Maria Emília Bottini
Ao
dirigir-me ao trabalho, via de regra, ouço algumas músicas que me agradam a
alma, mas vez por outra também gosto de saber o que está acontecendo na capital
do Brasil.
Dia
desses ouvi sobre uma quadrilha que fora presa, pois assaltava condomínios de
luxo em vários estados do país com ramificações na América Latina. Atuavam há mais
de quinze anos e roubaram o equivalente a cinco bilhões de reais. Nem consigo
imaginar tal quantia, afirmo que não sou boa de números, mas tenho uma boa
noção de que seja uma pequena fortuna. O grupo chegou a abrir um restaurante em
São Paulo para legalizar o dinheiro do roubo, também penhoravam algumas jóias,
roubadas, em bancos. Há ousadia em nos desafiar nesse comportamento, reflexo da
crença na impunidade e ineficiência do poder repressivo.
O que me
chamou a atenção na notícia nem foi o montante roubado, pois atualmente
banalizamos milhões, bilhões com certa facilidade. Causou-me certo espanto foi o
relato de que de uma das mansões assaltadas foram subtraídas algumas bolsas
femininas, aquele objeto em que carregamos nossos badulaques. Pois bem, o preço
de uma das bolsas roubadas é de R$ 60.000,00. Seria de ouro, de diamante? O que
justifica tal valor? O detalhe é que na mansão assaltada foram furtadas três
bolsas, totalizando o pequeno valor de R$ 180.000,00, ou seja, o equivalente a
um imóvel ou até dois imóveis dependendo da região do país.
No mesmo
dia, no final da tarde fui à academia como tenho feito, religiosamente, quase
que todos os dias, afinal a saúde do corpo precisa de cuidados. Sai do carro e
caminhei um pouco. No percurso passei por um grande supermercado que tem vários
containeres na parede lateral utilizados para depositar lixo. Como passo com
certa frequência no local, vejo muitos pães e outras comidas desperdiçados nos
arredores desse local.
Isso me
incomoda porque fui educada para não colocar comida fora e considero desrespeitoso
quando muitos ainda não fazem uma refeição ao dia, que dirá três.
Quando
cheguei próximo do lixo, vi três mulheres a vasculhá-lo. Procuravam restos de
comidas para si e quem sabe para algumas bocas famintas que as aguardavam, com
certa ansiedade e esperança, pois naquele final de dia teriam algo para enganar
o estômago vazio.
Não pude
deixar de lembrar Manuel Bandeira com seu poema O Bicho (1947).
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os
detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um
homem.
Eu
apenas mudaria o final desse poema para dar a ele a atualidade do fato
presenciado, “o bicho, meu Deus, eram mulheres”.
Poema clássico,
que sobreviveu ao tempo de setenta anos.
O poema
chegou à terceira idade e não envelheceu em seu conteúdo, continua a denunciar nossa
realidade vergonhosa e doída de se ver, de que alguns vivem das sobras dos que
muito tem e que com frequência até se permitem desperdiçar.
Que dia!
Pensei comigo, enquanto algumas mulheres possuem bolsas de valores astronômicos
outras revolvem lixos da capital para sobreviverem. Esse é o mundo habitado e
conduzido por seres que se autodenominam ‘civilizados’. O que seria do Planeta
se não fôssemos indivíduos dotados de inteligência? Será mesmo que temos
consciência de que estamos de passagem? De que a finitude nos espreita? Será
que a fome no estômago dos desafortunados dói menos? O frio é menos frio? A dor
é menos intensa?
Está
difícil de acreditar que a humanidade ainda conseguirá se humanizar. É urgente
colocar-se no lugar do outro. Façamos a experiência de ficarmos um dia sem
comer. Talvez isso nos torne mais solidários, compreensivos e entendamos um
pouco aqueles que, para não morrerem de fome, buscam no lixo seu sustento.
Afinal, o único bem que realmente temos é a vida.
[Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das
10 aos Sábados]
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