31 outubro 2020

Aldeia dos moinhos


 Maria Emília Bottini

Sonhos é um filme de Akira Kurosawa (1990), composto por oito histórias distintas: Um raio de sol através da chuva, O jardim dos pessegueiros, A tempestade, O túnel, Corvos, Monte Fuji em vermelho, O demônio que chora e O vilarejo dos moinhos, baseado em sonhos que o próprio cineasta teve ao longo de sua vida de imaginação e de criação. Para mim um dos melhores cineastas que a terra já produziu.

No último episódio, um jovem passeia pelo vilarejo dos moinhos e cruza com um ancião sentado ao lado de um rio, que mais parece um quadro pintado pela genialidade de pintor, o qual pacientemente concerta a roda do moinho com mãos frágeis e magras. Entre eles se estabelece um diálogo:

- “Quando estava vindo para cá, vi crianças pondo flores numa pedra perto da ponte. Por que fazem isso?

- Ah, isso. Meu pai me contou uma vez. Muito tempo atrás um viajante estava doente e morreu perto da ponte. Os aldeões ficaram com pena e o enterraram ali mesmo. Puseram uma grande pedra sobre o túmulo e depositaram flores sobre ela. Pôr flores ali se tornou um costume. Não são só as crianças que fazem isso. Todos os aldeões põem flores ali, ao passar, embora a maioria não saiba por que o faz.

Está havendo uma festa hoje?

Não, é um funeral. Acha isso estranho? Um funeral alegre, feliz. É bom trabalhar duro, viver muito, e receber gratidão. Não temos tempo nem sacerdotes aqui, por isso, todos os aldeões carregam o morto até o cemitério sobre a colina. Não gostamos quando um jovem ou uma criança morre. É difícil comemorar uma perda assim, mas, felizmente, as pessoas desta aldeia levam uma vida natural, por isso morrem numa idade avançada. A mulher que vamos enterrar hoje viveu até noventa e nove anos. Precisa me dar licença. Vou me juntar à procissão. Para dizer a verdade, ela foi meu primeiro amor. Mas me fez sofrer, me trocou por outro. Ha, ha, ha...

O ancião entra em sua casa e sai dela com roupas de festa e um chocalho na mão.

- Por falar nisto quantos anos o senhor tem?

- Eu? Cem mais três. É uma boa idade para parar de viver. Há quem diga que a vida é dura. Isso é só conversa. Na verdade, é bom estar vivo. É emocionante!

O ancião se junta à procissão dançando, cantando, enquanto as crianças jogam pétalas de flores no caminho do cortejo e seguem comemorando a vida da anciã.

O rapaz fica parado por alguns minutos a observar a cena e ao atravessar a ponte também deposita, sobre a pedra, suas flores, em memória do que já se foi, mas de alguma forma ainda a simbolizar, próximo do rio, a passagem, a ponte, entre a vida e a morte que todos deveremos atravessar sem volta.

O vilarejo dos moinhos é um belo presente que podemos dar aos nossos sentidos, por vezes amargurados pelo cotidiano da vida com os noticiários, com a brutalidade humana. Contém a sabedoria e a sensibilidade que através de imagens nos emociona, nos permite aflorar a humanidade em nós, mesmo escorrendo lágrimas quer sejam de felicidade ou mesmo de saudade dos que se foram e nos eram caros.

O filme nos remete à morte e ao morrer, mas também à vida e ao viver.

Penso que talvez devêssemos ser como o ancião e nos nossos cortejos fúnebres nos vestir para comemorar a vida, a luta e o existir de nossos entes queridos. Parece difícil pensar assim, mas do que realmente estamos chorando? Será pela morte do que está no caixão ou a nossa projeção de que cedo ou tarde estaremos em seu lugar?

Quem depositará flores em nosso dia derradeiro? Teremos pessoas a comemorar nossa existência? Ou sentirão alívio por nossa partida? Sei apenas que a morte é para todos indistintamente queiramos nós ou não, aceitemos ou não. A morte talvez seja a maior justiça da criação: ela é para todos, todos, todos... independente de qualquer coisa.

Veja o filme todo, ou melhor, os oito filmes e comprove você mesmo o que sentirá, porque sentir é único, pessoal e intransferível, assim como viver e morrer.

 

 [Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados] 

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