Maria Amélia Mano
Sobre
teu gato. Preciso te confessar. No começo, ele me viu assim, apavorada e
avoada, meio toda prosa e poesia. Me olhou com aquele olho azul e outro amarelo
e disse que tinha segredos teus pra me contar em troca de chamego. Queria ilha
de coral de calma, colo e carinho. Abracei ele no ar como se dançasse uma
milonga sentimental. Não falou nada.
Desde
então, venho aprendendo, descobrindo. Sobre pessoas e gatos. Nem tudo tem ou
faz sentido. Há o estudante de filosofia de cabelo lilás e balão colorido lindo
tatuado no braço. Disse que desenho quer dizer nada. É só treino de amigo
iniciante na arte. Enfermeira amarga com jeito de freira vende calcinhas
comestíveis vermelhas, fio dental.
A
senhorinha pequena, gordinha e frágil é da Gangue das Gordas, quadrilha que
bate carteira e bolsa no centro da cidade em tempos de mais consumo. Tipo
Natal. O cobrador do ônibus é homem negro, imenso, sempre com livro pra ler
entre paradas. O último que consegui ver título: Cinquenta Tons de Cinza.
Tem
eu. Dizem que sou sensível. Escrevo, espio, intuo, poemo, mas amuo, minguo e me
distraio; pairo, tonteio, desmaio, caio no leito do rio seco, afago flor de
cacto, me espinho, naufrago no chão do sertão, viajo no vão, veia de arado onde
me planto, floresço, floreio e frutifico. Falho, às vezes. Às vezes, esqueço e
canso. Sinto frio e medo. Durmo.
Tem
tu. Tu que fala pouco e não faz verso. Mas é verso no vento. É tu que me sopra,
me acorda, me dá água, me colhe. É quem nunca cansa, nunca esquece de pegar
minha mão no momento preciso. Quando acredito que mundos se reinventam e
planetas se recriam. E sigo aprendendo, descobrindo. Sobre mim, tu, nós. Sobre
pessoas e gatos.
Sobre
teu gato. Preciso te confessar. Agora, ele já conhece meus segredos. Deve te
chantagear te olhando com aquele olho azul e outro amarelo, como fez comigo. Um
chamego por um segredo. Não vai falar nada. Não precisa. Vamos comer sopa à
meia noite com vinho e pão fresco. E abrace ele no ar como se dançasse um tango
de Piazzolla. Bem apaixonado.
Texto para a Oficina Santa Sede Mosaico
Ilustração: Shozo Ozaki
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