Mostrando postagens com marcador Família. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Família. Mostrar todas as postagens

15 julho 2016

ALICE, CONTANDO ESTÓRIA

Ernande Valentin do Prado
Dias destes estava com Alice e Bene na orla de João Pessoa. Bene contou uma linda história sobre sua irmã, Luzia, que, segundo ele, desde crianças tinha solução para todo e qualquer problema. Para ilustrar, contou essa história, que depois gravei na interpretação de Alice.

Eu gostei muito, espero que gostem também.



[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

08 abril 2015

Novena

 
Quando eu estava no auge dos meus nove para dez anos, minha avó decidiu me explicar sobre a novena. Afinal, ela ficava à noite rezando e ninguém podia interrompê-la. Silêncio absoluto e eu ficava sentada no sofá vermelho com flores pretas e brancas com cheiro de casa de vó assistindo. Então ela me sentou na sala e explicou sobre a novena das três Ave-Marias, como rezar o terço – bolinhas grandes, bolinhas pequenas.

Nunca fui boa em decorar as orações. Trocava a ordem do credo e no Santo Anjo eu criava minhas próprias palavras porque não entendia o que eles estavam falando. Mas minha avó falou do poder da novena, nove dias rezando, vários Pai-Nossos e várias Ave-Marias – ajoelhada no chão que era importante o sofrimento! Eu ouvi com muita atenção e ela falou que se eu desejasse com muita fé, mas muita fé, iria se realizar. Seu eu orasse com todo o meu coração e devoção, toda a minha fé de nove anos de idade eu iria ter meus desejos atendidos.

Então ela anotou em um papel a novena e explicou que até gente muito doente tinha se curado com a novena, que quem estava mal na escola tinha passado de ano, entre tantos outros milagres. Eu fiquei maravilhada com o poder de rezar. Ela me explicou que eu poderia fazer três desejos como: passar de ano, tirar uma boa nota, entre outros. Mas em geral eu era uma boa aluna, não tinha ninguém doente em casa, parecia que tudo ia bem. E a advertência era clara: “não podia contar para ninguém o que eu tinha desejado. Se não, não acontecia”.

Então fiz meus três desejos por ordem de importância, os dois menos importantes eu não lembro. Mas o mais importante de todos eu lembro! Rezei por 9 dias ajoelhada no chão com a minha avó, e alguns dias sozinha no meu quarto, com toda a fé do meu coração, ficava ajoelhada até os meus joelhos ficarem vermelhos e com a marca do assoalho do chão, considerei até jogar milho no chão como tinha visto na novela. Mas achei que minha fé era boa para não precisar, porque perguntei para a minha avó e ela disse que rezar com milho no chão  era só para quem tinha feito algo muito ruim.

O meu desejo, acho que agora posso revelar sem medo se vai acontecer ou não, era, pasmem, que os Pokémons existissem!  Rezei com toda a minha fé de 9 para 10 anos de idade para que eu acordasse depois dos nove dias de reza intensa e encontrasse as pokebolas no meu quarto, ou para que o Professor Carvalho (personagem do desenho Pokémon) me enviasse uma mensagem e eu tivesse que escolher entre uma das criaturinhas para começar a minha jornada de treinadora de Pokémon.

Não preciso contar a minha decepção ao acordar depois dos nove dias e ficar esperando os Pokémons aparecerem. Já estava imaginando como seria na escola, eu não ia contar para ninguém, mas saberia que eu que tinha trazido os Pokémons para o mundo. Já tinha até um plano B se o professor Carvalho não me chamasse para ser uma treinadora, eu iria capturar um Pokémon selvagem!  Esperei para encontrar a minha avó e pedi para ela quando que o desejo acontecia, ela disse que “às vezes toma tempo” e advertiu que era preciso muita fé. Fiquei decepcionada e perplexa com a minha fé assistindo jornal e esperando que a manchete na televisão dissesse que os Pokémons eram de verdade e que estava recrutando novas crianças para treinar. 

Depois eu quis as corujas do Harry Potter, ou um armário para Nárnia e até fiquei sabendo que teve criança que desejou raio lazer verde como um dos três desejos da pulseira que arrebenta com o tempo do Padre Cícero. O tempo passou, não tive a minha Pokeagenda, mas sentei e tive uma conversa muito séria com um garoto que entrou com um boné do personagem principal do Pokémon. Não precisei nem de um segundo para reconhecer e perguntar para ele onde estavam as pokébolas, entre exame físico e conversas com o pai discutimos sobre qual Pokémon ele escolheria para iniciar a vida de treinador Pokémon, quais ele captaria e como cuidaria deles. Ele sorriu e até ficou um pouco melhor da amigdalite.

