10 janeiro 2021

DEVOLVENDO LIVRO-SACRAMENTO – Memórias e afetos da PESTRAF-CO.

 



Querida Cida, 

Há uns 20 anos, quando  ainda começávamos a PESTRAF Centro-Oeste , você me emprestou o livro “Pantaleão e as visitadoras” do Mário Vargas Llosa, em Português. Acho que foi depois de uma das entrevistas da Verinha  com familiares de uma mulher trans que havia migrado para a Suiça, lembra? O sobrinho havia procurado a equipe de pesquisa e queria falar da tia e da migração.  Era um discurso discordante do oficial. Havia uma mulher trans que havia migrado e não queria ser caracterizada como traficada.  

Ah, como aprendemos... A equipe do Centro-oeste era porreta, com raríssimas exceções (nem lembro... existiram?). Todas nós aprendíamos muito enquanto íamos levantando os dados. E os maiores aprendizados não rolavam somente nas nossas oficinas de sistematização... tinha muita cumplicidade entre nós nos bares e neles liberávamos prá falar abertamente e aí íamos nos constituindo equipe de trabalho e de afeto.  

A PESTRAF tinha mais dúvidas que certezas, talvez porque freiriando a gente acreditava que nossas cabeças caminhavam e rolavam entre tão poucas pesquisas anteriores e o mundo a nos abrir frestas do real... a Aldayr e suas estratégias de trocar pesquisadores, colocando a Ludmila em uns lugares e o Marcelo em outros... a Perla (num guento de tanta beleza) fazendo rua com adolescentes e o Pedro que tirou os brincos, a Angelita se enfiando nos jornais empoeirados kkkkk e a gente desesperada sem cumprir os prazos...  

Tudo confidenciado no bar do Helvécio em Gyn e no Parks em CGR... Minhas deusas... e os arranjos todos do Mato Grosso com Tetê, Dulce, João Carlos... Leva Pedro, traz Pedro...kkkkk 

Quando a metodologia num dava certo, ah, a Mariluce era chamada e ela sempre dizia: gente, vocês são muito boas... nem precisavam de mim e a gente adorava precisar dela. E a rocha que se emocionava chamada Roney! Nenhum pé em falso, nenhum prazo descumprido e, a cada caso levantado, escrevia e, quando falava dele soltava a alma pelos olhos em forma d´água... E a pé-de-boi Samu... essa era um caso à parte. Dava nó em cada pedra que se apresentava... (vulgarmente conhecido como estratégias de pesquisa kkkk) e trazia os dados até quando o povo dizia que não ia liberar. Quase ficamos detidas na Bolívia porque ela resolveu copiar a agenda do alcadekkkkkkkk.E pensar que não tinha telefone com fotografia. Imagina hoje ela fazendo o furdunço! 

Tínhamos tantas dúvidas sobre migração, tráfico de pessoas e a relação disso tudo com a prostituição que a pesquisa caminhava pelas estradas metodológicas e pelos trieiros que construímos... a Anna e suas articulações prá chegar aos processos... foi demais! E rolavam espetinhos – tinha até de língua de vaca – e cervejas enquanto a gente ficava tentando acertar o nome prás trabalhadoras do mercado sexual. Vezes eram as prostitutas, outras vezes o politicamente correto do Ministério da Saúde de profissionais do sexo e a gente cambaleante prá não brigar com nenhum movimento e seguir a pesquisa. E o povo do trabalho escravo brabo com a gente... vixe! Foi muita negociação e aprendizagem... 

E a cada vez nos lembrávamos do Pantaleão. Verona, Black, Railda e até o pessoal do IBISS que administrava o projeto enórmico e complicado entrava na conversa sobre que nome dar às mulheres. Verdade é que eu trouxe para Campo Grande o bendito do livro e ele foi passando de mãos em  mãos... cada um que lia queria conversar sobre tudo, mas principalmente sobre processo de trabalho, riscos em saúde e proteção coletiva. E o Pantaleão que organizava o trabalho até com revistas pornô pros homi não demorarem muito e as mulheres atenderem mais soldados do exército peruano.  Lembro até o Bahjat que nos dava jovens ensinamentos sobre o curso que fazia de sexualidade na USP. 

Não sei com quem está o livro agora... será que continua andante espalhando perguntas ou está em alguma estante como um troféu? Pode também estar com alguém que fica olhando pra ele e pensando: cadê a coragem prá ler? Pode ser que seja alguém de que lá prá cá “virou evangélico-capitalista” e agora guarda o livro errante e pecador... vai que, né? Eu quero mesmo é que o livro das visitadoras esteja por aí com suas letras caminhantes compondo lutas com literatura. 

Fato é que me perdi do livro original e sinto uma falta imensa de sentir o cheiro dele. Betto diria que ele é o símbolo de um sacramento. É uma presença física que traz uma presença que está longe – um cheiro, um sabor, um objeto... tudo é sacramento.  

