INÚMERAS DORES
Muitos anos de vida, de experiências boas e nem tão
boas...perdas de entes queridos, de esperanças recém nascidas, dos pais, do
marido, de neto.... Ganhos de netos e depois bisnetos, e reconhecimento de sua
sabedoria. Longa vida, longo tempo de esperas por realizações, alegrias
pequenas e algumas grandes. Mas, principalmente, nos últimos tempos, dores: dores
da alma e do corpo. Sofria de ver que as
coisas escapavam do seu controle, sofria por nem sempre tudo ser na harmonia
que idealizou, sofria que as maldades estavam aparentes, sofria a traição de
ideais prometidos. Dores nos pés que já não firmavam muito, nos joelhos que
intermediavam mal a flexibilidade, no quadril que tolhia sua caminhada livre. Por vezes perdia a compostura firme e heroica
e chorava com a dor. Se sentia fraca, se decepcionava com esta fraqueza de não
aguentar estoicamente tudo.
As dores impediam a execução de seus artesanatos, ao
menos o tanto que produzia nas fases boas. Contabilizava uma produção de mais
de 100 trabalhos em um mês e o seu prazer de dar e mostrar seus feitos era
imenso. Ficava feliz ao ser reconhecida com ativa e lúcida aos 94 anos.
Sabia que pelas costas vizinhos e amigos elogiavam
sua independência. A família reconhecia seu poder, mas ao mesmo tempo tinha que
lidar com as teimosias, as queixas de variados tipos. Se de um lado fazia todo serviço da casa e se cuidava, ia médico e
fisioterapeuta sozinha, tinha sua rede de motoristas que a levavam para onde
era de seu interesse ( a família havia proibido o uso de transporte público
depois da aventura que a levou a ficar internada num pronto socorro em
observação após um traumatismo craniano causado por uma queda no ônibus), por outro
lado a energia para dar conta de tudo tinha um preço... que eram os
desequilíbrios na saúde, as arritmias cardíacas e pequenas infecções com sintomas escondidos “para não dar trabalho”
que todos eram muito ocupados. Quando a coisa complicava e as queixas já não
eram caladas... todos os “ocupados” ficavam mais ocupados para darem conta da
internação, ou acompanhamento por dias e dias até que se restabelecesse.
Aceitar ajuda regular para evitar as crises era inadmissível. Mas superadas as
crises, projetos de novas obras de artesanato, de viagens e de visitas a
amigos, netos no estrangeiro, e bisnetos em outas cidades do Brasil voltavam à
tona. Possivelmente as durezas eram o que davam força para ir adiante.
A autonomia se confundia com teimosia, a
privacidade com a rigidez de evitar acordos com os mais jovens, a experiência
se revestia de uma única via de ser possível qualquer atitude. A frase mais enunciada era deixe-me fazer à
minha maneira, mas querendo que todos fizessem à sua maneira. Qualquer coisa
diferente era quase uma heresia, mas sempre com uma capa de “aceito bem o que a
vida me oferece” com a cara de mártir. Quem estivesse ao redor, se bobeasse, se
sentia devedor. Mesmo sem consciência do fato, acabava manipulando todos na
família. E o senso comum era que por pouco tempo era bom estar vivendo na mesma
casa, aliviava o trabalho, descansava a velha. Muito tempo terminava por
exaurir as forças na tentativa de fazer bem as coisas e agradar para evitar as
críticas. Possivelmente as durezas eram o que davam a força para ir adiante.
Muito aprendizado dos que envelheciam junto, de
tolerância, de flexibilidade, de auto respeito, de escuta dos mais jovens, de evitar
alimentar as dores e de buscar prazeres, simples e amorosos. Muita busca por
sabedoria de envelhecer com graça, com leveza, com beleza e muito desejo de ter
a garra de viver e ter planos como a matriarca.
Maria Lúcia Futuro Mühlbauer
Publica às
segundas-feiras
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