"Pelo mundo viajarei tentando encontrar. Um Pokémon e com o seu poder tudo transformar..."

Voam abraços,

Mayara Floss

02 janeiro 2015

LEMBRANÇAS SIMBÓLICAS

Ernande Valentin do Prado

Fogão sujo e cama desarrumada são as imagens da pobreza. Pensei nisto enquanto limpava o fogão e conversava com Larissa que lavava a louça do almoço.
- Deve ser pelas imagens que viu nas favelas de Curitiba, era o que tinha, acho que as pessoas não tinham onde guardar ou porque faltava agua encanada. Disse Larissa.
Deve ser, respondi, mas acho que é uma lembrança que vai mais longe. Minha mãe limpava o fogão, ficava uma beleza. Alias a cozinha toda ficava uma beleza. Tudo limpinho, organizado. Panelas de alumínio brilhando, louça secando no escorredor num arranjo impossível de ficar em pé, mas ficava.
A mesma coisa com a cama. Minha mãe arrumava o melhor que podia sua cama. Era a primeira coisa que fazia ao levantar pela manhã. Arrumava a cama, estendia a colcha para enfeitar e era assim que deveria ficar até a hora de dormir. Casa varrida todos os dias, encerrada, cada coisa em seu lugar, organizada.
Tento reproduzir toda essa organização, toda essa limpeza da minha mãe em tudo que faço na vida. Levanto pela manhã, arrumo a cama, escovo os dentes (quando Larissa avisa que o café está pronto), arrumo a mesa, tomo café sentado no mesmo lugar, com a mesma xicara que ganhei de minha mãe. Depois tiro a mesa e volto com o mesmo vaso feito pela minha irmã. Sento no meu escritório (na minha cadeira e escrevo no meu computador): começo qualquer texto pelo título, depois monto o esqueleto com suas partes e só depois faço o recheio.
Meu pai não. Ele era diferente. Sempre foi a imagem do improviso, da agilidade mental, da genialidade, da ironia de canto de boca, do olhar que atravessa. Sempre se pareceu com o cientista louco que sabia resolver qualquer coisa, mas que não estava bem ligado no mundo. Ele sujava o fogão derretendo queixo diretamente na chama (e não limpava, é claro – ou melhor, iria limpar depois). “Guardava” tudo que podia (nunca se sabe quando se vai precisar de um pedaço de fio elétrico ou uma torneira velha). E nunca arrumava a cama ou tirava o sapato dos pés para pisar no chão brilhando. Brigas? Até hoje é assim.
Minha irmã mais velha tem muito do meu pai e da minha mãe juntos. Consegue ser original, criativa e organizada ao mesmo tempo. Cozinha como ninguém, borda, costura, faz artesanato (inclusive o vaso que fica em cima de minha mesa) e tudo sabe dar um jeito, ninguém fica sem resposta com ela. Teve todo tipo de revés na vida, mas acorda e continua esperançosa. Falei com ele ontem, arrumou um emprego novo (repositora em uma rede de supermercados, mas disse que a meta é ser gerente da loja em breve).
Minha outra irmã tem o humor e a leveza de meu pai. Consegue deixar a louça suja em cima da pia e ir ver TV (coisa que admiro), mas não consigo achar muito confortável. Tem resposta para tudo e agilidade mental impressionante. Não guarda rancor, mas parte para ignorância com facilidade, sobretudo quando sente que estão querendo lhe enganar. Sempre tem uma piada infame, uma maneira de relativizar tudo. Um coração gigante que todos acolhe sem distinção, inclusive centenas de cachorros.
Sinto muito falta dele e delas.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

11 abril 2014

CONVERSA CORRIQUEIRA (QUASE VERDADE)

Ponto de partida - Ernande (2014)

Ernande Valentin do Prado

Estou deitado em um colchão jogado no chão da sala. Larissa ao meu lado. Estou lendo Ao encontro da Sombra (para um seminário do curso de Eymard). Ela não para de falar:
- Faz uma semana que não nos falamos, sinto falta de lhe atrapalhar. Você não sente falta de ser atrapalhado?
- Sinto, respondo de sobrancelha (como me ensinou Mavie Elói).
- Amor, quero lhe atrapalhar, quero lhe atrapalhar, quero lhe atrapalhar.
- Sou mais produtivo quando você e as crianças me atrapalham.
- Eu sei, ela responde de sobrancelha. Sinto falta de lhe atrapalhar mais vezes.
Leio mais um pouco:

Sou um autodidata por natureza. Valorizo o aprendizado pela experiência. Muitas vezes, quando fixo meu pensamento e minha atenção num assunto, as sincronicidades ocorrem. Algum evento significativo — mas não causalmente relacionado — acontece na minha experiência exterior ou às pessoas que conheço. Sinto-me, sempre, renovado e confortado por essa resposta tão imediata. Esses eventos me trazem a confirmação daquilo que é real e verdadeiro.

