando levantei na véspera do aniversário com o interno do condomínio tocando ouvi uma maravilha: tem um registrado prá você aqui na recepção.
Vibrei... lembrei das nossas conversas, das emoções, dos nossos silêncios e comecei a imaginar mil possibilidades. Seriam flores silvestres? (ele sabe que não gosto de rosas). Seria uma carta? Um presente surpresa da Índia não seria... não daria tempo pro correio chegar... Ah, poderia ser aquele abajur que deliramos pensando em um quarto carmin? Ou a roupa pra usar sem as de baixo? Incensos de alfazema ou lima-limão?
Cinco segundos eram suficientes prá tantas possibilidades...
Perguntei ao porteiro: estou esperando demais um cartão do banco, é isso?
Boca seca, garganta seca, tudo curiosava... queria mesmo é que desse uma dica do que era...
E ele: acho que esse num tá esperando...
E guardo a impressão
De que já vi passar
Um ano sem te ver
Um ano sem te amar

Ah, o coração, a circulação, as pernas... tudo afeta! Coloquei a roupa sem as roupas, calcei as pregata (adoro as distintas e, se chamadas assim, melhor!) e fui pro elevador. Ufa! Só encontrei a convocação do condomínio prá assembleia da mensalidade e a instalação da energia solar... caraca, vai aumentar de novo, por doze meses, o valor... tô estrupiada. O homi da presidência f... com a aposentadoria... reajuste vai ser m...
Devaneio curto até o quarto andar onde entra Cida e seu cachorro. Lindo e delicado... o cheiro é de banho semanal. Que marca será que é? Falamos do condomínio e fico pensando que cada vez tem mais cachorro com quem mora só. Lá vem o registrado de novo e toma tudo: músculos, olhos, cabelos e as mãos suam em cascata...
Cumprimento o povo do hall (quando ficar mais velha acho que vou morar em térreo. Esse jeito de ficar nos elevadores no me gusta! sonho com uma vila...) e olho para a portaria e imagino que o vestido está tampando tudo...
O porteiro com riso fácil abre-se todo. Acho que é uma das pessoas que gosta desse jeito meu de ser.
Penso: é o registrado e o meu aniversário que ele está lembrando...
Olho todas as caixas que estão na portaria, os envelopes grandes, o buquê vermelho (tomara que não sejam para mim... será que o distinto esqueceu que não gosto e me enviou?)

Ao me apaixonar por ti não reparei
Que tu tiveste só entusiasmo

Ele me dá o caderno de protocolo e eu assino... não leio o enunciado. Olho para o porteiro e ele fecha o caderno. Paro e espero. Nada. Olho de novo incisivamente... e ele, me estende a mão e me entrega o envelope. É azul e foi enviado pela Agetran.
Ah se ainda tivesse os carteiros nas nossas portas... o entremeio da portaria dos edifícios parece que quer dominar o romantismo... esse romantismo que nos faz ridículas... mas como não o ser?

E para terminar amor assinarei
Do sempre sempre teu

Vou morar em algum lugar que tenha carteira à porta e ainda vamos ser amigas... (se for carteiro tudo bem...). Subi rindo para todas as mais velhas e mais novas. Os anos vividos ajudam muito em rir de si... busquei a música, cantei junto em meio a gargalhadas...
Os ridículos dos meus quase 70 vividos são libertadores!

A carta
Na melhor interpretação de Erasmo Carlos




  [Estela Márcia Rondina Scandola é (eternamente) convidada e publica no Rua Balsa das 10 sempre que quer]

8 comentários:

  1. Muito legal... me divirto com suas palavras e com suas emoções tão parecidas com as minhas...

    ResponderExcluir
  2. Você escreve com leveza, transmite nas entrelinhas sentimentos, quem te conhece sabe da sua leveza em ser ... Bjs

    ResponderExcluir
  3. Adorei....vi e senti tudo acontecendo....muito legal!!!

    ResponderExcluir
  4. Oi Estela, delícia passear pela sua escrita, é de uma leveza...
    Abç.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. é que o peso vai saindo em bolhas feitas de palavras... que bom que gosta dessa leveza!

      Excluir
  5. Amiga.tuas escritas nos abraça em singelas emoções ...te amoooo por demais pela pessoinha linda e abençoada que és...👏👏🙌🙌🌹🥰

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. precisamos nos alimentar de afetos! volta logooooooo

      Excluir

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog