Maria Amélia Mano
Clara,
eu sei, prefere gaita de Bob Dylan a trombetas no apocalipse, mas profecia errou, meteoro não haverá, mundo
seguirá, precisamos agir, todos parecem graúdos, mas são miúdos, doídos e moídos
em moinhos e não será teu bambolê, tuas fitas e malabares no sinal fechado que
irão defender a solitária leveza que carregas em remendos surrados da tua saia
de chita, nos retalhos da colcha da tua filha que te espera, nos rebocos caídos
da tua casa amarela de infância, nos reparos mal feitos no asfalto azul dessa
esquina, nas revoltas tuas que chama de cansaços, nas renúncias tuas que chama
de escolhas, não, Clara, tempo acabou, poetas já não fingem, não há rede
debaixo da corda bamba, florais pra tua insônia, tarô pra tua dúvida, mapas pra
teu rumo incerto, água do mar pra tua nostalgia, colar de âmbar pra tuas dores,
fiapo de linha pra teus soluços, coroa de alecrim pra teus pesadelos, argila
pra teus potes d'água, névoa pra teu ofício de intuir, sabiá laranjeira e
amoras pretas pra tua alegria, não há ternura, Clara, só deserto de concreto e
vertigens, viajantes nômades, náufragos e suas sedes, sirenes, saudades, sombras,
segredos, espantos e escravos em subúrbios, silêncios e semáforos, estranhas
entranhas de cidade selva de cipó de cimento, seguimos, subterrâneos, trabalhando
em dias nublados, Clara, enquanto vacinas vencem, pães envelhecem, caravanas e manadas
se perdem, ventos derrubam ninhos, sapato aperta e todos enferrujam debaixo de
viadutos, exércitos fardados fugitivos de si mesmos, milícias medrosas em zona
de desconforto, soldados sufocados sonâmbulos de olhos desatentos, discursam em
sótãos vazios, esquecidos do exercício do bem querer, lustrando armas e
misérias, limpando fuzis e papéis, afiando navalhas e pressas, atropelando
poemas que cruzam fora da faixa de insegurança, atravessados na garganta que
carrega teus desamparos e desesperos, Clara, tropeços e trapos que estendes em ruas
e varais, úmidos de lágrimas, teus olhos que tremem com frio, freio, sinal que
abre, espera, tem jeito, Clara, há poeira e chuva de setembro no teu rosto, traço
forte, poesia de calçada, aço, açúcar, salamandra que renasce e antes que
decidam o carnaval, ano letivo, calendário, tudo de novo e de novo, velho, vou
te levar daqui, Clara, pela mão, vamos invadir apartamentos descorados feitos
de tijolos empilhados com selo de sustos, entraremos de pés descalços,
espalharemos cheiro de capim molhado, orvalho nos pisos, cestos de palha de
trigo nas portas, miçangas e purpurina em tudo que for bege e cinza e nas
janelas, aqueles girassóis que colhemos na beira da estrada, Clara, além de rituais,
risos e riscos de crianças nas paredes, resistências, existências, esperanças, olha,
vamos inventar mil formas de dizer eu te amo nos cruzamentos, passar cafés
lentos nas manhãs em avenidas e fugir pelo poro, pelo furo do céu, puro, sumidouro
no apuro, nascedouro, quebrar casca, romper bolsa, parto, sair quente, viva,
cria, luz e nunca mais recarregar cartão integrado, TRI, bilhete único, Clara, nunca mais.
Texto: Oficina Santa Sede - Mosaico
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