- Tá sentido?
- Tô.
- Tava com saudade da minha comida?
- Muita.
- O cheiro tá invadindo a sala. Essa casa é toda esquisita, mas não importa onde a gente more, o quanto façam remendos na casa, ela acaba fincando com nossa cara.


- Verdade.

Políticos, de esquerda e de direita, continuam a não entender as coisas. Eles acham que o inimigo desaparecerá no instante em que mudarmos a maneira como nos servimos das nossas armas. Os conservadores acreditam que o inimigo se assustará e ficará manso se tivermos armas maiores e melhores.


 Alguma coisa me atrai no mar: a imensidão azul, o barulho das ondas, não sei explicar.
- Vai ver você foi um golfinho na outra vida.
- Não sei, talvez tenha sido...
- ... Um peixe espada que faca a gente (como dizia a Alice dos 3 anos).
- Preciso escrever isso. Estou sem assunto para sexta-feira (dia de postar no Balsa das 10).
- Tinha um cara no terminal de ônibus hoje cedo com um peixe enorme. Era tão grande que o rabo arrastava naquela água de esgoto que corre lá. Daí a pouco ele voltou, disse que vendeu o peixe por 200 reais.

No entanto, por mais que eu possa protestar, um olhar honesto sobre mim mesma e meu relacionamento com o resto do mundo revela que eu também sou parte do problema. Já percebi que, num primeiro contato, desconfio mais dos mexicanos que dos brancos. Percebo meu apego a um padrão de vida que é mantido as custas de pessoas mais pobres — uma situação que só pode mesmo ser perpetuada através da força militar. E o problema da poluição parece incluir o meu consumo de recursos e a minha produção de resíduos, A linha que me separa dos "bandidos" é indistinta.


- As pessoas acham lindo o lago, mas jogam lixo nele.  Será que imaginam que o lixo vai sumir, não entendem que o lixo vai voltar pra cima deles?
- Eu penso nisto todo dia.
- Alice ontem mordeu um copo e furou o queixo. Ela ficou desesperada, enquanto não lhe mostrei que não tinha machucado tanto, não sossegou.
- Como ela quebrou um copo no dente?
- Era um destes copos chiques, bem fininhos.
- Eu sempre mordia copos quando era criança, mas nunca consegui quebrar nenhum.
- Vai ver isso é do DNA.
- Vai ver é.
- Bia vestiu-se como moça e saiu com as amigas na sexta-feira. Foi na praça brincar de esconde-esconde.
- Até ontem era uma menininha, agora já virou moça.
- É tão interessante olhar isso: tem hora que é moça, tem hora que vira menina de novo.
- Pra gente que é pai (e mãe) é tão difícil isso: ontem ela estava varrendo o chão com os cabelos, agora já tem corpo de mulher.
- As meninas crescem tão rápido hoje em dia. No meu tempo parece que não era assim. As meninas estão crescendo rápido demais. Acho que são esses hormônios...
- Verdade.
E o tempo vai passando...
É tão bom estar em casa.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

25 março 2014

Lá...


Lá onde a luz brilha,
Lá onde o amor vai
nós achamos a trilha
de uma estrela que cai.
— A Turma do Balão Mágico

    Um dia nos planejamos para o batizado, o aniversário, a primeira comunhão, a formatura, o noivado, o casamento, o chá de panela, a despedida de solteiro, o primeiro dia de aula, o último dia do ano, o velório, a missa... Planos de tempos esperados, desejados, festejados ou sofridos, temidos... Histórias que nossos pais e os pais de nossos pais escreveram e registraram em fotos que enfeitam as paredes, os álbuns, os baús de memórias de família.

    De todos os planos, todos os encontros, a nossa necessidade ancestral do rito. Algo que marque nossa passagem, tal qual um portal que nos atravessa para um outro mundo: o mundo dos adultos, dos formados, dos casados e dos órfãos... Em uma série de atos que, geralmente têm uma ordem estabelecida, uma sequência lógica, nós nos despedimos de um momento e inauguramos outro.

    Mas de toda essa vida de esperas e planos, há o real da vida vivida sem estreias com data marcada. Sim, em um dia não riscado com um círculo vermelho em volta, damos um passo a mais, um sorriso a menos, uma palavra nova ou antiga dita de outro jeito, um desejo que não contemos e pronto, nos tornamos alguém que não éramos antes. Nem sempre percebemos. Não há ritual claro, não há aviso, não há vestido novo, nem valsa especial, não há hino ou hastear de bandeira, nem cortar de fitas ou troca de alianças... Simplesmente vamos, somos, nos tornamos e seguimos vida afora, sonhando com um dia novo.

