Maria Amélia Mano
Eu venho quase sem passado, desencantada de esperas, rebanho gasto, cansado, silhueta amarga mergulhada, moída, recolhida no assoalho falho de tanto abrir e fechar porta velha que, no ranger e bater de ventos e raivas, tem mais memórias do que eu.
Eu venho tangendo tristeza tanta, travessia imóvel em árido território ferido, interrompida por recusa e falta de oferta, torneira aberta eterna escapando água e vento e poeira e tempo na chapa do fogão que tem mais alimento e quentura do que eu.
Eu venho resgatada de abismo, nadando solitária de naufrágio seco em solo salgado, metade devorada por desespero, metade viva por teima e temor, corpo abafado em silêncios, todos os instantes submersos, imensos, mais inteiros do que eu.
Eu venho simplesmente, cicatriz antiga de corte profundo e sutura mal feita, feroz, sem voz, marcada a ferro, sobrevivente de cerca eletrificada, despencada da beira do mundo, lavando as calçadas sujas pisadas de ruas mais iluminadas do que eu.
Eu venho com calcanhares comidos de cal, meus canos vazados, meus calos corroídos, meus caos, meus cacos escondidos, meus campos de concentração, minhas correntes impedindo passo que paira, baila em sonhos mais coloridos do que eu.
Mas do barro ressuscito quando homem do gás, antes de sair, me escreve poesia sobre meus cachos presos que, agora, solto e mergulho no balde como pedaço de pão no café doce e forte, banho de cheiro e batismo de nova fé e felicidade sagrada, semente.
Entendi que assim como venho da terra, argila, artéria, arte e ardor. Dor. Posso ir, posso rir e ser rio, posso voar e ser ar, posso amar e ser mar, posso arder e faiscar, posso partir e nada e ninguém, nunca, terá asas mais lindas e mais leves do que eu.
Texto parte da coletânea em homenagem a Vinícius de Moraes: Horas Íntimas.
Organização: Rubem Penz
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