Equipe de Estratégia Saúde da Família, Pedro Gomes, 2009. |
Ernande
Valentin do Prado
Costumo ter o dom
de desagradar muita gente, sobretudo pessoas que são ou pensam ser importantes.
Quase sempre essas pessoas vão me tolerando. Em uma das vezes em que não deu
para me tolerar, fui demitido. Era época eleitoral e o candidato, do Partido
dos Trabalhadores (PT) à prefeitura, não gostou nada, nada mesmo de eu não ter
feito campanha para ele, além disso, dizem as boas línguas, a minha demissão
era um compromisso firmado com uma profissional que doava dinheiro para
campanha e queria me ver fora da equipe.
Dezoito horas depois da demissão, por indicação da Coordenadora da UBS, aquela que era Técnica de enfermagem, lembra que falei dela no texto “Atraso”? Fui contratado em outro município da região. O Secretário de Saúde, da cidade para onde fui, mandou um caminhão (dirigido pelo Seu Wilson) buscar minha mudança. Os ACS de minha ex-equipe vieram ajudar na mudança, ainda durante o expediente e contra a ordem da nova Enfermeira. O dia era de chuva. Chovia sobre a cidade e chovia em meu coração.
Em menos de uma semana eu já estava recomeçando tudo de novo em outra cidade. Estava deprimido, com medo de ser demitido outra vez, isso porque sabia que encontraria outras pessoas as quais não conseguiria reverenciar ou dar a importância que acreditariam ter. Como sempre tenho o hábito de fazer, prometi a mim mesmo fazer tudo que pudesse para dar continuidade a construção de meu sonho para saúde pública Brasileira.
A primeira coisa que o novo secretário de saúde disse foi:
― Faça aqui o que você fez lá.
Referindo-se ao município de onde eu vinha. A segunda coisa foi:
― Os Agentes Comunitários de Saúde são todos comprometidos com o prefeito que perdeu a eleição, querem prejudicar nossa gestão e são vagabundos. Quero que os faça trabalhar.
Não gostei do que ouvi, mas estava deprimido demais até para contestar, além de não ter intimidade com o homem, que parecia gente boa, apesar de tudo.
Isso aconteceu no mês de janeiro. Como em anos anteriores, anunciava-se mais um surto de dengue. Na semana seguinte, ainda tentando me dar conta de quem eram os meus novos colegas de trabalho, fui convocado a participar de uma reunião na prefeitura para discutir o que fazer para evitar a terrível endemia. Estariam presentes outros secretários do governo municipal e Técnicos de outras secretarias.
Achei estranho uma reunião com esse tema ser convocada por outra secretaria que não a de saúde e sem a presença de toda equipe de saúde, mas, como disse antes, estava deprimido demais para reagir e até para ficar com vergonha.
Perguntei se poderia levar os Agente Comunitários de Saúde (ACS). E ouvi, como resposta, uma estranha pergunta:
― Por que?
Achava a resposta óbvia demais, tão óbvia que a pergunta nem deveria ser feita. Mesmo assim respondi (sem reagir):
O Secretário disse: quer levar, leva. Assim como quem diz, quer perder tempo, problema seu.
Fomos. Depois participamos de uma campanha denominada e decidida por nós, de arrastão. Os ACS, os Agentes de Endemia, a vigilância epidemiológica e sanitária, o pessoal da secretaria de meio ambiente, juntaram-se para diagnosticar os problemas e fazer ações educativas em toda cidade. Em uma das ações, iamos de casa em cada panfleteando e conversando com a população sobre as formas de se evitar a propagação do mosquito Aedes Aegypti. Dois dias depois passava o pessoal da limpeza pública recolhendo o que a população havia separado para descartar.
Um parênteses para curiosidade: um dos lugares mais contaminados da cidade era a casa da Juíza. tinha uma infestação gigantesca na piscina da “doutora” do judiciário. A juíza foi notificada pela vigilância e comprometeu-se a limpar a piscina.
Durante toda aquela semana fui junto com os ACS. Entrei nos quintais, entreguei panfletos, virei vasos e caixas de água de boca para baixo.
Estive presente o máximo que pude em todas as ações, em todas as partes da cidade, o que foi importante também para conhecer fisicamente meu novo território.
No final da tarde do último dia, depois de três semana, marcamos um ponto de encontro das turmas e fui o último a chegar. Percebi, ao me aproximar, que alguns ACS estavam falando “de mim pelas costas”:
― Nunca vi enfermeiro virar caixa d’água de boca para baixo, nem pular muro. Todos os outros mandavam a gente ir e ficavam na UBS.
A outra respondeu:
― Nunca nenhum coordenador levou a gente para reunião de planejamento.
E continuaram conversando, até que eu entrei e pararam de falar.
Na segunda-feira, ao chegar à UBS, tinha um recado do secretário de saúde: queria falar comigo. Sempre que um chefe quer falar comigo já imagino que fiz alguma coisa errada, ou pior, certa. Fui preocupado.
― Rapaz!!!
Disse o homem do outro lado da grande mesa com tampa de vidro abarrotada de papéis.
― ...nunca vi esses ACS trabalhando assim, como você conseguiu?
Na época disse que não sabia, que poderia ser que eles não fossem tão ruins quanto se imaginava. Hoje, levando em conta o que ouvi no final da campanha e pude refletir, inclusive levando em conta outras coisas que aconteceram depois, acredito que o exemplo seja uma coisa motivadora.
Talvez o fato do enfermeiro também virar caixa d’água de boca para baixo tenha servido para ressignificar o trabalho dos ACS. Talvez seja só o exemplo. Sempre acreditei que uma liderança motivada consegue motivar a equipe e, apesar de deprimido, sempre estive mais motivado do que a maioria dos meus colegas.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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