    É verdade que todos os dias, em todos os encontros e desencontros, em todas as palavras e silêncios, há a chance de inaugurarmos e estrearmos, mas falo de coisas mais profundas, dessas que deixam marcas, dessas que deixam cores, cheiros, que deixam raízes onde nos sustentamos e nos alimentamos. Coisas que nos refazem, que ressignificam nossa história e que, de alguma forma até, acredito, mudam a rotação do mundo, a translação, a lua, as estações do ano e as marés. Coisas encantadas.

    Tenho prestado atenção nessas estreias sem aviso. Nessas passagens sem festa. E ainda, afirmo que, mesmo sem perceber, de forma tênue, mas muito especial e concreta, esses momentos têm sim, uma espécie de ritual mágico, escondido, tímido, quase uma névoa, uma neblina no dia claro. Tipo aquelas gotinhas de nada que se escondem no nevoeiro da primeira hora da manhã. Pois está lá, bem lá... E mais! Pode ser mais importante, mais revolucionária, mais significativa que qualquer corte de fita, qualquer assinatura de certidão, qualquer marcha nupcial ou soco no ar ao segurar o diploma. Porque o momento não é percebido no durante como todos esses outros. Ele é percebido depois. E nessa percepção é que nos dizemos em silêncio: “foi lá...”

    Que nem a musiquinha do Balão Mágico que fez parte da minha infância: “lá onde a luz brilha”. Sim, lá onde uma luz brilhou e, nem sempre percebemos. Lá achamos a trilha pra estrela que caiu, o sol que nasceu, para a chuva repentina, para o dia que mudou, para nós mesmos que nos tornamos outros, renascemos, descobrimos...

    15 anos faço de formada em julho. Desde o primeiro semestre a turma se preparava para a formatura. Festas, bingos, planos, reuniões, estratégias de conseguir dinheiro. Depois, empresas, fotos, convites, clube, baile, cerimonial, discursos, oradores, homenageados, músicas, entrada triunfal, togas, diplomas. Tudo sonhado em 6 anos e durou menos que 6 horas. Mas vale e valeu muito: lágrimas, orgulho, gratidão, alegria, sensação de alívio, liberdade e dever cumprido. Mas tenho certeza de que o momento em que a luz brilhou, o momento da minha festa de formatura foi antes, bem antes...

    Era o ano de 1998 e fui para Anguera, sertão baiano, pelo Programa Universidade Solidária. Algo semelhante ao antigo Projeto Rondon: estudantes de diversas áreas atuando em regiões vulneráveis, trocando, aprendendo e ensinando. Meu grupo passou um mês vivendo na pequena cidade. Dias intensos de descobertas, momentos de muita angústia e muita esperança, muita indignação e muita luta. Os dias e noites, todas, passaram tão rápido e tão densos que chegamos ao fim com a surpresa e o cansaço dos que correm, correm, correm e nem sabem para onde. E nem sabíamos mesmo que caminhávamos para uma maturidade e uma experiência que valia por semestres e semestres de salas de aula, laboratórios e provas finais...

    Em Anguera, fizemos um grupo de gestantes e nos mobilizamos, junto com a comunidade, para garantir a assistência pré-natal. Foi uma briga boa. Fiz muitos atendimentos, muitas visitas, muitos grupos de educação em saúde nos lugares mais diversos e até, debaixo de uma mangueira. Um dia, chegamos em uma escola para fazer um grupo e, juntos, nosso grupo e moradores, varremos a sala e limpamos as cadeiras. Descobri uma outra medicina e, naquelas tardes quentes do sertão, naquelas noites enluaradas de festas nas ruas, com as crianças e adolescentes, entendi que seguiria pelo caminho da medicina preventiva e social.

    Na última noite em que passamos em Anguera, a comunidade liderada pelas meninas da Pastoral da Criança organizaram uma serenata de despedida. Na madrugada fomos todos acordados por canções de adeus e agradecimento. Todos fomos chamados pelos nomes e recebemos rosas. O sol foi nascendo e a manhã do dia seguinte, o dia da nossa partida, foi chegando devagarinho, enquanto o forró tocava na calçada, na rua e a gente dançava, todos, tudo junto e misturado... Era fim e era começo...

    Foi lá...

