13 outubro 2019

A BOSTA SECA E O PROBLEMA QUE ANGUSTIA

Eymard Mourão Vasconcelos
junho de 1992

Mudei há pouco para Belo Horizonte, para fazer meu doutorado. Vim de João Pessoa, onde morava bem junto da praia de Tambaú. Lá, o contato frequente com o mar era algo central em minha vida. Aqui, no início, senti o vazio de um espaço de relaxamento e meditação. Mas há um mês, descobri a pista que contorna o estádio do Mineirão como um local relaxante para correr e malhar, que venho tentando incluir na minha rotina semanal. Duas vezes por semana tenho aula ali perto.
Trancando o carro e vestindo o calção, já começo a me desligar dos fatos recentes. Inicia-se o ritual. Correndo de olhos semifechados, sentindo a brisa fria do inverno, que se aproxima, bater no rosto, ouvindo o agito dos pássaros nas árvores ao longo da pista de corrida, deixando o jogo de luzes, cores e sombras brincarem com a visão, minha alma vai aos poucos se afastando das urgências e tormentos. A corrida não tem pressa. O cansaço, que vai aos poucos surgindo, vai fazendo ascender à minha consciência a presença do meu corpo. O prazer da musculatura solta, exigida e vencendo as barreiras da distância, me anima.
A repetição cadenciada das passadas ajuda a distanciar meu pensamento das preocupações mais imediatas, que vão aos poucos se despregando e caindo ao longo da pista, naquele sacolejo cadenciado. A respiração ofegante vai aos poucos me renovando com o ar puro e frio do parque.
      Às vezes, os pensamentos e as preocupações me assaltam novamente. Elas vão chegando devagarzinho, ocupando espaços silenciosamente. Vêm douradas de justificativas racionais, afinal há decisões importantes a serem tomadas. Por que não aproveitar este momento de solidão para decidir? Mas intuitivamente fui descobrindo que o caminho não é por aí. Deliberadamente afasto os pensamentos que poluem, buscando construir o branco em minha mente. O som das buzinas ressoa longínquo, a variedade de tonalidades do verde nas folhagens das árvores me encanta. A sensação de pertencer a um Cosmo, vibrante e infinitamente maior que os meus problemas, vai me invadindo.
       Paro de correr. Escolho um recanto. Faço então algumas ginásticas de alongamento. Estirando o corpo lentamente, parecem se romper restos da couraça que me tolhe. O corpo se espicha tentando alcançar o horizonte. Isto dá prazer. A ginástica ajuda ainda justificar, aos poucos transeuntes que por ali passam, a minha presença entre as arvores do parque do Mineirão. A vergonha do julgamento dos outros para a minha atitude pouco usual é um dos apegos ao império do mundo imediato que custam a sumir.
Outro apego renitente é a sexualidade às meninas que eventualmente passam correndo. A carência me empurra para o impulso de não querer deixar escapar uma oportunidade paquerativa. Mas mais forte que esses imaginados encontros fortuitos é o encontro comigo e o Cosmo que, cada vez mais, consigo acessar. É a força da beleza da natureza presente que me salva da submersão no emaranhado de pensamentos embolados entre si.
A admiração à natureza silencia o burburinho dos pensamentos. Em meio esse vai e vem de relaxamentos e retornos ao mundo imediato, muitas vezes, consigo avançar em direção à integração com algo que me vem, parece, das profundezas do meu interior e de algo que está além da visão direta daquilo que me cerca. Na calma, no encantamento e entre pequenos ruídos e movimentos das folhas, dos pássaros e das formigas, sussurram intuições vagas e aparentemente imprecisas, mas carregadas de uma força que me surpreende. Consigo ir além do repouso e da distração com os detalhes e movimentos daquele pedacinho de mundo. Sem pressa, angústias primeiras se apresentam e vão sendo iluminadas pela livre associação de idéias e percepções, num clima que não é mágico porque é simples, mas é algo que fica além das explicações. Iluminado pela percepção de ser integrante desse Universo, vou lentamente ruminando minha vida e refazendo meus conceitos
