20 fevereiro 2021

LOUCURA DO LOUCO


 Maria Emília Bottini

Tenho um amigo bombeiro que se lembrou de mim dia desses, devido ao fato de que em meu doutorado ter estudado a temática morte.

Contou-me que viajou para o velório de uma prima que havia morrido em um acidente de carro inesperadamente.

Muitos familiares acompanharam as últimas homenagens, mas também o ilustre João, personagem famoso na cidade, não por aparecer em televisão ou Big Brothers da vida, mas por acompanhar todos os velórios sem perder nenhum. Acompanhava as orações e cantos que sabia de cor e salteado, só se permitia ir embora quando o morto já estivesse em baixo da terra. Isso deu sentido aos dias povoados de imaginação e loucura.

Certo dia, um senhor faleceu e foi sepultado em outra cidade. O corpo foi devidamente preparado e colocado no carro fúnebre para a viagem de destino. Sem que ninguém percebesse, João instalou-se confortavelmente junto ao caixão, seguindo viagem tranquilamente.

Durante o trajeto com a trepidação no asfalto, adormeceu em companhia ao morto, que dormia seu sono eterno. Ao acordar meio sem entender o que se passava, abriu a janelinha que dava acesso ao motorista e pergunta-lhe para onde estava sendo levado.

O pobre do motorista não fazia ideia de que não era o morto a falar e sim o “acompanhante” do morto. O condutor que estava completamente absurdo em seus pensamentos e achando se tratar do morto, perdeu o controle do veículo, ao controlá-lo saiu do carro em disparada.

João tinha em sua loucura a liberdade, a licença para brincar de morrer várias vezes.

Talvez com a morte de outros e sem que pudesse compreender completamente por suas diversas dificuldades mentais, ele também morria um pouco em cada morto velado, rezado e sentido.

É o que todos nós fazemos quando vamos a um funeral, choramos nossa morte, nossa finitude e a dor da perda de quem nos era caro.

Até que o dia em que João assumiu o lugar do morto a ser velado, pois havia chegado sua hora. Então a cidade precisou encontrar tempo para se despedir de seu ilustre brincalhão, que passou a vida de idas e vindas em velórios. Velando mortos, passou a vida. Não fugia do encontro com a morte.

Findou-se os dias de João, já não era mais possível brincar de morrer/viver. E a morte parceira de sua vida, veio buscá-lo provando que sua memória é de fato infalível, nem dos loucos se esquece.

 

 [Maria Emília Bottini publica no Rua Balsa das 10 aos Sábados] 

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