Eymard Mourão Vasconcelos
junho de 1992
junho de 1992
Mudei há pouco para
Belo Horizonte, para fazer meu doutorado. Vim de João Pessoa, onde morava bem
junto da praia de Tambaú. Lá, o contato frequente com o mar era algo central em
minha vida. Aqui, no início, senti o vazio de um espaço de relaxamento e
meditação. Mas há um mês, descobri a pista que contorna o estádio do Mineirão
como um local relaxante para correr e malhar, que venho tentando incluir na
minha rotina semanal. Duas vezes por semana tenho aula ali perto.
Trancando o carro e
vestindo o calção, já começo a me desligar dos fatos recentes. Inicia-se o
ritual. Correndo de olhos semifechados, sentindo a brisa fria do inverno, que
se aproxima, bater no rosto, ouvindo o agito dos pássaros nas árvores ao longo
da pista de corrida, deixando o jogo de luzes, cores e sombras brincarem com a
visão, minha alma vai aos poucos se afastando das urgências e tormentos. A
corrida não tem pressa. O cansaço, que vai aos poucos surgindo, vai fazendo
ascender à minha consciência a presença do meu corpo. O prazer da musculatura
solta, exigida e vencendo as barreiras da distância, me anima.
A repetição
cadenciada das passadas ajuda a distanciar meu pensamento das preocupações mais
imediatas, que vão aos poucos se despregando e caindo ao longo da pista,
naquele sacolejo cadenciado. A respiração ofegante vai aos poucos me renovando
com o ar puro e frio do parque.
Às
vezes, os pensamentos e as preocupações me assaltam novamente. Elas vão
chegando devagarzinho, ocupando espaços silenciosamente. Vêm douradas de
justificativas racionais, afinal há decisões importantes a serem tomadas. Por
que não aproveitar este momento de solidão para decidir? Mas intuitivamente fui
descobrindo que o caminho não é por aí. Deliberadamente afasto os pensamentos
que poluem, buscando construir o branco em minha mente. O som das buzinas
ressoa longínquo, a variedade de tonalidades do verde nas folhagens das árvores
me encanta. A sensação de pertencer a um Cosmo, vibrante e infinitamente maior
que os meus problemas, vai me invadindo.
Paro
de correr. Escolho um recanto. Faço então algumas ginásticas de alongamento.
Estirando o corpo lentamente, parecem se romper restos da couraça que me tolhe.
O corpo se espicha tentando alcançar o horizonte. Isto dá prazer. A ginástica
ajuda ainda justificar, aos poucos transeuntes que por ali passam, a minha
presença entre as arvores do parque do Mineirão. A vergonha do julgamento dos
outros para a minha atitude pouco usual é um dos apegos ao império do mundo
imediato que custam a sumir.
Outro apego
renitente é a sexualidade às meninas que eventualmente passam correndo. A
carência me empurra para o impulso de não querer deixar escapar uma
oportunidade paquerativa. Mas mais forte que esses imaginados encontros
fortuitos é o encontro comigo e o Cosmo que, cada vez mais, consigo acessar. É
a força da beleza da natureza presente que me salva da submersão no emaranhado
de pensamentos embolados entre si.
A admiração à
natureza silencia o burburinho dos pensamentos. Em meio esse vai e vem de
relaxamentos e retornos ao mundo imediato, muitas vezes, consigo avançar em
direção à integração com algo que me vem, parece, das profundezas do meu
interior e de algo que está além da visão direta daquilo que me cerca. Na
calma, no encantamento e entre pequenos ruídos e movimentos das folhas, dos
pássaros e das formigas, sussurram intuições vagas e aparentemente imprecisas,
mas carregadas de uma força que me surpreende. Consigo ir além do repouso e da
distração com os detalhes e movimentos daquele pedacinho de mundo. Sem pressa,
angústias primeiras se apresentam e vão sendo iluminadas pela livre associação
de idéias e percepções, num clima que não é mágico porque é simples, mas é algo
que fica além das explicações. Iluminado pela percepção de ser integrante desse
Universo, vou lentamente ruminando minha vida e refazendo meus conceitos
Vem me angustiando
muito a situação do meu casamento. A vivência da insatisfação, o dilema sobre o
caminho a ser tomado e a pressa pela percepção de que o tempo escorre entre os
dedos da vida têm deixado a minha cabeça constantemente atormentada. Nessa
situação fui, um dia, correr no Mineirão. Foi difícil conseguir afugentar os
pensamentos querendo trazer de forma insistente uma reflexão conclusiva sobre o
casório. Mas correndo, cansando e sendo impactado pela força de encantamento
daquele pedacinho do Universo, fui aos poucos relaxando.