    Lá onde a luz brilha, brilhou... Onde comecei a me tornar a médica que sou hoje. Onde achei a trilha de muitas estrelas que passaram e passam na minha vida. A minha foto junto com as meninas da pastoral, as meninas que me acompanharam em grupos e lutas, festas e orações é a foto da minha formatura. A serenata feita por elas foi a minha música de entrada. A rosa que me deram, foi meu diploma. Mais de um ano antes de me formar oficialmente, dancei a minha valsa de formatura: forró, com o sol nascendo e a alma e o coração recém aprendendo a juntar estrelas. Saindo da meninice da universidade e virando médica, de pés descalços na rua amanhecida e encantada de Anguera.



[Maria Amélia Mano publica na Rua Balsa das 10 às 3as-feiras]

21 março 2014

(QUASE) DIÁRIO DE VIAGEM – IV MOSTRA NACIONAL DE SAÚDE DA FAMILIA

Almofada em pat work - Larissa Mendonça Bernini
Ernande Valentin do Prado

Para meu amigo Julio, que não esteve comigo (fisicamente), mas não saiu de meus pensamentos.

Não se trata de um diário real, ou melhor, não se trata de descrever o que aconteceu ou como, mas como eu vi. Em um encontro com 10 mil pessoas (mais ou menos), centenas de coisas acontecendo ao mesmo tempo, não tem como ver tudo ou fazer balança do encontro, seria pretensão e desonestidade. Portanto essa crônica precisa ser tomada como realmente é: uma visão particular do que pude ver, perceber e sentir a partir do vivenciado. Muito de tudo isso ficou de fora, não por ser mais ou menos importante, mas pelo recorde, pelos limites impostos pelo próprio texto.
Dia 0 – Segunda Feira
1.   O motorista do taxi espera na porta. Eu e minhas mulheres fazemos um abraço coletivo. O gato olha do portão com preguiça de entrar na roda. Larissa recomenda ao motorista enquanto entro no carro: “não corra demais.” Bin Laden, como é conhecido o motorista, diz que vai de vagar. No Rádio Roberto Carlos o desmente: “corro demais, corro demais, só por você meu bem.” Será uma premonição?
2.  Uma da manhã de segunda para terça feira e o aeroporto de João Pessoa está cheio. O caixa eletrônico sem conectividade. Como cumprir a promessa que fiz?
3.  A moça da companhia aérea olha minha identidade. Sinto frio. Lembro que de novo esqueci a blusa em casa e penso: “por que aeroportos se parecem tanto com frigoríficos”?

Dia 1 – Terça-feira
4.  Chego ao aeroporto. Ninguém espera. Somos uma trupe aguardando noticias em terra estranha. Depois de algumas horas aparece alguém e nos leva para o hotel errado. Ainda bem, o certo era daqueles que ninguém entende porque ainda não foi demolido.
5.  Em Brasília é muito fácil para os empresários sobreviver fazendo negócios com o governo. Ninguém fiscaliza nem cobra, paga-se até por serviço não feito, por hospedagem em hotéis onde se pisa em baratas.
6.  Chego ao hotel às 14h00min horas, depois de sair de João Pessoas às 01h00min. Foi ou não uma viagem longa? Fico o dia todo esperando noticias da IV Mostra. Ninguém sabe informar o que vim fazer tão cedo. Esperava mais ação.
7.  Na portaria conheço Gregório (Greg), meu companheiro de quarto (percebem que existe outro encontro paralelo que acontece nestes encontros: as pessoas que se conhecem, os diálogos, os olhares, as invejas, todas essas coisas são, às vezes, tão ou mais significativo que o encontro principal). Gregório vem de Minas Gerais, é integrante da associação de pessoas atingidas pelo sistema prisional. Com ele Dona Teresa, uma senhora linda, forte, cheia de autoridade quando fala. Vieram discutir a saúde no sistema carcerário e nosso encontro foi imediato.

Dia 2 – quarta-feira
8.  Acordo cedo. Arrumo um lugar com tomada para conectar a internet e trabalhar um pouco na UFPel/UNA-SUS. Fico a manhã toda esperando notícias do que fazer, de como ir para o centro de convenções. Mas só na hora do almoço aparece alguém da empresa terceirizada para informar que já perdi o ônibus.
9.  Chego as 14h00min no centro de convenções. A fome é grande demais para aguentar até pensar em alguma coisa que não seja arroz com feijão, mas aí lembro que em Brasília não tem feijão. Mas estamos na IV Mostra Nacional de Experiências em Saúde da Família e aqui é diferente. Até feijão tem, dá para acreditar? E de duas cores diferente para escolher e quem acredita que feijão verde é feijão, dá para dizer que tem três cores de feijão.
10.      O céu de Brasília visto por quem está com fome:

