AGORA É BOLSONARO
Cajazeiras. Ernande, 2019.
Ernande Valentin do Prado
Direito básico de ir e vir
Arlindo,
indignado, bateu no vidro do motorista e disse:
—
O senhor deveria respeitar a faixa de pedestre.
Maldonado,
motorista da Land Rover esverdeada parada em cima da faixa, ficou mais
indignado do que o Arlindo. Afinal, como aquele macaco tinha a ousadia de se
achar um pedestre com direito a faixa?
Era
o que pensava, pouco antes de fazer o vidro janela deslizar elegantemente e
esticar o braço para fora. Na mão segurava uma pistola automática prateada que
reluziu ao sol das três da tarde.
Atirou
três vezes para o alto e gritou, vendo Arlindo e outras pessoas, sair em
disparada atropelando-se uns aos outros:
—
Não gostou, negão filho-da-puta, volta pra África, que agora é Brasil acima de
tudo e Deus acima de todos.
Tapioca de banana e queijo
Será
que fazer tapioca é coisa de crente?
Pensou
ele, olhando as tapiocarias uma ao lado da outra: Tapioca da Irmã Jezebel,
Tapioca do Irmão Abraão, Tapioca do Irmão Jesiel.
Entrou
na que tinha o adesivo: pague com cartão.
—
Uma tapioca de queijo com banana, por favor,
disse
ele, sem disfarçar certa antipatia gratuita com a atendente.
As
moças no balcão tinham cabelos longos, vestiam-se com roupas típicas de
crentes, segundo seu olhar acusador. A TV, no meio do salão, estava ligada na
Record. Passava a reprise de uma dessas ridículas novelas bíblicas. O que não
era nenhum preconceito com os crentes, segundo ele, já que odiava todo tipo de
novela, portanto, não se tratava de preconceito, não ao menos com essas
crentes. Só não gostava de novelas, principalmente se fosse da TV Record, que é
um canal de crente.
—
Tem banheiro?
—
Nos fundos.
Respondeu
a moça, sem olhar diretamente para ele. Talvez para não ver o Eddie, o
simpático e demoníaco zumbi mascote do Iron Maiden, estampado em sua camiseta
preta.
Da
porta do banheiro olhou para os fundos do estabelecimento e viu uma placa:
minha família vota Brasil acima de tudo e Deus acima de todos.
—
Putaquepariucaralho.
Pensou
ele, ao ver aquela placa abominável.
—
Tem suco de laranja?
—
Tem, sim senhor.
—
É só laranja mesmo ou coloca água para render mais?
Perguntou
ele, desconfiado da honestidade da moça, afinal, seu modelo de crente era o
Pastor Silas Malafaia, entre outros pregadores da teologia da prosperidade.
—
Só laranja. Quer um?
—
É sem água, tem certeza disso?
Disse
ele, sem disfarçar a pouca fé na resposta da moça, que ainda não o olhava de
cabeça erguida. Porém, deixou claro que essa descrença não era preconceito com crentes,
só não confiava em ninguém que não lhe olhava de cabeça erguida e,
principalmente, em comerciante, sobretudo do ramo de suco de laranja.
—
Sim, só laranja.
—
Então faz um.
—
Quer açúcar e gelo?
—
Açúcar, gelo?
Será
que essa crente sabe que mentir é pecado?
Pensou
ele, já arrependido de ter entrado na Tapiocaria do Irmão Jesiel.
Calçada privatizada
—
De uns tempos para cá, ficou impossível andar
pelas calçadas…
Pensava Leandro, enquanto caminhava observando o manobrista estacionar o
carro em cima da calçada, em frente a loja de carros usados.
Para passar em frente a loja precisava andar pela rua, disputando espaço
com os carros em alta velocidade.
Seu primeiro pensamento foi riscar o carro, como vingança pelo abuso.
Não teve coragem, achou que alguém poderia ver. Então, decidiu protestar com o manobrista:
—
vai deixar o carro atrapalhando a passagem dos
pedestres?
Disse ele, em tom cordial para não comprar briga.
—
São ordens, meu amigo, só estou cumprindo
ordens. Quer falar com meu patrão?
—
Quero sim...
Disse Leandro, decidido.
O patrão, um homem alto, quase dois metros de altura, usava uma
bota preta até os joelhos, chapéu de couro e ostentava um bigode grosso, muito
preto, visivelmente pintado. Chegou bem perto de Leandro, quase o empurrando da
calçada. Olhou para o empregado e perguntou, desdenhoso:
—
É esse viadinho com camisa de comunista que quer
falar comigo?
—
Esse mesmo,
disse o empregado, meio constrangido, meio achando graça.
O homem gigante levantou a barra da camisa, de modo que pudesse expor o
cabo de seu revólver e disse em tom ameaçador:
—
O que você quer?
—
O senhor não tem o direito de estacionar seus
carros em cima da calçada, isso atrapalha a livre circulação das pessoas,
—
não tenho direito,
repetiu o homem, fixando seu olhar em Leandro ao mesmo tempo em que o
empurrava para fora da calçada.
—
Direito é o caralho, viadinho comunista. Quer
seus direitos vai cobrar no cu da sua mãe.
Virou as costas e entrou na loja gritando:
—
Úuuuuraaaaaaa, agora é Bolsonaro.
Tem um tempo para fala de Cristo?
Acordou com as palmas no portão às sete e trinta da manhã de domingo.
— Caralho.
Pensou irritado e virou-se para o lado, acreditando que se fingisse não
ter ouvido, desistiriam. Não desistiram. Ainda ficaram mais intensas as palmas.
Levantou-se mais irritado ainda e caminhou gritando:
— Já vou, caralho. Vai tiraropaidaforca? Putaqueopariu.
Dá janela, olhou discretamente a calçada e viu um negão em pé com uma bíblia
embaixo do braço.
Retornou ao quarto, pegou o ferro, voltou, abriu a janela e gritou o
mais alto que pôde:
— Vai acordar teu pai, negão comunista filhodaputa,
e deu três tiros para cima, gritando:
— agora é Bolsonaro, seus escrotos do caralho.
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