Para meu
amigo Julio, que não esteve comigo (fisicamente), mas não saiu de meus
pensamentos.
Não se trata de um diário real, ou melhor, não se
trata de descrever o que aconteceu ou como, mas como eu vi. Em um encontro com
10 mil pessoas (mais ou menos), centenas de coisas acontecendo ao mesmo tempo,
não tem como ver tudo ou fazer balança do encontro, seria pretensão e
desonestidade. Portanto essa crônica precisa ser tomada como realmente é: uma
visão particular do que pude ver, perceber e sentir a partir do vivenciado.
Muito de tudo isso ficou de fora, não por ser mais ou menos importante, mas
pelo recorde, pelos limites impostos pelo próprio texto.
Dia 0 – Segunda Feira
1.
O
motorista do taxi espera na porta. Eu e minhas mulheres fazemos um abraço
coletivo. O gato olha do portão com preguiça de entrar na roda. Larissa
recomenda ao motorista enquanto entro no carro: “não corra demais.” Bin Laden,
como é conhecido o motorista, diz que vai de vagar. No Rádio Roberto Carlos o
desmente: “corro demais, corro demais, só por você meu bem.” Será uma
premonição?
2. Uma da manhã de segunda para terça feira e
o aeroporto de João Pessoa está cheio. O caixa eletrônico sem conectividade.
Como cumprir a promessa que fiz?
3. A moça da companhia aérea olha minha
identidade. Sinto frio. Lembro que de novo esqueci a blusa em casa e penso: “por
que aeroportos se parecem tanto com frigoríficos”?
Dia 1 – Terça-feira
4. Chego ao aeroporto. Ninguém espera. Somos
uma trupe aguardando noticias em terra estranha. Depois de algumas horas
aparece alguém e nos leva para o hotel errado. Ainda bem, o certo era daqueles
que ninguém entende porque ainda não foi demolido.
5. Em Brasília é muito fácil para os
empresários sobreviver fazendo negócios com o governo. Ninguém fiscaliza nem cobra,
paga-se até por serviço não feito, por hospedagem em hotéis onde se pisa em
baratas.
6. Chego ao hotel às 14h00min horas, depois de
sair de João Pessoas às 01h00min. Foi ou não uma viagem longa? Fico o dia todo
esperando noticias da IV Mostra. Ninguém sabe informar o que vim fazer tão
cedo. Esperava mais ação.
7. Na portaria conheço Gregório (Greg), meu
companheiro de quarto (percebem que existe outro encontro paralelo que acontece
nestes encontros: as pessoas que se conhecem, os diálogos, os olhares, as
invejas, todas essas coisas são, às vezes, tão ou mais significativo que o
encontro principal). Gregório vem de Minas Gerais, é integrante da associação
de pessoas atingidas pelo sistema prisional. Com ele Dona Teresa, uma senhora
linda, forte, cheia de autoridade quando fala. Vieram discutir a saúde no
sistema carcerário e nosso encontro foi imediato.
Dia 2 – quarta-feira
8. Acordo cedo. Arrumo um lugar com tomada
para conectar a internet e trabalhar um pouco na UFPel/UNA-SUS. Fico a manhã
toda esperando notícias do que fazer, de como ir para o centro de convenções.
Mas só na hora do almoço aparece alguém da empresa terceirizada para informar
que já perdi o ônibus.
9. Chego as 14h00min no centro de convenções.
A fome é grande demais para aguentar até pensar em alguma coisa que não seja
arroz com feijão, mas aí lembro que em Brasília não tem feijão. Mas estamos na
IV Mostra Nacional de Experiências em Saúde da Família e aqui é diferente. Até
feijão tem, dá para acreditar? E de duas cores diferente para escolher e quem
acredita que feijão verde é feijão, dá para dizer que tem três cores de feijão.
10.
O céu
de Brasília visto por quem está com fome:
11. Na
reunião de curadores perguntam: quem pode facilitar um ponto de encontro no
sábado de manhã. Ninguém ergue a mão e penso, vi para isso? Levanto a minha. Eu
posso.
12. Enquanto o ministro fazia seu discurso na abertura da IV Mostra, o povo, na porta do auditório, dizia o que pensa de discurso:
13.
Começo
o dia facilitando uma roda sobre práticas integrativas e complementares. O
interessante é observar que os relatos ficam entre as práticas profissionais
instituídas e corporativas e as práticas populares. Porém poucas são as
experiências que não dialogam ou que são opostas uma a outra. De um modo geral
se complementam, embora os participantes nem sempre percebam assim.
14.
Conselho
grátis que dou na roda: quando ouvir algo que possa melhorar sua experiência,
anote o nome de quem falou e negocie o contato depois, peguem endereços,
troquem novas ideias. Funcionou, vi inúmeras pessoas trocando após as
experiências.
15.
É
interessante observar que alguns profissionais, até bem intencionados, defendem
trocar a prescrição de alopatia por fitoterapia, acupuntura, massoterapia ou
mesmo terapia comunitária, mas não percebem a importância de não prescrever,
mas negociar com o outro. Troca-se a terapêutica, mas não o ranço de acreditar
que quem sabe o que é melhor para o outro é o profissional. Mas essa observação
pode ser problematizada na roda.
16.
Paulo
Freire diz que prescrever é sempre a imposição de uma consciência sobre a
outra, portanto, será que faz mesmo muita diferença prescrever dipirona ou erva
cidreira?