11.  Na reunião de curadores perguntam: quem pode facilitar um ponto de encontro no sábado de manhã. Ninguém ergue a mão e penso, vi para isso? Levanto a minha. Eu posso.
12.     Enquanto o ministro fazia seu discurso na abertura da IV Mostra, o povo, na porta do auditório, dizia o que pensa de discurso:


13.      Começo o dia facilitando uma roda sobre práticas integrativas e complementares. O interessante é observar que os relatos ficam entre as práticas profissionais instituídas e corporativas e as práticas populares. Porém poucas são as experiências que não dialogam ou que são opostas uma a outra. De um modo geral se complementam, embora os participantes nem sempre percebam assim. 
14.      Conselho grátis que dou na roda: quando ouvir algo que possa melhorar sua experiência, anote o nome de quem falou e negocie o contato depois, peguem endereços, troquem novas ideias. Funcionou, vi inúmeras pessoas trocando após as experiências.
15.      É interessante observar que alguns profissionais, até bem intencionados, defendem trocar a prescrição de alopatia por fitoterapia, acupuntura, massoterapia ou mesmo terapia comunitária, mas não percebem a importância de não prescrever, mas negociar com o outro. Troca-se a terapêutica, mas não o ranço de acreditar que quem sabe o que é melhor para o outro é o profissional. Mas essa observação pode ser problematizada na roda.
16.      Paulo Freire diz que prescrever é sempre a imposição de uma consciência sobre a outra, portanto, será que faz mesmo muita diferença prescrever dipirona ou erva cidreira?
17.      A Agente Comunitária de Saúde (ACS) da área onde vou morar em João Pessoa apresenta um trabalho sobre Terapia Comunitária. Linda, simpática, sorriso gigante.
18. Um fato diz mais:


19.      Mais um furo na programação. Um facilitador faltando em uma ciranda e vou eu substituir – muitos trabalhos interessantes sobre NASF e TeleSaúde. Até gestoras de saúde que pensa o fazer como educação eu vi e ouvi.
20.     Até emprego no Espírito Santo (uma Secretaria de Saúde) ofereceu-me. Pena não poder aceitar.
21.      Uma profissional de saúde (cargo de confiança) de um estado da federação onde que sobra dinheiro para construir estádio com orçamento de bilhão perguntou: “é melhor uma Clínica de Saúde da Família com 4 ou 5 equipe que funcione ou com 1 equipe em prédio de 30 metros e sem resolutividade?” A resposta parece simples: “é melhor no bairro, perto da casa das pessoas e que funcione”. Será que dá para simplificar tanto assim, será que só existe mesmo duas opções para cada coisa? Fico em dúvida se pensar duas opções apenas é miopia ou ideologia pura e simples. Lembro-me de um tempo (quando proibiram o trabalho infantil) que se perguntava muito: “prefere uma criança trabalhando ou roubando?” Sempre tive minha resposta: “prefiro estudando, brincando, cantando, fazendo arte.”.
22.     Assisti um trabalho extraordinário vindo de São Paulo: conversa de boteco. A estratégia mais simples do mundo: se os homens não vão ao posto de saúde, vamos ao bar encontrar os homens. Vida inteligente na Estratégia Saúde da Família?

Dia 4 – sexta-feira
6.   Olhei para uma tenda, mas vi mais caciques do que índios. Voltei. Tinha índio de verdade andando pelo centro de convenções, cantando, fazendo rituais de cura, resolvi segui-los.
23.     Para todo lado que olho há alguma coisa acontecendo. Propostas interessantes, instigantes. Gente com vivências extraordinárias representando o novo e o inovador. Fico pensando que é pena esse universo representar uma parte tão pequena da realidade do SUS.
24.     Depois do almoço Aldenildo me resgata na piscina para ver um trabalho na sala I20. Juntam-se palhaços de João Pessoa (PalhaSUS), drag queen de Recife (Viviane Viva Voz) cantores de Aracaju (Núcleo de práticas inovadoras) e profissionais de saúde comunicadores de Brasília (Graduação em Saúde Coletiva - UNB) para celebrar um SUS quase invisível. Fico alegre pra caramba vendo amigos e futuros amigos se conhecendo.
25.     No ônibus de volta ao hotel Eymard dá uma aula sobre como trocar a raiva (indignação) pela percepção de oportunidade de pesquisa para entender porque se faz assim ou assado. Fica a lição: a gente pode aprender até andando de ônibus!
26.     Será que roda de conversa consiste apenas em por pessoas sentadas em circulo ou tem algo mais?
27.     Educação popular é o método, as dinâmicas lúdicas, a presença do educador popular ou tem algo mais?

