09 janeiro 2021

A DOR QUE DÓI


 

Gosto do cinema como possibilidade de nos educar para a sensibilidade e ampliar nossa percepção de mundo. Atualmente, parece que temos tão poucos espaços para a reflexão. Os filmes nos ajudam a refletir temáticas difíceis. O cinema não é só diversão na minha opinião, um bom cinema tem de nos fazer pensar, mesmo que pensar doa e canse.

O documentário The center will not hold apresenta Joan Didion, jornalista, roteirista e escritora americana de grande sucesso com o devido reconhecimento em vida por sua obra, pois o presidente Obana a homenageou na Casa Branca por sua contribuição através da escrita. O documentário narra episódios de sua carreira, de sua vida, de suas perdas e o seu processo de luto pela perda do marido e da filha, num espaço curto de tempo.

Conheci Joan Didion através do texto intitulado A mulher que restou (2012) pelas sábias mãos de Eliana Brum, em que relata sobre os dois livros que escreveu. Quando da morte do marido John, com quem vivera por quase 40 anos, escreveu o livro chamado O ano do pensamento mágico. E quando perdeu a filha adotiva Quintana, aos 39 anos por complicações de saúde, escreveu Noites Azuis, são aquelas noites assim chamadas porque anunciam o verão e só vão embora depois que ele acaba, nas quais podemos nadar em azul no crepúsculo antes de a escuridão nos alcançar.

Como escritora usou a ferramenta que tinha ao alcance da mão e escreveu, escreveu...

Joan comenta em uma entrevista que enquanto escrevia o livro sobre seu marido, de alguma forma ele estava vivo, e que era difícil finalizar o mesmo. A entrevistadora pergunta-lhe: e quando terminou? Joan acena com a mão voltada para trás. Esse gesto nos revela que a ligação, a conexão, a energia vital da presença do morto se foi, não sem dor, mas não é mais do mesmo jeito. A escrita era a conexão, a lembrança, quando ela finda a obra ocorre a compreensão de que não haverá retorno, está sozinha.

Por me interessar pela temática do luto, comprei os dois livros dessa brilhante autora, verdadeiros tratados sobre a dor que dói quando da perda de alguém que amamos, no caso de Joan Didion a dupla perda. Aos 70 anos está sozinha para enfrentar seu envelhecimento e sua própria finitude.

No documentário ela relata seu processo do luto e com ele observamos que o tempo ameniza e acalma a alma e impulsiona ao movimento novamente, depois de uma parada obrigatória para sentir e chorar a perda.

“Todos sabemos que, se vamos continuar vivendo, chega uma hora que devemos deixar nossos mortos:

Liberá-los, mantê-los mortos.

Deixá-los irem com as águas.

Deixá-los se tornarem a fotografia em cima da mesa.

Tendo absoluta consciência de que isto não torna mais fácil, deixá-los irem com as águas.

Eu não queria que o ano no qual cada um deles morreu chegasse ao fim.

Eu sabia que, com um novo ano entrando e à medida que os dias passavam, certas coisas aconteceriam.

Minha imagem do momento em que eles se foram seria algo que aconteceu em outros anos.

Minha sensação de John e Quintana, John e Quintana vivos...

Tornar-se-ia mais e mais longínqua, suavizada, transmutada em algo para facilitar a minha vida sem eles.

Na verdade, isso já está acontecendo.

Por uma vez na vida, deixe-os ir”.

Nesse relato, Joan transcreve o seu processo de luto, do dar-se conta que a passagem do tempo ameniza a dor tornando-a menos intensa. Os dias começam lentamente a ter novas perspectivas e a vida volta ao seu curso, não da mesma forma e nem do mesmo jeito, mas volta, não sem dor, recolhimento, choro e silenciamento que podem durar longo tempo.

Um dia permitiremos que eles partam, deixando-os ir e nos permitiremos ficar e seguir em frente sem nossos entes queridos, até a nossa própria partida chegar.

Um documentário sensível e que nos ajuda a refletir sobre as perdas ao longo do ciclo vital. Joan Didion transformou sua dor em palavras dando som a elas, que reverberam em nós com profunda intensidade. Escreveu sobre sua dor, sobre seu lamento e sua inconformidade pelas ausências e se manteve firme, se fez presente nas ausências e superou a dor seguindo teimosamente em frente.

 

 [Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados] 

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