Maria Emília Bottini
Sou professora tem algum tempo, talvez
desde quando eu brincava de escolinha com minhas bonecas de pano. Eu gosto de
usar as artes como cinema, música, poesia, fotografia em minhas aulas como possibilidades
de afetar um pouco os alunos para que reflitam a vida para além de conteúdos,
por vezes burocráticos e burocratizados.
Gostaria de não precisar dar uma nota,
numerar o que aprendem, mas isso a educação ainda não consegue conceber e não
tenho autonomia para tal, então, sigo as regras, não as discuto.
Dia desses estava em sala de aula a me
dedicar a apresentar a psicologia e suas áreas de atuação para alguns alunos de
graduação atentos. Iniciei a aula explanando minha forma de ser e como seria a
organização da disciplina, os alunos se apresentaram e eu também, lemos a
ementa e assinamos ata.
Após breve relato inicial a aula começou,
afinal também temos conteúdos programáticos a seguir, o mínimo que podemos dar
em algumas aulas, nem sempre se consegue, pois há feriados no meio do caminho.
Aliás o país gosta de um feriado. Estamos tão bem que podemos nos dar ao luxo
de descansar da fadiga de sermos brasileiros e por vezes até nos orgulhamos de
não desistir nunca. Pensar no futuro? Bem, no futuro estaremos todos mortos.
Precisava inserir os alunos no mundo da
psicologia e pensei que a melhor forma de fazer isso seria usando a arte das imagens,
que tanto amo e me fazem bem. Ao preparar aulas eu as preparo para mim
primeiramente, e elas comtemplam o que amo.
Não por acaso encontrei a imagem que ilustra
essa crônica: pareceu-me tão simbólica. Aprendi com um jovem designer que as
imagens devem ser dinâmicas, inteligentes e simples. Pareceu-me que ela
correspondia aos seus conceitos. Capturei-a e coloquei-a no arquivo em que
estava trabalhando.
Eu explanava sobre trabalho do psicólogo e
mencionei a imagem que a meu ver ilustrava de forma artística esse ofício que
toca a alma e os sentimentos do outro. O psicólogo tem como tarefa puxar fios
emaranhados na cabeça de quem procura alívio para seu sofrimento emocional, seja
em qual fase do desenvolvimento esteja, esse é o trabalho da terapia.
Expliquei também que a decisão de puxar o
fio é sempre do paciente, no meio de tantos fios emaranhados é importante
iniciar por um, e este vai puxando outros e outros. Citei exemplos de onde o
psicólogo atua como em empresas, prefeituras, hospitais, etc...
Trabalhei muito tempo com psicologia
social com mulheres e crianças vítimas de violência, evidente que os exemplos
de violência sexual vieram à tona, apesar de muitos anos já terem se passado.
Eu deixei a área social, mas a violência sexual, os abusos, eles nunca me deixaram,
alguns me marcaram profundamente.
Deu-me a impressão que os alunos estavam
distantes, sem uma conexão comigo ou com o eu que estava falando, mas ledo
engano, pois ouço ao longe uma voz que diz: “isso nunca passa”. Eu olho para a aluna e questiono: “como assim?”. A aluna responde: “Isso aconteceu comigo e eu lembro todo dia”.
Suas lágrimas verteram da alma ferida e molharam seu rosto sem controle. Lágrimas
represadas se soltam. Chorou a dor de ter sido violada. Chorou diante de uma
turma inteira a trazer o nó que vive em sua garganta a atrapalhar sua vida
afetiva e sexual. Chorou. Chorou. O
grupo de alunos silenciou, e eu também silenciei a imaginar o que dizer.
Breves segundos de silêncio respeitoso
foram quebrados por mim que sinalizei que a dor pode passar quando falamos
dela, quando desenhamos, quando escrevemos, quando gritamos, afinal a arte
também faz parte dos atendimentos que realizo.
Reforcei a ela que era preciso encontrar a
sua arte para colocar ordem no caos e resignificar a dor do vivido. É assim que
isso poderá vir à tona e ser compreendido, administrado e colocado para fora,
esse é o trabalho terapêutico que o psicólogo pode ajudar a realizar, mas
outras possibilidades também podem ajudar para que a dor de dentro saia para
fora, aliviando o viver.
Aprendi nessa aula a lição de que quando
puxamos um fio não sabemos o que ele vai trazer. Naquela manhã provoquei, a
partir de uma imagem e da fala, que a aluna puxasse seu fio e ele trouxe coisas
de um lugar escuro, assombrado e malcheiroso. É preciso encontrar forças para
continuar puxando o fio de onde ele vier, pois dessa forma poderá proporcionar
limpeza, ordem, cor e alívio. Caso contrário o fio voltará para o emaranhado em
que estava e continuará fazendo mais estragos do que já provocou.
Ser psicólogo/professor é por vezes uma
tarefa de prazer e dor, pois podemos puxar fios jamais imaginados. É preciso
uma dose de coragem para puxar fios que dão o nó na vida e procurar ajuda
profissional, para abrir mão da dor de ser vítima para tornar-se sobrevivente de
sua própria história, que nem sempre é bonita.
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