Sonhos é um filme de Akira Kurosawa (1990),
composto por oito histórias distintas: Um raio de sol através da chuva, O
jardim dos pessegueiros, A tempestade, O túnel, Corvos, Monte Fuji em vermelho,
O demônio que chora e O vilarejo dos moinhos, baseado em sonhos que o próprio
cineasta teve ao longo de sua vida de imaginação e de criação. Para mim um dos
melhores cineastas que a terra já produziu.
No último episódio, um jovem passeia pelo
vilarejo dos moinhos e cruza com um ancião sentado ao lado de um rio, que mais
parece um quadro pintado pela genialidade de pintor, o qual pacientemente concerta
a roda do moinho com mãos frágeis e magras. Entre eles se estabelece um
diálogo:
- “Quando
estava vindo para cá, vi crianças pondo flores numa pedra perto da ponte. Por
que fazem isso?
- Ah,
isso. Meu pai me contou uma vez. Muito tempo atrás um viajante estava doente e
morreu perto da ponte. Os aldeões ficaram com pena e o enterraram ali mesmo.
Puseram uma grande pedra sobre o túmulo e depositaram flores sobre ela. Pôr
flores ali se tornou um costume. Não são só as crianças que fazem isso. Todos
os aldeões põem flores ali, ao passar, embora a maioria não saiba por que o faz.
Está
havendo uma festa hoje?
Não,
é um funeral. Acha isso estranho? Um funeral alegre, feliz. É bom trabalhar
duro, viver muito, e receber gratidão. Não temos tempo nem sacerdotes aqui, por
isso, todos os aldeões carregam o morto até o cemitério sobre a colina. Não
gostamos quando um jovem ou uma criança morre. É difícil comemorar uma perda assim,
mas, felizmente, as pessoas desta aldeia levam uma vida natural, por isso morrem
numa idade avançada. A mulher que vamos enterrar hoje viveu até noventa e nove anos.
Precisa me dar licença. Vou me juntar à procissão. Para dizer a verdade, ela
foi meu primeiro amor. Mas me fez sofrer, me trocou por outro. Ha, ha, ha...
O ancião entra em sua casa e sai dela com
roupas de festa e um chocalho na mão.
- Por
falar nisto quantos anos o senhor tem?
- Eu?
Cem mais três. É uma boa idade para parar de viver. Há quem diga que a vida é
dura. Isso é só conversa. Na verdade, é bom estar vivo. É emocionante!
O ancião se junta à procissão dançando,
cantando, enquanto as crianças jogam pétalas de flores no caminho do cortejo e
seguem comemorando a vida da anciã.
O rapaz fica parado por alguns minutos a
observar a cena e ao atravessar a ponte também deposita, sobre a pedra, suas flores,
em memória do que já se foi, mas de alguma forma ainda a simbolizar, próximo do
rio, a passagem, a ponte, entre a vida e a morte que todos deveremos atravessar
sem volta.
O vilarejo dos moinhos é um belo presente
que podemos dar aos nossos sentidos, por vezes amargurados pelo cotidiano da
vida com os noticiários, com a brutalidade humana. Contém a sabedoria e a
sensibilidade que através de imagens nos emociona, nos permite aflorar a
humanidade em nós, mesmo escorrendo lágrimas quer sejam de felicidade ou mesmo
de saudade dos que se foram e nos eram caros.
O filme nos remete à morte e ao morrer,
mas também à vida e ao viver.
Penso que talvez devêssemos ser como o
ancião e nos nossos cortejos fúnebres nos vestir para comemorar a vida, a luta
e o existir de nossos entes queridos. Parece difícil pensar assim, mas do que
realmente estamos chorando? Será pela morte do que está no caixão ou a nossa
projeção de que cedo ou tarde estaremos em seu lugar?
Quem depositará flores em nosso dia
derradeiro? Teremos pessoas a comemorar nossa existência? Ou sentirão alívio
por nossa partida? Sei apenas que a morte é para todos indistintamente queiramos
nós ou não, aceitemos ou não. A morte talvez seja a maior justiça da criação:
ela é para todos, todos, todos... independente de qualquer coisa.
Veja o filme todo, ou melhor, os oito
filmes e comprove você mesmo o que sentirá, porque sentir é único, pessoal e
intransferível, assim como viver e morrer.
[Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das
10 aos Sábados]
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?