Dia 5 – Sábado
28.     Chego cedo. Vou facilitar outro ponto de encontro. Saúde bucal. Um povo igual nunca via na vida. Trabalhos extraordinários. Um dentista do leste de São Paula, com um trabalho de dar inveja, reclama da falta de apoio da Enfermagem. Eu que sempre reclamo do trabalho isolado dos dentistas me desculpo. Josivan, Enfermeiro do Maranhão também se incomoda e se desculpa. Seguimos nos relatos.
29.     Duas experiências com ACD e TSB fazendo trabalhos fantásticos descolados dos dentistas. Um mundo novo acontece longe dos holofotes.
30.     Lançamento do Caderno de Educação Popular (chego no finalzinho – quase sem querer - várias pessoas que já conheci) – digo: posso levar revistas para meus colegas? A moça que distribui, desconfiada pergunta: é para gente que trabalha com educação popular mesmo?
31.      Na saudação final o coordenador de Educação Popular em Saúde do Ministério faz uma saudação (ao seu) mestre maior: PAULO COELHO.
32.     Fico sem saber porque a moça do Ministério desconfiou que eu não iria entregar o Caderno de Educação Popular para pessoas dignas, mas não corrigiu seu chefe: “chefe, não é Paulo Coelho, é Paulo Freire”.

Dia 6 - Domingo
33.     No café da manhã Renata (do encontro paralelo que mencionei no dia 1) conta suas peripécias dos tempos de infância e solta essa: “eles não eram gente batizada”.
34.     A conversa rola solta para gente não morrer de fome. Gregório vai para Belo Horizonte eu e Renta para João Pessoa. Aprendi muito com ele, ela e com a Mostra. No final de horas de conversa (fiada, mas muito séria) pergunto aos dois: já escreveram isso?
35.     01h48min de segunda-feira cai um toró em João Pessoa. Minha mochila sai do avião cheia de água, Bin Laden me espera no estacionamento.
36.     Quando bato na porta de casa Larissa abre com cara de sono. Alice me abraça.
37.     Valeu a pena passar por tudo.
Foto: Yana Magalhões - facebook
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 todas às 6tas]

14 março 2014

LONGE DEMAIS DO MAR

Ernande Valentin do Prado

Tenho pra mim que nunca quis muito da vida. Isso é bem verdade em termos financeiros: desde os 12 anos que tenho vontade ter minha casa própria – via o quanto era sofrido para meus pais pagar aluguel – mas fora isso, não tenho grandes sonhos materiais (confesso, gosto de boas meias, mas calça não me importo de comprar na feira). Nunca quis carro, moto, roupas de marca, como meus colegas. Meus sonhos não envolvia o ter, era mudar o mundo, salvar a América, coisas simples assim.
Também não sou de reclamar do que tenho ou de onde estou – reclamo e muito (até) de outras coisas, não das minhas escolhas, principalmente aquelas que me levaram para longe de minha família de sangue, de amigos importantes em minha vida, alguns que os atuais nem sabem que existem, como o Ari Roque, de meus tempos de adolescente no Pirapó, distrito de Apucarana, no Paraná, um cara que amo muito e sinto falta todo dia. Do Antônio (Toninho), meu amigo quase irmão em Fazenda Rio Grande. Foi meu professor de Filosofia no segundo grau, depois companheiro de militância (quando achavamos que iriamos mudar o mundo pela política partidária). O Adilson (que ora por mim em sua igreja para compensar minha pouca fé), o Altair, do curso de Enfermagem. Sinto muita falta de todos eles (que aqui citados simbolizam várias outras pessoas dos mesmos períodos e lugares). Como o Junior, o Ademar, o Ronaldo (três padrinhos de Alice), a Priscilla (madrinha de Alice), a Estela (com quem divido sonhos e dores), o Rodrigo dos tempos de Mato Grosso do Sul e Escola de Saúde pública (que abriu a casa de sua família para ser um pouco minha). A Cíntia no Espírito Santo. Todos foram de alguma forma minha família nestes lugares e carrego comigo no coração.
Por onde passo conheço pessoas maravilhosas que (longe de deixar) carrego comigo e vão se somando a imensa riqueza que é minha vida.
Minhas escolhas levaram-me a deixar o Paraná assim que conclui a graduação em Enfermagem (um sonho louco de mudar o mundo pelo cuidado). Deixei um concurso na Universidade Federal do Paraná, depois na Prefeitura Municipal de Curitiba, Campo Largo e o último na Secretaria de Saúde do Estado do Paraná. Depois nunca mais passei em concurso e acho que estão cada vez mais difíceis e sem sentido. Vou por aí trabalhando ora como bolsista, ora como CLT ora nestas prefeituras que não respeitam nada e nem ninguém. Inseguro, sem futuro e faz com que eu seja de fato um trabalhador cigano (meio circense como gosta da imagem Larissa), mas foi a escolha que fiz para não me tornar como algumas pessoas que via e vejo por aí, sem fé, sem vontade de ser mais, sem esperança.
 

