Maria Emília
Bottini
Ao chegar em Brasília em agosto de 2009,
soube de um cineclube que acontecia em uma universidade próximo da minha casa, um
sábio professor orquestrava as exibições dos filmes e os debates que foram sempre
ricos de aprendizagem para além do cinema, para a vida.
Como era uma frequentadora assídua
sempre via os mesmos elementos adentrando a sala de projeção. Muitas foram as vezes
que cruzei os caminhos com Célia, sem ter coragem de lhe dizer palavra alguma. Certo
dia antes de uma das exibições, tomei coragem e me apresentei, ela foi muito
simpática e acolhedora. Logo após o filme continuamos a conversar o que se
estendeu por longas horas, precisamente foram três horas de muita troca, lembro
que neste dia me falou do conceito de normalidade forçada, nunca me esqueci
dele, por sinal muito atual nos dias de hoje. Percebi naquela tarde que era
muito inteligente e sábia. Outras vezes nos encontramos e o bate-papo era
intenso e fluía fácil.
Célia é psiquiatra aposentada e cursava
faculdade de cinema na época, pois é uma apaixonada pela sétima arte. Nossas
afinidades foram surgindo, amamos as artes, o cinema em especial. Somos
intrigadas com o comportamento humano, nem sei se o entendemos, mas tentamos. Somos
devotas dos livros. Eu gaúcha e ela morou no sul. Gosta de viajar, se pudesse
sempre estaria com a mochila nas costas para algum canto do planeta.
O tempo passou rápido e eu entrei para
o doutorado em educação, comentamos que nos encontraríamos para seguir fazendo
trocas, mas os horários de estudos não me permitiram seguir vendo os filmes, o
que muito me desagravada.
Quando acabei meu doutorado, fiquei sem
saber o que inventar da vida, voltei a atuar no consultório, estudei para
concurso para professora. E um dia telefonei para ela e marcamos um chá da
tarde, já que não tomo café. Não sabia o que resultaria daquele reencontro, mas
desde então nos últimos três anos tenho passado minhas tardes com Célia. Ora em
sua casa, ora na minha casa. Vimos e conversamos sobre muitos filmes, um deles
com duração de quarto horas. Participou de muitos debates que realizei sobre
alguns filmes. Fomos a palestras juntas. Leu sua carta à velha escritora que
pretende ganhar o prêmio Jabuti Alado em um curso de escrita criativa que fez. Comemorarmos
nossos aniversários. Anotei em muitos cadernos nossas reflexões que iam surgindo
em nossos encontros. A conversa sempre fluía, nem sei o que tanto tínhamos para
conversar, mas sei conversamos por longas e gostosas horas.
Eu falava da morte e do morrer como
coisa corriqueira. Ela me ouvia e contava causos e mais causos de seus amigos e
colegas que partiram enamorados pela morte, narrava suas histórias de doídos, e
não eram poucas e ríamos. O riso é sua marca. Tanta história deu história.
De dando trocar ideias, criamos em
julho de 2015 o “Alquimia do Saber”, um grupo com a proposta de refletir sobre
a temática da vida e o viver, mas igualmente sobre a morte e o morrer. As
atividades envolviam exibir e discutir filmes com temática da morte, leitura de
textos, análise de imagens, música, poesia, dinâmicas de grupo e diálogo respeitoso
entre os participantes. A palavra alquimia veio de Célia que é Junguiana e o
saber foi minha contribuição por atuar na educação. A imagem que ilustra está
crônica é a que escolhemos para simbolizar o que desejávamos com a criação do
grupo, ou seja, colocar um pouco de luz sobre as sombras de um tema tabu e
assim o fizemos.
Alguns amigos foram convidados a
participar dos encontros e compareceram, uns não vieram, achavam que estávamos
ficando doídas, mas encaramos a morte na sala da casa da Célia, regado a café e
lanche comunitário ao final. Gravamos
nossas conversas, pois pretendíamos um audiovisual produzir.
Muito aprendi, muito dividi, somei e
multipliquei casos, histórias, livros, filmes, crônicas, choros e alegrias.
Acompanhei a perda de sua mãe e ela me deu colo afetivo quando perdi uma amiga
querida.
Em abril de 2017 procurando o que fazer
para gastar o tempo encontrei o curso Caminhos do Conto. Fui na aula
demonstrativa e não parava de comentar, a convidei para fazer o curso, no que ela
aceitou. Lá fomos nós aprender juntas a criar e ouvir mais histórias. Em uma
das atividades contou história da cobra lilás combinando com seus cabelos desta
cor. Eu falei da mulher de vermelho que contava história para idosos já sem
memória. Por três meses fomos colegas, inventamos histórias e nos emocionamos
com nossas criações e com as das outras participantes, enfim nos divertimos.
Em julho de 2017 ventos do destino
sopraram forte na minha vida e estou voltando a morar no Sul, precisei me
despedir de ti minha grande amiga Célia, a quem tenho profunda admiração,
carinho e amor. Sou grata por este período de convivência e amizade profunda e
rica para meu existir. Obrigada por abrir as portas de sua casa e me permitir
entrar, sentar e conversar e pela aprendizagem da escuta amorosa. E como diria Neruda
“confesso que vivi” e eu também.
[Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados]
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