09 julho 2019

NA CUMEEIRA


Maria Amélia Mano


Faz um tempo eu quis
Fazer uma canção
Pra você viver mais
John Ulhoa

Lembra, te escrevi poemas. Quando teu período fértil coincidia com minha lua cheia. Quando sonhamos jardins daqui do alto com borboletas pra perseguir, sombras pra agarrar, utopias pra abraçar. Quando nossos ruídos nas telhas desafiavam ventos, chuvas, granizos, quedas, latas, saltos mortais, finais felizes. Mas, sabes, minha comparsa de madrugadas, poemas não são promessas, não são permanências. São presenças, perdões, pedidos. E te peço que vá sem culpa. 

Não me olhe assim. Quando subo no telhado não é preparo, anúncio, ameaça. Isso é coisa de homens sãos, salvos e sórdidos que jamais terão nosso olhar na noite. Nossa noção de onde estamos. Nossa capacidade de cair de pé. Prefiro os loucos que perambulam conosco por ruas, esquinas, becos, bueiros, canos, carniças, cambalhotas, colares de cascas de laranja em espirais; varais no ar, quintais que nunca tivemos. Sinais de luta. Rituais de sobrevivência e liberdade.

Mas liberdade dói de vez em quando. Por essa dor imensa, vai. Será outra emoção, outro amor, mesmo que não seja o único, o nosso. Não perca essa chance. Nunca saberemos se essa é a primeira ou a sétima vida. Quem arrisca? Não quero teu risco, mas teu riso, tua rima brincando com novelo de lã verde como teus olhos em tapete felpudo azul; como esse céu que é meu teto eterno. Quero te ver em colo carinhoso, cuidado, cafuné. Quero que viva mais.

Ter casa, dono, nome não vai te tirar magia, mistério, sagrado. E estarei sempre aqui nessa nossa cumeeira que é baobá, torre e farol em mar de vidas solitárias. Estarei feito tempo suspenso e sustento, lento, momento e memória de salivas, lascívias, luxúrias, paixões e canções de se unhar, se lamber, se lambuzar e se secar. Feito leão sobre a rocha em alguma savana da Namíbia em noite de lua rosa. Estarei aqui. Não nos esqueça. Vai.

Texto para  a Oficina Santa Sede - Circuito

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