25 janeiro 2022

Nosso quintal




 Maria Amélia Mano

Eu sou mais forte do que eu
Clarice Lispector

    Quero te contar um sonho. Foi fim de tarde de outono, apontando lua nova. Chamei a menina que fui e a velha que serei. Demos as mãos e caminhamos pela calçada de pedra entremeada de grama, brisa, sombra e bruma, e paramos debaixo de duas jabuticabeiras, uma jovem e uma antiga.

    Olhei minhas rugas, meus ramos, minhas raízes mais firmes, com a ternura de quem olha pra tudo que pede pela vida com medo do fim, seja o pequeno rato que suplica olhando a cobra, seja o último abraço triste de parceiros quando sabem que o amor acabou.

    Olhei minha pequena mão macia, minha folha verde mais tenra, meus brotos, com o carinho de quem olha pra tudo que pede pela vida com ânsia de estreia, seja primeiro pingo de chuva na caatinga sugado com avidez de primeira mamada, seja minha pele na tua.

    Ventava leve, voavam galhos. Vestidas de pequenas flores brancas, nós três sentamos juntas no chão, risadas e lágrimas, confissões de amigas entre inícios e fins, traçando destinos e histórias, cada uma com seus medos, seus assombros, seus deuses, suas sedes, suas sementes únicas e suas paixões.

    Depois de um punhado de tempo fiado, alinhavado livre e solto com barbante de embrulho de pão recém saído do forno, chegamos a um acordo. Um pacto. Uma promessa. Te contar das nossas, das minhas cicatrizes. Para que entendas minha fingida lucidez e iluminada loucura. Para que eu tenha força.

    Acordei com saudade de mim em sobressalto e soletrei pra ti, na madrugada, cada marca minha devagar, divagar, em sussurro e sono, sempre como se aprendesse a me ler, essa cartilha cotidiana riscada em caule claro, em terra úmida e nua para tuas primeiras palavras que lavro, que lavo, que levo, leve em mim.

    Sonho intuição. Precisamos falar de cicatrizes, de meninices e velhices. Precisamos florescer na primavera e no verão. Ser frutos vermelho-vinho e pretos-brilhantes. Atrair passarinhos. Desnudar nossas polpas em água corrente. Adocicar vida na firmeza dos nossos troncos. Saber que quanto mais maduras, mais doces seremos.

    Precisamos ter um pé de jabuticaba no nosso quintal.

Ilustração: Monica Barengo
Texto parte da coletânea Marias e Clarices organizada por Rubem Penz

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