Outro sonho, antigo demais, era chegar perto do mar, fugir dos grandes centros urbanos, viver junto de pessoas que gostasse de fato. Por conta disso estou arrastando minha família (sempre muito paciente) Brasil adentro. No caminho fica minha mãe, sempre ressentida de eu não estar lá perto dela. Meu pai, mais compreensivo, mas não menos ressentido. Minhas irmãs que são maravilhosas, meus sobrinhos lindos, meus primos, cunhados (todos gente boa da melhor qualidade). Sinto uma falta deles que nem sei descrever, mas quanto mais longe vou, quanto mais gente que precisa de mim de algum modo eu posso ajudar, mais meu amor por eles se ressignifica.
Ontem deixei mais um lugar. Mas antes de dizer como sai, preciso dizer como cheguei.
Quando sai do Mato Grosso do Sul fui para Paripiranga, onde fiquei 4 anos lecionando em uma Faculdade de Enfermagem. (lá também deixei pessoas lindas das quais tenho muita saudade). Quando sai do centro oeste havia prometido nunca mais trabalhar em uma Prefeitura, pois não suportava a ideia de não ter meus direitos respeitados e, perdendo o emprego, fato que sempre acontece, fazendo ou não um bom trabalho, a gente sai com uma mão na frente e outra atrás e, o pior, tudo que plantou é arrasado em nome de uma burrice política inconsequente e estúpida (no mínimo) de apagar a história. Vejo essa desonestidade até em movimentos que se dizem democráticos e progressistas de emancipação do homem (pode uma coisa dessas? – mas isso é outra história)
Em janeiro de 2013 sai da faculdade onde fiquei por 4 anos. Como já trabalhava como Bolsista na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), curso de Especialização em Saúde da Família (onde reencontrei Seiko, dos tempos de Faculdade e incorporada a família que vai crescendo), fiquei na cidade recebendo o seguro desemprego e me preparando para novos desafios. Neste meio tempo preparei-me para ir (ou vir) para Paraíba. Cheguei a visitar a cidade, procurar casa para alugar e marcar a data da mudança, mas eis que entra em minha vida uma pessoa chamada Yanna (coordenadora de Atenção Básica). Ela ligou de Dias D’Ávila querendo conversar. Disse que recebeu indicação de um colega (Silvio Medina), que não conhecia ainda, mas que havia recebido uma indicação de Letícia Falleiros, Gaúcha radicada na Bahia, e uma das autoras no livro Vivências de educação popular na atenção primária à saúde com o texto: Experimentando a extensão popular, página  115.
Lembrei-me que havia prometido não mais trabalhar em prefeitura (ao menos sem concurso), mas quando se está desempregado tudo é aceitável e fui falar com ela, mas na certeza de recusar.
Fui recebido tão bem, com tanto respeito e consideração pela minha história, pequena, mas considerável. Yanna e Rafael, Coordenadora de Atenção Básica e Gerente de Atenção à Saúde, falava em nome do Secretário de Saúde, Fabiano Ribeiro. Contaram-me que era um “time”, uma equipe que já trabalhavam junto e dividiam sonhos há algum tempo. Convidaram-me e convenceram-me a aceitar uma vaga como Apoiador Institucional nesta equipe de “militantes” e fiquei na cidade por sete meses. Aprendi muito, gostei muito, conheci muita gente (comprometida com a população, militante de verdade em prol de um SUS que ainda existe em poucos lugares e, sobretudo, conhecedores de gestão e APS). Ganhei família nova e mais uma vez parti. (Esse trecho dá um capítulo à parte, para não ser injusto com Lucimar, Dona Lú, Cíntia, Graça, Rafael, Fabiano, Rafaele, entre outros).
Ontem cheguei à Paraíba. Estou em Lucena (de frente para o mar) região Metropolitana. Para chegar até João Pessoa, como quase todo mundo faz aqui, leva duas horas, fora o sofrimento, mas também tem poesia, basta saber olhar, ouvir, sentir. Estou bem, estou satisfeito (volto ao tema depois, para não ser injusto).
Apesar da saudade, reclamar pra que?


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 todas às 6tas]

Postagem mais recente no blog

QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?

                ? QUAL O MOTIVO DA SURPRESA?   Camila chegou de mansinho, magra, esfaimada, um tanto abatida e cabisbaixa. Parecia est...

Postagens mais visitadas no blog