Tenho em mim uma criança viva profundamente amada, cuidada, disputada pelo amor de adultos e de primos, primas, professoras e amigas.
Evidente que muitas violências, choros, perdas e machucados ocorreram... mas nada foi tão grande quanto o amor que me foi destinado. A maioria não pedia nada em troca.
Esse alimento apaixonado me guia em muitos trieiros que percorro. E, na luta pelos direitos das crianças, minha história é minha medida de amor. Fui rigidamente educada para cumprir tarefas e ainda hoje tenho culpa quando perco prazos, horários, oportunidades. Enfim, quando falho fico procurando chão. Afrouxar é difícil demais da conta. Educar-me como responsável responsável (sim... duas vezes e outras tantas vezes responsável... não há terapia que dê conta disso!) era uma medida de amor da minha mãe... enquanto ela costurava ou passava roupa eu ficava ali, fazendo tarefa e, quando não tinha, ela inventava.
Talvez por isso que todas as vezes que me envolvo em conferências, capacitações, grupos de defesa de direitos da infância faço questão de lembrar como a gente era na infância e conto as histórias que me enchem a alma de lembranças.
Às vezes me emociono tanto nas histórias que choro, mas sempre lembro das ordens recebidas e das desobediências que eu fazia como necessárias prá ser feliz.
Quando fui à Consulta Nacional, lá em 2008, numa época em que o Brasil tinha governo prá garantir direitos, tive o desafio de pensar nos direitos das crianças em situação de migração. Conversei com algumas mulheres, alguns jovens que tinham vivido essa realidade e fui à Brasília encontrar com gentes que fazem políticas grandes, dessas que pensa cada criança e pensa o mundo.
Chorei largado (como diria o Moacir Franco) quando saí do evento. Estávamos construindo a história dos direitos da infância no Brasil. Que emoção foi aquela que me tirou do lugar do pensar e me colocou no lugar do sentir sem pedir licença?
Constituirmo-nos como “nós” era o que havia de melhor. Guerreamos, debatemos, brigamos prá chegar a consensos do que podiam ser os avanços dos direitos na infância de todas as pessoas em desenvolvimento que viviam no Brasil. As denúncias, nenhuma rechaçada e sempre assumida pelo governo brasileiro como sendo necessária enfrentar. Eram tempos bons de fazer política. Alguns mais críticos, outros severos e outros ajuntantes de ideias... a certeza é que a utopia caminhava à frente.
Tínhamos conversas profundas e outras amenas... mas todas políticas. Ainda lembro da tristeza de alguns quando lembravam que o Toquinho havia vendido a música Aquarela prá Faber Castell... alguns já não cantavam mais... eu, fazendo de conta que não sabia da venda e das posturas políticas do distinto, continuava cantando....
Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo
E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo
Corro o lápis em torno da mão e me dou uma luva
E se faço chover, com dois riscos tenho um guarda-chuva
Aqueles eventos não acabavam no encerramento. A gente saía em bando, íamos ao aeroporto de Brasília e vinha distribuindo gente a cada escala. No vôo da TAM para Campo Grande, por exemplo, vinha Cuiabá e Rondônia e cada grupo que saía, a aeronave inteira percebia que havia um grupo, uma coesão, gente que ia e vinha da luta. Não se tinha medo de dizer-se da luta... não tinha perigo de apanhar no avião.
Depois de Cuiabá viemos em cinco. Nem sei se todes tinham a dimensão do que estávamos vivendo, mas eu estava literalmente nas nuvens. Sonhava com uma proposta nacional para viabilizar a prioridade das políticas sociais para a infância.
Nunca sonhei que a política econômica pudesse priorizar a infância. No capitalismo isso é impossível. A economia caminha em si e não a serviço dos humanos. Bem que no ECA nós escrevemos que a criança e o adolescente são prioridades absolutas... mas quá... só a gente que estava na luta é que sabia o que estava escrevendo... o Congresso Nacional e o Collor não tinham ideia... foram levados pelos apelos à infância... e, com discursos vazios e abestados aprovaram por unanimidade. Ainda lembro da gente no buteco rindo das nossas peripécias para aprovar o ECA. Ah, capitalismo... esse decifrável tão alienante que muitos militantes da infância sequer o questionam... oh vida...
Lá em cima, nos tantos mils pés, perguntei o que tinha mais gostado e Sulene, terena urbana, me respondeu que o que mais gostou da viagem era perceber que estava no meio das nuvens. Fiquei num encantamento maior e pensando como ela havia percebido tudo o que havia vivido. A guria de 14 anos falou que descreveria na família, na mesma noite, que não tinha podido pegar as nuvens por causa da janela do avião, mas que tinha entendido que também se podia ficar nas nuvens quando se sonhava. Ela não parava de rir.
E eu? Eu ficava que era só felicidez.
Daí, com a curiosidade saindo pelos poros, perguntei o que ela sonhava e ela respondeu que era sempre encontrar outras vezes, muitas vezes, mais jovens como ela, de tudo quanto é jeito como tinha sido no evento e poder sonhar coisas pro Brasil inteiro. Quem sabe um dia encontrar de novo os jovens e ver se alguma coisa tinha acontecido do que tinham proposto. Aí falou que tinha ficado surpresa que eu me emocionava quando falava... pensava que eu era mais séria.
Peguei o papelinho que estava escrevendo e mostrei prá ela.
2008 – No avião TAM
Voltando da Consulta Nacional
De Cuiabá a Campo Grande
22/10/2008
De tanto amor sentido
ainda sinto fios...
Sufocava tanta paixão
(que o pulmão ainda respira)
ah, era bom o barulho da vigorelli
o cheiro da massa crua do pão
o bife na chapa,
o Pirulito e o Tostão...
O tombo do abacateiro
escorregar no batedor e lama nos pés
dia de sexta-feira santa sem pentear o cabelo
dormir sem lavar os pés depois da queimada
balangar na seringueira e jogar bolita depois da enxurrada...
Só fios, sem trança, sem rede...
caindo no vazio de chegar
Sulene leu, leu e leu de novo... acho que queria perguntar... Depois disse: você tem boas lembranças, né?
E eu: mas teve coisas ruins também...
E ela: Mas o bom foi mais, né?
E eu: é que ajuda a superar o ruim... eu acho...
E ela: então o que é bom é que coloca a gente nas nuvens... Então vai ver que é por isso que você quer que as crianças também tenham coisas boas...
Fiquei sem falar nada. Embarguei. Aterrissamos!
Estela Márcia Rondina Scandola, 58 anos sorvendo a vida mulherida, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada. A foto de hoje é da menina Mah Time Saito, 11 anos que também gosta de Aquarela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
O que tem a dizer sobre essa postagem?