29 setembro 2020

INFINITA DEVANIA


 
Maria Amélia Mano

    Quando enfim mistério chegou aos dias inúteis de um ano, bem depois do tempo em que todos os chocolates eram embrulhados em papel alumínio e expectativa se juntava a brilho e sabor, Serafina desejou mudar de altitude, de latitude e de atitude, mesmo com colete na coluna, mesmo com aparelho no ouvido, mesmo só ganhando, agora, jogo de adivinhar esconderijo de doce em três cumbucas emborcadas na mesa pela cuidadora do asilo que sorri com olhos por detrás da máscara.


    Quando enfim escorreu saudade na varanda suspensa da vida, desesquecendo detalhes imensos, o desejo de boiar na água morna, a fúria das ondas sobre os pés, as marcas de passos na areia, o jeito de deixar sandálias viradas pra fora, melancolias viradas pra dentro, mergulhos virados pra profundezas, memórias viradas pra superfícies, Serafina desejou vulcão, outono, batom e galope, mesmo em agosto, cadeira de rodas, roldanas enferrujadas de erguer vida que se escoa e ecoa em vazio que se esvai, vaga, vai, vai…


    Quando enfim devaneio se juntou com ventania, Serafina criou delírio, desvario, devania, inventou nomes e verbos e se conjugou, segurou xícara de chá quente com as duas mãos como se fosse santa pra aquecer palma de mão, pele de deserto, desacato, desabafo, descontrole, como se rezasse pra peste terminar e que os vermes  perversos, pervertidos, desistissem dos seus, de nós, de todos tão solitários, tão cheios de vertentes de verdades, vidas viradas que só precisam de veredas verdes de momentos simples. 


    Quando enfim, sem medo, Serafina descobriu sonho, sobrevoou noites e noites a fio no fio fino desencapado e encantado do tempo breve que ainda tinha porvir, partiu de si não só por partir, que partir não é só, mas tudo, mas partiu pra ficar, pra viver ainda um tanto, num canto de espera, por ar que se renovará, por mar que se fará ondear, por faces que vão se mostrar, de novo, por filhos e netos que esperará aos domingos e abraçará, quando tudo isso se for, quando tudo isso tiver fim. Serafina, vai passar. 

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