Maria Emília Bottini
Gosto muito de
trabalhar com arte. Ela me inspira, expressa sentimentos e emoções, por vezes
ocultos de nós mesmos. Dentre as artes, a arte de viver é a maior de todas. Viver
cada dia e entender que ele é único e que não se repetirá. Estive em um evento
para trabalhar com arte terapia. Na arte
terapia a pessoa é convidada a explorar aspectos do seu consciente ou
inconsciente por meio da expressão artística como: pintura, desenho, modelagem,
escultura, poesia, dança... O tempo disponibilizado para a atividade era curto;
a amiga que me convidou lembrava que eu sempre utilizei as artes no ofício de
ser psicóloga. Pintei tela com autista, fiz desenhos com crianças, contei
histórias, mostrei imagens, usei o cinema e a música para a alma, dancei, li poesias,
manuseamos barro...
Lembrei de uma
técnica que uso com certa frequência em grupos. Primeiramente, fiz breve
conversa sobre o quanto a arte pode ser uma ferramenta para acessar quem somos
e para entender nossa narrativa singular.
Em seguida, distribui
folhas de ofício. Solicitei que respirassem profundamente e se concentrassem em
si mesmo; se desejassem, poderiam fechar os olhos e apenas sentir que estavam
vivos, sentir os sons, sentir o coração. Na sequência, cada um deveria
representar na folha, através das mãos, como estava se sentindo naquela manhã
de primavera.
No início a
folha em branco causa estranhamento, um desconforto a ideia que não somos
capazes de reproduzir nada, que precisamos de caneta e papel para escrever,
desenhar. Aos poucos as mãos se movimentam, trabalham o papel branco e produzem
algumas formas entre rasgos e dobras. As folhas passam a ser outra coisa,
passam a ser sentimentos, afetos e partes de si desvendadas e simbolizadas.
Na socialização,
cada um trouxe a simbologia de suas obras realizadas, expressões de si. Avião,
barco, boca, quadrado, flor, coração, casa, pássaro, caminho... Uma das
participantes me encantou pelo que trouxe de si em tão pouco tempo. Ela, de
fato, se permitiu viver a técnica e se colocar sem reservas, apenas estava lá
presente. Ela fez um avião e falou de sua felicidade ao poder sair de casa
naquela manhã, pois se sente presa ao trabalho. Disse que sentia como se
estivesse voando, livre e liberta, pelo menos naquele momento poderia
aproveitar o dia como há muito não fazia.
Sua atividade é
ser cuidadora de duas idosas. Uma delas perdera sua memória nos tempos idos,
está completamente dependente de seus cuidados. A idosa relembra sua filha que
morreu, lembrança carregada de um profundo sentimento de afeto, ainda a povoar
sua mente através de reminiscências.
Ter paciência é
para ela um desafio diário ao ouvir as repetições que já não são poucas. Tem
sobre seus ombros muitas responsabilidades, as quais a impedem de sair com mais
frequência para aproveitar eventos sociais e de aprendizagem.
Os outros
participantes também falaram dos objetos que criaram e de como se sentiam.
Após as falas,
abrimos para um diálogo onde cada um falou de si um pouco mais, a partir da
fala dos outros. Como dizia uma paciente: “o outro sou eu”. Fiz o fechamento
falando da arte que realizaram, mas da arte de viver, de nossas diferenças e das
semelhanças que nos aproximam em qualquer situação, mesmo em um encontro
aleatório como o que vivemos.
Comentei a
respeito de preconceitos que nos impedem de vivenciar experiências com os
outros, que devemos evitá-los ao máximo, visto que isso não nos ajuda, ao
contrário causa muito sofrimento. O preconceito se apresenta em coisas muito
simples. Alguém comentou algo sobre indígenas da região no início da atividade
e de forma pejorativa, achei pertinente falar da tolerância com as diferenças.
Essa
participante pediu para falar novamente, disse que tinha algo a dizer sobre isso.
Relatou que era filha de uma indígena e que tinha orgulho de sua raça. Sua mãe
fora criada por uma família de brancos e nunca se aproximou da família de
origem, não teve interesse. No entanto, ela passou a vida querendo visitar sua
avó indígena que inclusive não morava distante de sua casa, mas nunca o fez.
Disse que nunca tomou coragem por medo de magoar a mãe e por pensar que a
família da avó a rejeitaria. Não seguiu o seu desejo, independente dos demais,
e ficou no querer. Agora não poderá mais fazê-lo, pois a avó faleceu há uns dois
meses e ela ainda não contou para sua mãe.
Talvez para sua
mãe não faça diferença saber da morte, pois em vida isso já não lhe fazia
sentido algum, pois vivera afastada de sua família talvez com suas mágoas ou
resoluções.
Seu comentário
foi um desabafo, acompanhado por um profundo sentimento de perda de uma
possibilidade, de ter feito a escolha equivocada por seus próprios
preconceitos. Algumas decisões são tomadas considerando o que o outro vai
pensar e de fato o outro pensa, mas isso não nos pertence. Melhor teria sido
permitir-se ir até a avó, depois avaliar se foi bom ou não, mas pressupor antes
foi o que a afastou de conhecer sua avó, conviver com ela e se permitir ouvir o
porquê das coisas. Comentei para ela que só se permitindo para saber se seria
rejeitada ou aceita. E mesmo se rejeitada fosse, havia tentado aproximar-se e
que isso era importante para si. Agora, resta conviver com o não vivido, o não
permitido. Não há mais possibilidade, a morte a encerrou.
Quando desejamos
fazer algo em relação ao outro, seja quem for, deve ser feito em vida, os
mortos não nos ouvem, não veem, até onde sabemos. Talvez esta participante
tenha perdido uma oportunidade ímpar de voar em outro avião, aquele que nos inscreve
na origem de quem somos.
[Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das
10 aos Sábados]
Vidaaaa!
ResponderExcluirhoje fiquei aqui lendo e lembrando das traquinagens que facilitei com tintas guache e mulheres parideiras... que bom lembrar disso e me deixar de novo no mundo coletivo do Rua Balsa das 10😍
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