26 outubro 2020

INÚMERAS DORES

 

 


INÚMERAS DORES

 

Muitos anos de vida, de experiências boas e nem tão boas...perdas de entes queridos, de esperanças recém nascidas, dos pais, do marido, de neto.... Ganhos de netos e depois bisnetos, e reconhecimento de sua sabedoria. Longa vida, longo tempo de esperas por realizações, alegrias pequenas e algumas grandes. Mas, principalmente, nos últimos tempos, dores: dores da alma e do corpo.  Sofria de ver que as coisas escapavam do seu controle, sofria por nem sempre tudo ser na harmonia que idealizou, sofria que as maldades estavam aparentes, sofria a traição de ideais prometidos. Dores nos pés que já não firmavam muito, nos joelhos que intermediavam mal a flexibilidade, no quadril que tolhia sua caminhada livre.  Por vezes perdia a compostura firme e heroica e chorava com a dor. Se sentia fraca, se decepcionava com esta fraqueza de não aguentar estoicamente tudo.

As dores impediam a execução de seus artesanatos, ao menos o tanto que produzia nas fases boas. Contabilizava uma produção de mais de 100 trabalhos em um mês e o seu prazer de dar e mostrar seus feitos era imenso. Ficava feliz ao ser reconhecida com ativa e lúcida aos 94 anos. 

Sabia que pelas costas vizinhos e amigos elogiavam sua independência. A família reconhecia seu poder, mas ao mesmo tempo tinha que lidar com as teimosias, as queixas de variados tipos.  Se de um lado fazia  todo serviço da casa e se cuidava, ia médico e fisioterapeuta sozinha, tinha sua rede de motoristas que a levavam para onde era de seu interesse ( a família havia proibido o uso de transporte público depois da aventura que a levou a ficar internada num pronto socorro em observação após um traumatismo craniano causado por uma queda no ônibus), por outro lado a energia para dar conta de tudo tinha um preço... que eram os desequilíbrios na saúde, as arritmias cardíacas e pequenas infecções  com sintomas escondidos “para não dar trabalho” que todos eram muito ocupados. Quando a coisa complicava e as queixas já não eram caladas... todos os “ocupados” ficavam mais ocupados para darem conta da internação, ou acompanhamento por dias e dias até que se restabelecesse. Aceitar ajuda regular para evitar as crises era inadmissível. Mas superadas as crises, projetos de novas obras de artesanato, de viagens e de visitas a amigos, netos no estrangeiro, e bisnetos em outas cidades do Brasil voltavam à tona. Possivelmente as durezas eram o que davam força para ir adiante.

A autonomia se confundia com teimosia, a privacidade com a rigidez de evitar acordos com os mais jovens, a experiência se revestia de uma única via de ser possível qualquer atitude.  A frase mais enunciada era deixe-me fazer à minha maneira, mas querendo que todos fizessem à sua maneira. Qualquer coisa diferente era quase uma heresia, mas sempre com uma capa de “aceito bem o que a vida me oferece” com a cara de mártir. Quem estivesse ao redor, se bobeasse, se sentia devedor. Mesmo sem consciência do fato, acabava manipulando todos na família. E o senso comum era que por pouco tempo era bom estar vivendo na mesma casa, aliviava o trabalho, descansava a velha. Muito tempo terminava por exaurir as forças na tentativa de fazer bem as coisas e agradar para evitar as críticas. Possivelmente as durezas eram o que davam a força para ir adiante.

Muito aprendizado dos que envelheciam junto, de tolerância, de flexibilidade, de auto respeito, de escuta dos mais jovens, de evitar alimentar as dores e de buscar prazeres, simples e amorosos. Muita busca por sabedoria de envelhecer com graça, com leveza, com beleza e muito desejo de ter a garra de viver e ter planos como a matriarca.

 

Maria Lúcia Futuro Mühlbauer 

                                                                                                             Publica às segundas-feiras

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