17.
A Agente
Comunitária de Saúde (ACS) da área onde vou morar em João Pessoa apresenta um
trabalho sobre Terapia Comunitária. Linda, simpática, sorriso gigante.
18. Um fato diz mais:
19.
Mais
um furo na programação. Um facilitador faltando em uma ciranda e vou eu
substituir – muitos trabalhos interessantes sobre NASF e TeleSaúde. Até
gestoras de saúde que pensa o fazer como educação eu vi e ouvi.
20.
Até
emprego no Espírito Santo (uma Secretaria de Saúde) ofereceu-me. Pena não poder
aceitar.
21.
Uma
profissional de saúde (cargo de confiança) de um estado da federação onde que
sobra dinheiro para construir estádio com orçamento de bilhão perguntou: “é
melhor uma Clínica de Saúde da Família com 4 ou 5 equipe que funcione ou com 1
equipe em prédio de 30 metros e sem resolutividade?” A resposta parece simples:
“é melhor no bairro, perto da casa das pessoas e que funcione”. Será que dá
para simplificar tanto assim, será que só existe mesmo duas opções para cada
coisa? Fico em dúvida se pensar duas opções apenas é miopia ou ideologia pura e
simples. Lembro-me de um tempo (quando proibiram o trabalho infantil) que se
perguntava muito: “prefere uma criança trabalhando ou roubando?” Sempre tive
minha resposta: “prefiro estudando, brincando, cantando, fazendo arte.”.
22.
Assisti
um trabalho extraordinário vindo de São Paulo: conversa de boteco. A estratégia
mais simples do mundo: se os homens não vão ao posto de saúde, vamos ao bar
encontrar os homens. Vida inteligente na Estratégia Saúde da Família?
Dia 4 – sexta-feira
6. Olhei para uma tenda, mas vi mais caciques do
que índios. Voltei. Tinha índio de verdade andando pelo centro de convenções,
cantando, fazendo rituais de cura, resolvi segui-los.
23.
Para
todo lado que olho há alguma coisa acontecendo. Propostas interessantes,
instigantes. Gente com vivências extraordinárias representando o novo e o
inovador. Fico pensando que é pena esse universo representar uma parte tão
pequena da realidade do SUS.
24.
Depois
do almoço Aldenildo me resgata na piscina para ver um trabalho na sala I20. Juntam-se
palhaços de João Pessoa (PalhaSUS), drag queen de Recife (Viviane Viva Voz) cantores
de Aracaju (Núcleo de práticas inovadoras) e profissionais de saúde
comunicadores de Brasília (Graduação em Saúde Coletiva - UNB) para celebrar um
SUS quase invisível. Fico alegre pra caramba vendo amigos e futuros amigos se
conhecendo.
25.
No
ônibus de volta ao hotel Eymard dá uma aula sobre como trocar a raiva
(indignação) pela percepção de oportunidade de pesquisa para entender porque se
faz assim ou assado. Fica a lição: a gente pode aprender até andando de ônibus!
26.
Será
que roda de conversa consiste apenas em por pessoas sentadas em circulo ou tem
algo mais?
27.
Educação
popular é o método, as dinâmicas lúdicas, a presença do educador popular ou tem
algo mais?
Dia 5 – Sábado
28.
Chego
cedo. Vou facilitar outro ponto de encontro. Saúde bucal. Um povo igual nunca
via na vida. Trabalhos extraordinários. Um dentista do leste de São Paula, com
um trabalho de dar inveja, reclama da falta de apoio da Enfermagem. Eu que
sempre reclamo do trabalho isolado dos dentistas me desculpo. Josivan,
Enfermeiro do Maranhão também se incomoda e se desculpa. Seguimos nos relatos.
29.
Duas
experiências com ACD e TSB fazendo trabalhos fantásticos descolados dos
dentistas. Um mundo novo acontece longe dos holofotes.
30.
Lançamento
do Caderno de Educação Popular (chego no finalzinho – quase sem querer - várias
pessoas que já conheci) – digo: posso levar revistas para meus colegas? A moça
que distribui, desconfiada pergunta: é para gente que trabalha com educação
popular mesmo?
31.
Na
saudação final o coordenador de Educação Popular em Saúde do Ministério faz uma
saudação (ao seu) mestre maior: PAULO COELHO.
32.
Fico
sem saber porque a moça do Ministério desconfiou que eu não iria entregar o
Caderno de Educação Popular para pessoas dignas, mas não corrigiu seu chefe:
“chefe, não é Paulo Coelho, é Paulo Freire”.
Dia 6 - Domingo
33. No café da manhã Renata (do encontro
paralelo que mencionei no dia 1) conta suas peripécias dos tempos de infância e
solta essa: “eles não eram gente batizada”.
34. A conversa rola solta para gente não morrer
de fome. Gregório vai para Belo Horizonte eu e Renta para João Pessoa. Aprendi
muito com ele, ela e com a Mostra. No final de horas de conversa (fiada, mas
muito séria) pergunto aos dois: já escreveram isso?
35. 01h48min de segunda-feira cai um toró em
João Pessoa. Minha mochila sai do avião cheia de água, Bin Laden me espera no
estacionamento.
36. Quando bato na porta de casa Larissa abre
com cara de sono. Alice me abraça.
37. Valeu a pena passar por tudo.
[Ernande
Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 todas às 6tas]