Foi uma das
primeiras vezes em que me animei a parar a fim de aprofundar aquela experiência
de integração com a natureza. Escolhi a sombra de uma amendoeira cuja folhagem
começava a adquirir uma tonalidade vermelha diante do distanciamento do verão.
Acabei por sentar numa trilha que marcava o gramado ralo daquele sombreado.
Ali, a cada momento era surpreendido pela beleza de um pequeno detalhe da
paisagem: a cor verde dos novos brotos da mangueira situada bem na frente, o
perfil das montanhas no horizonte interrompido pela silhueta de prédios recém
construídos, o trabalho ordeiro do formigueiro próximo, os movimentos
desconfiados do pássaro cor de terra, que me observava.
O que os meus
problemas e o meu casamento representam neste Cosmo? Muita pouca coisa com
certeza. Mas uma "pouca coisa" central para mim. Mas será que mais
central do que a totalidade grandiosa que me envolve cuja percepção estava
apenas intuindo pelo contato com aquele pedacinho de natureza? Não estaria
invertendo a centralidade de minha vida? Estas ideias vinham lentamente
enquanto observava. Os ruídos da civilização chegavam em sonoridades que
combinavam e brincavam com os sons próximos.
Fiquei embevecido
no prazer de perceber a minha cidade, a partir daquele cantinho. De repente sou
surpreendido por um fedor que me chegou ao nariz trazido pela mudança de
direção do vento. Foi uma sensação fugaz, mas que me deixou atento. Procuro e
descubro, há menos de 2 metros, um resto de bosta rala e ressecada com várias
moscas ao redor. Será de gente? Tenho um ímpeto de me levantar e ir embora, mas
o vento retorna a sua antiga direção e o fedor desaparece. Um passarinho se
aproximou e cisca o chão. No silêncio que faço para não o espantar, sou
envolvido novamente pelo sentimento de admiração à vida espiada daquele
recanto.
O vento traz mais
algumas vezes o fedor de forma passageira. Mas porque abandonar o meu cantinho
se o resto está tão bonito? Descubro outra cagada rala ressecada, meio metro
mais distante, um pouco escondida entre a grama. Apesar do mal cheiro ocasional,
começo achar interessante aquela situação. Reparo até no tom do verde da mosca
que ali se alimenta.
O passarinho, volta
e meia, me distrai e leva minha atenção para outros detalhes da redondeza. O
tempo passa e sinto que preciso ir embora. Fico admirado com o relaxamento
conseguido. Eu estava tão tenso e deprimido com os problemas do casamento! Me
ocorre: se alguém chegasse e me visse ali sentado perto de dois amontoados de
bosta ressecados, acharia esquisito. Mas foi tão bom ter estado ali! Foi bom
não pela bosta que na verdade me incomodou, mas pelo restante. A bosta é uma
bosta, mas sua presença não pode obscurecer o que existe envolta. Será que os
problemas do meu casamento não estavam significando o mesmo para o restante de
minha vida?
Esta percepção me
calou fundo, pois não era apenas uma reflexão teórica: era uma intuição, um
sentimento forte surgido num momento especial. Andando, fui, tocado pelo ânimo
de me sentir integrante do imenso Cosmo, relendo minha vida com outro olhar.
Havia muita coisa rica e dinâmica acontecendo comigo. Os problemas do casamento
existem, são sérios e têm que ser resolvidos. Eles serão resolvidos quando
tiver clareza e condições. Contanto que eu não me atole neles. O céu estava tão
suavemente azul, que quando notei estava correndo, brincando com a sensação de
calor, vindo do sol batendo no meu rosto, debatendo com a frieza da brisa que
eu procurava aumentar acelerando minhas passadas.
Eu sorria.
[Eymard Mourão Vasconcelos publica no Rua Balsa das
10 quando surge inspiração]
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