02 fevereiro 2021

CADERNINHO DE VIAGENS IV - CANTIGA DAS RUAS DE LISBOA

 


Maria Amélia Mano


publicada em: 11/03/14



Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir

Fernando Pessoa

Canto o amor na voz de uma saudade ou na voz de uma cidade? E me pergunto tentando entender a letra do fado que me encanta enquanto admiro as inscrições nas paredes das ruas de Lisboa. Os nomes das ruas são eternos. Assim como as placas. Em uma dizia “miradouro”... Achei lindo jeito de se dizer. Como se fosse esconderijo de ver, refúgio da mirada.

  Mas, diferente das ruas e placas, o que se escreve no muro é temporário, como nós. Queria ter tempo para ver todos, fotografar todos. São simples, alguns viscerais. Uma palavra, única, não consegui registrar em foto! Não consegui acessar, ter ângulo para clicar. Ficou na memória, aquela palavra solta impressa no muro. Não uma palavra qualquer... Essência... Essência era a palavra, linda...

“Ai, minh’alma me diz quem eu sou... Ai, minh’alma me diz pra onde vou”. Novamente o fado.  As meninas foram ver um castelo, mas não quis. Não quero castelo. Quero as ruas e as coisas que estão perto, coisas simples: casas, sombras, crianças, histórias, as pequenas livrarias, as pequenas conversas ouvidas às escondidas e um pouco da boa solidão. Solidão nublada, sem silêncios, mas com o arrulho, o barulho dos passos e das risadas, do vento nas oliveiras, vento de um inverno que já se vai, com sabor de café e pastel de Belém.

A cidade e suas ruas mágicas me pertencem e eu pertenço a ela. Fernando Pessoa me dá a mão para caminhar com ele:

“Vou num carro elétrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adiante de mim. Para mim, os pormenores são coisas, vozes, letras. Entonteço. Os bancos do elétrico levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em vidas, realidades, tudo. Saio do elétrico exausto e sonâmbulo”

Somos parceiros de caminhada, mas eu tão pouco poeta! Mesmo assim, olho as fotos e sei que cada cor merece um sabor, um cheiro, uma palavra. Junto todas em um olhar que quer dizer, quer contar, quer cantar:

O olhar que quer cantar...

Olhando as fotos, rabisco um poeminha estranho a partir das palavras, palavras  empoeiradas de bonde e as lágrimas de um fado que abre as janelas antigas com floreiras repletas de alma. A alma da música que diz quem eu sou e pra onde vou. Acho que pra poema é muito e chamo cantiga... Porque é cantiga que canta e é canção que ouço nas ruas. 

E segue caminhando minha cantiga, de mãos dadas com Fernando Pessoa, buscando em cada pedra no chão e em cada planta que nasce entre as pedras, a essência do dia, a palavra que não encontro :


CANTIGA DAS RUAS DE LISBOA


No Largo das Portas do Sol

É sempre a mesma cantiga

Canção de salão de chá , e fidelidade

Nos Arcos das Portas do Mar

É sempre a mesma cantiga

Cantiga de pecado  e mercearia

Ah, quem dera a cantiga doce

Da viola-vida que é só uma

E é miradouro, fado e destino

Fosse cantada como fruta – semente

Entregue a domicílio, na porta

Com um bilhete de amor

Poesia com palavra única

 Invisível felicidade do tempo:

Essência



Amélia, Lisboa, 10 de fevereiro de 2013

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