Vem me angustiando muito a situação do meu casamento. A vivência da insatisfação, o dilema sobre o caminho a ser tomado e a pressa pela percepção de que o tempo escorre entre os dedos da vida têm deixado a minha cabeça constantemente atormentada. Nessa situação fui, um dia, correr no Mineirão. Foi difícil conseguir afugentar os pensamentos querendo trazer de forma insistente uma reflexão conclusiva sobre o casório. Mas correndo, cansando e sendo impactado pela força de encantamento daquele pedacinho do Universo, fui aos poucos relaxando.
Foi uma das primeiras vezes em que me animei a parar a fim de aprofundar aquela experiência de integração com a natureza. Escolhi a sombra de uma amendoeira cuja folhagem começava a adquirir uma tonalidade vermelha diante do distanciamento do verão. Acabei por sentar numa trilha que marcava o gramado ralo daquele sombreado. Ali, a cada momento era surpreendido pela beleza de um pequeno detalhe da paisagem: a cor verde dos novos brotos da mangueira situada bem na frente, o perfil das montanhas no horizonte interrompido pela silhueta de prédios recém construídos, o trabalho ordeiro do formigueiro próximo, os movimentos desconfiados do pássaro cor de terra, que me observava.
O que os meus problemas e o meu casamento representam neste Cosmo? Muita pouca coisa com certeza. Mas uma "pouca coisa" central para mim. Mas será que mais central do que a totalidade grandiosa que me envolve cuja percepção estava apenas intuindo pelo contato com aquele pedacinho de natureza? Não estaria invertendo a centralidade de minha vida? Estas ideias vinham lentamente enquanto observava. Os ruídos da civilização chegavam em sonoridades que combinavam e brincavam com os sons próximos.
Fiquei embevecido no prazer de perceber a minha cidade, a partir daquele cantinho. De repente sou surpreendido por um fedor que me chegou ao nariz trazido pela mudança de direção do vento. Foi uma sensação fugaz, mas que me deixou atento. Procuro e descubro, há menos de 2 metros, um resto de bosta rala e ressecada com várias moscas ao redor. Será de gente? Tenho um ímpeto de me levantar e ir embora, mas o vento retorna a sua antiga direção e o fedor desaparece. Um passarinho se aproximou e cisca o chão. No silêncio que faço para não o espantar, sou envolvido novamente pelo sentimento de admiração à vida espiada daquele recanto.
O vento traz mais algumas vezes o fedor de forma passageira. Mas porque abandonar o meu cantinho se o resto está tão bonito? Descubro outra cagada rala ressecada, meio metro mais distante, um pouco escondida entre a grama. Apesar do mal cheiro ocasional, começo achar interessante aquela situação. Reparo até no tom do verde da mosca que ali se alimenta.
O passarinho, volta e meia, me distrai e leva minha atenção para outros detalhes da redondeza. O tempo passa e sinto que preciso ir embora. Fico admirado com o relaxamento conseguido. Eu estava tão tenso e deprimido com os problemas do casamento! Me ocorre: se alguém chegasse e me visse ali sentado perto de dois amontoados de bosta ressecados, acharia esquisito. Mas foi tão bom ter estado ali! Foi bom não pela bosta que na verdade me incomodou, mas pelo restante. A bosta é uma bosta, mas sua presença não pode obscurecer o que existe envolta. Será que os problemas do meu casamento não estavam significando o mesmo para o restante de minha vida?
Esta percepção me calou fundo, pois não era apenas uma reflexão teórica: era uma intuição, um sentimento forte surgido num momento especial. Andando, fui, tocado pelo ânimo de me sentir integrante do imenso Cosmo, relendo minha vida com outro olhar. Havia muita coisa rica e dinâmica acontecendo comigo. Os problemas do casamento existem, são sérios e têm que ser resolvidos. Eles serão resolvidos quando tiver clareza e condições. Contanto que eu não me atole neles. O céu estava tão suavemente azul, que quando notei estava correndo, brincando com a sensação de calor, vindo do sol batendo no meu rosto, debatendo com a frieza da brisa que eu procurava aumentar acelerando minhas passadas.
Eu sorria.


[Eymard Mourão Vasconcelos publica no Rua Balsa das 10 quando surge inspiração]

      


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