28 janeiro 2020

FLÚMEN


Maria Amélia Mano

“O tempo antes de nós é tão eterno quanto
o tempo à nossa frente”
Clarice Lispector

FLÚMEN - substantivo masculino
Curso de água; rio, fonte, flumen. [Pl.: flumens. ].


Sabemos que instantes podem ser infinitos e infinitos, instantes. Porque medida de hora, minuto e segundo não dá conta de contar o canto, o conto, o ponto certo do tempo vivido. Porque há eternidades e urgências conforme sentimentos, sentidos, intensidades. Se tempo de chocolate e xarope, dever de casa e passeio no parque não podem ser iguais, então que se invente outra medida que escape dos relógios. Seria a medida do tempo justo, do justo tempo, que poderíamos chamar Flúmen.

Assim, uma hora de sangue derramado, fome, febre, despedidas, desapegos, dores, desesperos, angústias, insônias poderia durar até cem flumens. Uma hora de saciedade, sorriso, aroma de café, chá de laranjeira, vento no cabelo, pés descalços, chamego na manhã, cafuné na noite, beijo e alívio, só cinco flumens. Idosos e crianças teriam flumens únicos. Para homens, procuras e aguardos teriam mais flumens que para mulheres. Ainda, certas pessoas mágicas, certas risadas: instantâneos flumens.

Para destemidos, temidos e temerosos, haveria diferenças. O mesmo para tristonhos e esperançosos, culpados e inocentes, apaixonados e indiferentes. Pra quem fere e pra quem é ferido, pra quem espera e pra quem é esperado, pra loucos e lúcidos. Estações do ano também teriam seus flumens, assim como praias, desertos, montanhas e estradas; caminhos, buscas e encontros. Canções e livros, palavras e poemas. Ainda, certas mentiras, certas verdades ditas ou interditas: intermináveis flumens.

Ilusão. Brevidade e eternidade são relativas. Não há o que meça o tempo justo, o justo tempo. Pior que a desmedida é o que já foi, já era, já passou e nem vimos. Quando somos dragados pela correnteza da vida. Quando entramos em redemoinhos invisíveis. Quando esquecemos que um rio nunca volta para a nascente. Que o curso é tão importante quanto a margem. E seja o que for, como for, todo rio segue sempre para o mar. Mesmo que instantes sejam infinitos e infinitos, instantes.

Texto para a Oficina Santa Sede Verão

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