31 agosto 2019

O OUTRO SOU EU



Maria Emília Bottini


Essa semana estou incomodada e o que me incomoda vira crônica. Via de regra, minha escrita parte do que me afeta e não de datas marcadas pelo calendário. Não escrevo para dias comemorativos, não escrevo para o Papai Noel e para os Coelhos da Páscoa e muito menos para o dia das mães, dos pais ou da mulher. Tão pouco escrevo sob pressão ou sobre temas específicos, eles brotam no geral do cotidiano em que estou inserida.

Muitos pequenos eventos se fizeram presentes antes dessa crônica tornar-se escrita; estive atenta a esse assunto que foi se avolumando e tomou corpo.
Estava andando na rua e ouvi um pai falando, ao seu filho adolescente, que foi ao banco e tinha mais de quinze idosos na sua frente para serem atendidos, “parece que não tinham o que fazer”. Esse senhor falou com certa indignação por este fato. Ele estava no banco também não tinha o que fazer? Por que entendemos que pessoas idosas não podem estar em filas de banco e serem atendidas já que este lugar não tem placa indicativa de idade, aliás, em poucos lugares existem restrições de idade.
Detesto ir ao banco, mas essa semana tive que ir. Na entrada, havia três pessoas atendendo e uma fila quilométrica para retirar uma senha para adentrar ao banco. Uns vinte e cinco minutos se passaram até conseguir o tal papel para seguir em frente. A tal fila não tinha diferenciação de idade, o que lamentei. Como assim? Havia muitas pessoas esperando e algumas eram idosas que não reclamaram, mas por que nos tornamos tão insensíveis? Por que o fato de envelhecer tornou-se banalizado? Ao questionar, uma das atendentes respondeu “não depende de nós”, simples assim. De quem depende?  Por que estamos esperando que “alguém” resolva o que podemos fazer? Afinal, as pessoas mudam e não prédios. Provavelmente continuarei indo ao banco com fila quilométrica porque pessoas não querem mudar o mínimo possível. Talvez não saibam que em breve estarão em filas a sentir dores nos joelhos e nos quadris.
Em um grupo relativamente pequeno estou aguardando ser atendida e ouço o relato de alguém reclamando da sogra, que estava no supermercado e tirava suas compras do carrinho e substituía por produtos de menores preços e que guarda copinhos de iogurte, sentindo vontade de fazer uma limpa nas prateleiras. Pensei naquele momento, não sabemos como vamos envelhecer e o que vamos desejar guardar e que manias vamos carregar para enfrentar o viver.
Também me impressiona que se vá ao supermercado com sogras. Por que não ir sozinho e dar conta de suas compras sem a interferência de outros? Ou mesmo por que não falar que se deseja tais produtos e que não coincidem com os da sogra? Quanto aos potes, qual o problema de guardá-los? Não temos ideia do que eles significam e simbolizam no contexto daquela vida. Alguém já perguntou? Posso supor que as duas cenas são muito semelhantes: culto à falta, à escassez, às vezes alimentado por uma vida forjada na dureza do não ter. Acumulamos para que não nos falte em breve, para aquele momento em que não vamos ter dinheiro para as compras e os potes. Quem guarda o que não precisa tem o que não precisa diz o dito popular. Mas na cabeça dessa senhora quem guarda o que não precisa tem o que precisa, se precisar.
Fui tomar um chá da tarde, adoro essa expressão e minha colega e amiga me conta que sua mãe está com 86 anos. Estamos nos acostumando a ouvir que pessoas estão chegando à quarta-idade. Até bem pouco tempo atrás a média de vida da população era de 40 anos.  Relata-me que não sabe como lidar com isso e que está interessada em saber mais sobre envelhecimento e luto. A quarta idade é novidade para todos nós que teremos muitas chances de termos idades avançadas em nossa velhice, se tivermos uma dose de sorte e genética para isso.
Uma idosa foi a uma loja comprar roupas e a vendedora sentiu aquele cheiro desagradável e forte de urina, não falamos disso, mas depois de uma certa idade os esfíncteres não funcionam tão bem quanto desejaríamos. Há cirurgias para a correção, mas elas custam dinheiro e tempo. Como tocar neste assunto com alguém que vive solitariamente e tem a orfandade como irmã?
Em sala de aula alguns alunos questionam a sexualidade de idosos. Pareceu-me que motivados pelo preconceito de que nessa fase do desenvolvimento chinelos, pijamas e casa é o lugar indicado para estarem. Sexualidade é só para jovens? Que preconceito é esse? Evidente que campanhas de orientação sexual são importantes, afinal, sexualidade deve ser vivida com responsabilidade, visto os dados crescentes da AIDS.
O envelhecimento do outro é o nosso, o idoso é um espelho que desejamos virar, afastar, deixar bem longe. Precisamos amadurecer nossas percepções para ver que o outro sou eu a denunciar que o tempo não tem pausa.


[Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados] 



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