Hoje aqui no Sossego da Diane nos lembramos  da história que você e mais algumas pessoas do Goiás tomam cerveja com gelo. Primeiro alguém que não sabe da história achou esquisito, depois contato que inicialmente foi um gesto de protesto pela deseducação de um professor doutor abestado que deu bronca no pai que não colocou a cerveja prá gelar e serviu com gelo. Vocês, de pronto, como grupalmente o são, ficaram ao lado do velho, passaram a tomar cerveja com gelo e o filho calou-se... Será que o professor votou no oxiúrus? 

Mas voltando ao livro, depois que me perdi dele fiquei com a sensação que eu tinha um débito grande na nossa caderneta de histórias e afetos. E, eis que voltando de Manizales na Colômbia, fizemos aquelas 8 horas de aeroporto e eis que em Bogotá... tchantchantchan... encontrei “Pantaleón y las visitadoras”. Você imediatamente foi incorporada à viagem... contei prás pessoas da PESTRAF, comecei a ler trechos do livro... Rodrigo e Assis até esqueceram-se do meu banho de água com gás e passamos a falar dos aprendizados. Veio Rosarina,  Lourdes, Gabriela, Rejane, Leda e as meninas mais novas... a Bruna, Monique... e você lá... no meio da conversa. Sempre nós aprendendo com as putas! 

Fiquei falando do seu rosto redondo, suas mãos claras e delicadas enfeitadas com anel-pulseira das músicas que pedia sempre pra tocarem como Cuitelinho (Diane também falou que chalana!) e você cantarolando enquanto colocava mais um cravo na boca. Vou ter que experimentar cravo e cerveja com gelo... será? Quando tavo aqui procurando um link no jutube encontrei um que você vai adorar... tem um monte de cuitelinhos desenhados e já imaginei: será que a Malu tá desenhando cuitelinhos? Bem que podia fazer um prá mim, né?  (ah, no vídeo tem um trem errado... Sérgio Reis e Almir Sater podem até ter cantado essa canção, mas num são autores, não!... oh internet que desinforma a gente, cruzcredo)



Comendo bandeja paisa, tomando café e fazendo o engordante doce de leite com café entrar até pelas narinas, fui descrevendo o bar encardido (nenhuma goiana gostava que eu o chamasse assim,  mas fazer o que? Era pintado de amarelo esquisito!!!) e o Dudu fazia de conta que não escutava... eu falei da cerveja com gelo lá no Bogotá, mas ninguém topou... kkkk não eram revolucionários o bastante! 

O livro ficou guardado por quatro anos e ficamos sem nos encontrar com tantas pendengas pós golpe de 2016 e agora saporra da pandemia do covid-19. Nossas vadiagens incomodantes ao mundo estão muito diminuídas e essa tal de militância pela internet nem deixa a gente se abraçar e beijar... e nem ver a emoção umas das outras...  

Fato é que enquanto o livro ficava aqui por cima da mesa, movendo-se pela estante, conversando comigo feito você, todas as vezes que me encontrava com ele era uma historinha aqui, outra acolá... E sempre a confirmação que a gente falava: “nóis é ruim, muito ruim, mas é o melhor que há nesse Brasil”. Não dá prá conversar sobre a garantia de direitos no centro-oeste sem falar de nós, da CIRCO... as palhaças sim fizeram história para o Brasil. Lembro até que foi no encontro da CIRCO que a Karina e o Márcio começaram a namorar.... kkkkk 

E o bom mesmo é saber que sempre fomos uma cachoeira de denúncia, de anúncios, sobretudo de vivências e, sem essas as outras duas não seriam nadica de nada. Nós do centro-oeste, especialmente nós da PESTRAF sabemos que podemos contar uns com os outros...alguns para toda a vida. Entrar na casa, fazer-se família uma das outras. Mesmo sabendo que alguns se perderam no caminho, como diz o Beto Guedes.  

A maioria de nós, desse povo que se fez teia é dos pobres da classe trabalhadora. Quase ninguém se deu bem financeiramente e temos um legado imenso à sociedade e uma herança a deixar pros filhos e netos: onde quer que estejamos, poderão procurar essas bruxas e usufruir de seus colos.  

Envio-lhe o livro pela Diane e fico lhe devendo o beijo do João e do Luca que você sempre manda e eles ainda não lhe devolveram... ah, não esqueci da sopa paraguaia e da música... bem essa achei uma versão linda. 

Ah, não esqueci, seu emeio continua sendo ruiva2001 mesmo você radicalizando no branco! E eu? Saí do vermelho e fui pro roxo! 

No mais, afeto em abundância. 

Estela Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O que tem a dizer sobre essa postagem?

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog