17 outubro 2020

FILHOS DO PARAÍSO


 Maria Emília Bottini

Em novembro de 2017 comecei a desenvolver na sala anexa a Biblioteca Municipal de Erechim o projeto No cinema e na vida. Aproveitei a experiência de Brasília com discussão de filmes e o nome do meu livro e criei encontros de fala compartilhada sobre a sétima arte.

Sou a curadora da amostra que é exibida, que depende do meu gosto cinematográfico aliado a filmes que pertencem a minha coleção particular o que não são poucos.

A dinâmica acontece da seguinte forma: exibe-se o filme e depois abre-se para o diálogo sobre percepções e sentimentos despertado pelos sentidos e emoções. Esse diálogo se estabelece no mais absoluto respeito ao que cada um é e verbaliza ao grupo. Gosto de filmes que me fazem pensar e o objetivo principal desses encontros é que possamos pensar para além de nossos umbigos; e que nossos horizontes de percepção de mundo se ampliem ouvindo a fala do outro que pode divergir do que acreditamos, mas pode nos mostrar novas visões ou possibilidades dantes inimaginadas o que nos ajudam a seguir em frente.

No dia que exibi Filhos do Paraíso convidei uma colega psicóloga Lea Aguiar para cantar e encantar com sua voz. Não combinamos o que cantaria, mas como ela cria suas letras trouxe a música Bolinhas de sabão e entregou à plateia potinhos onde poderiam soprar e as bolinhas surgiam multicoloridas. Eu amei as bolinhas de sabão na sala, na música e no filme. No filme elas aparecem em uma rara cena em que os irmãos são apenas crianças, um tempo efêmero como as bolinhas de sabão, ser criança não é algo que por vezes é permitido a estas crianças que vivem um mundo hostil da falta.

O filme iraniano Filhos do Paraíso, de 1998, do diretor Majid Majidi, responsável por outras pérolas do cinema como: A cor do paraíso, Canto dos pardais entre outros. O cinema iraniano retrata o cotidiano de forma singela, geralmente feito por pessoas que não são atores, com poucos recursos e nada de efeitos especiais mirabolantes como apresentados por filmes norte-americanos, quase nenhuma música a conduzir as imagens. Filmes simples, mas de muita profundidade que nos permitem refletir, se desejarmos. O cinema iraniano é introspectivo e sua narrativa conduz a um olhar para dentro, para uma reflexão aprofundada da condição humana mesmo que em uma corrida de um garoto para ganhar o terceiro lugar e repor o tênis para a irmã.

A narrativa gira em torno da relação de irmandade entre Ali, criança grande, que em poucos momentos de menino para jogar bola, brincar, e sua irmã Zahra igualmente adulta, pois já faz tarefas de casa para ajudar a mãe com problemas de saúde e cuida do irmão menor.

As duas crianças vivem na pobreza, com esgoto percorrendo as ruas, estudam em escolas diferentes, pois são separados por gênero, tem pouco em termos de condições materiais, mas tem pais que são honestos e cheios de valores, que mesmo diante do pouco ainda dividem com seus vizinhos. O pai é trabalhador e severo, pagam aluguel que é sempre cobrado para um pai que ganha parcos recursos e mesmo quebrando pedados de açúcar para a mesquita, se recusa a pegar alguns cubinhos dele para adoçar o chá da família, isso são valores que são transmitidos para os filhos.

Essas duas crianças se veem diante de um problema quando o irmão Ali leva o sapato da irmã para arrumar, no caminho passa em uma banca para pegar batatas de pobre, ou seja, as mais feias, e deixa o calçado em cima de uma caixa. O catador de lixo, ao passar, pega o embrulho, coloca-o em seu carinho e leva-o embora. Nesse momento começa o dilema do garoto, sabedor que era o único calçado que sua irmã possuía, tamanha são as dificuldades familiares.

Ali propõe para sua irmã que usem o calçado dele para enfrentar juntos e sem envolver os pais no dilema posto. Os irmãos não contam para ninguém, pois o pai é bastante rígido e seria mais um problema a ser resolvido, doença da esposa, aluguel para pagar e ainda o sumiço do calçado. As crianças criam a alternativa e juntos resolvem a dificuldade.

Zahra vai à escola com o tênis do irmão, ao sair da escola volta correndo pelas ruas. Encontra o irmão no caminho, devolve o calçado para o irmão e ele corre para a escola, isso se repete várias vezes. Ele corre, ela corre. E assim os dias se seguem em uma corrida de revezamento entre irmãos com apenas um par de tênis. Em alguns dias Ali chega atrasado a sua escola e enfrenta problemas com o diretor, outras vezes o professor lhe dá cobertura, pois é um bom aluno.

Uma cena bastante comovente é quando pai e filho vão ao centro da cidade que é diferente de onde eles moram. A cidade ali é bonita, com prédios, árvores e ruas sem esgoto a céu aberto, eles tentam algum trabalho para ganhar dinheiro e pagar as contas. Muitos interfones são apertados e muitos não são recebidos. Ali ajuda o pai quando percebe que ele não dá conta de conversar pelo interfone, através do olhar se sente o orgulho do pai por ter um filho inteligente.

Eles seguem tocando interfone e um menino rico atende, ele está com a avó, conseguem o trabalho. Ali brinca de ser criança nessa tarde, de ser um menino. O garoto rico tem muitos brinquedos, muita casa, muita piscina, mas lhe falta alguém para brincar, tem uma tristeza dentro de si. Ali é um menino que muito lhe falta, mas tem uma família. Ambos não podem ser crianças por dificuldades, por carências bem distintas.

Ali participa de uma corrida na escola, ele é um dos melhores corredores, é classificado, mas está de olho no terceiro prêmio um tênis. Ele participa da corrida, muito bem preparado pela marota que reveza com a irmã. Ele vence a corrida em primeiro lugar, mas a sua decepção é visível, pois seu desejo era o terceiro lugar e não o primeiro, ele não ganha o tão almejado tênis, para entregar como troféu para a irmã.

Ao chegar em casa tira seu calçado todo rasgado e coloca os pés cheios de bolhas na água e os peixes lhe fazem carinho. O pai está fazendo compras no mercado, sua bicicleta está com novos calçados para os filhos. O final é otimista, apesar de toda a realidade que envolve a família, os filhos receberão calçados novos.

Um filme de beleza e sensibilidade para narrar diferenças sociais dos que tem e dos que não tem. Das múltiplas corridas que são realizadas pelas crianças que se tornam adultas antes do tempo e resolvem problemas que por vezes a sociedade não dá conta de resolver.

 [Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados] 

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