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31 janeiro 2014

TEMPO DE CRIANÇA





Ernande Valentin do Prado
 Quem somos  é o modo como nos compreendemos, e o como nos compreendemos é análogo ao como construímos textos sobre nós mesmos. (Larrosa, 2004)

Quando era criança levantava da cama, nem tomava café da manhã direito e já saia. Tinha uma preocupação central: encontrar os amigos para começar o ofício que toda criança tem (ou deveria ter), brincar. Saia pela porta sem se despedir, porque não havia necessidade, estava por ali na casa dos vizinhos ou em um terreno baldio, ou andando pelos matos nos arredores, quando mais longe no campo de futebol, na serraria ou fugido para tomar banho de rio (isso nenhuma mãe permitia e só fugindo mesmo).
Não havia necessidade de avisar a mãe ou pedir permissão para entrar na casa dos vizinhos, nem tão pouco eles para entrar em nossa casa. Fazíamos cabanas no mato do terreno baldio, tapetes velhos viravam tapetes voadores, pilhas de tijolos viravam naves espaciais e qualquer revolver de plástico dava uma guerra e os pais não tinham medo da gente virar bandido por causa disso. Uma vez montei um laboratório de fómulas secretas, nele a gente matava arranhas, misturava com folhas de algumas árvores e vendia para outros laboratórios. Vez ou outra roubava remédios em casa e diluía com outras coisas para criar outra fórmula. Coisa de louco, né? E ainda tinha as temporadas de burquinha (bola de gude), espada, pipa, futebol, pião e tantas que nem lembro mais.
Construíamos campos de viação para helicóptero, disco voador, campo de futebol e invadíamos pomares em busca de laranja, mexerica ou qualquer fruta da época. (Como sempre fui careta, antes de invadir sempre pedia permissão).
Essas aventuras se estendiam até a adolescência, a infância se arrastava e se prolongava. Estes dias, ouvi uma colega dizer que brincava de boneca até os 19 anos e achei estranho, mas é verdade, aos 17 ainda brincava de pega-pega pelas ruas da cidade, de perna lata e esconde-esconde. Claro que nesta idade as meninas já brincavam com a gente e tinha aquele negócio da salada mista que só uma vez me dei bem.
Claro que tudo isso só acontecia depois das aulas, quer dizer, acontecia nas aulas também. Sempre estudei pela manhã, meu cérebro funciona melhor cedo. Começavam  às oito, mas às sete eu já estava lá, às vezes antes da mulher que abria a escola, por que a “piazada” tinha que brincar de “salva” antes da aula e na hora do recreio. Tudo era oportunidade para brincar. E se a gente ia para sala sujo ou rasgado, a professora não chamava nossos pais, pois sujeira e roupa rasgada fazia parte da infância. Brigar com um ou outro também fazia parte e os pais não eram chamados de urgência na escola. No dia seguinte já estava tudo resolvido ou, na maior parte das vezes, na hora do recreio ou na saída. Sempre tinha aquela de te pego lá fora, mas lá fora a gente já tinha esquecido porque queria pegar.
Fiquei pensando em tudo isso porque hoje em dia parece ser muito triste ser criança. Os pais não têm pique e nem tempo para acompanhar os filhos. Por outro lado, às prendem dentro de casa com medo do mundo que às cerca (e não é sem razão).
Essas reflexões me vieram à cabeça enquanto lia Da vila Dique ao porto novo, e ouvia Alice conversando com o gato. Ela não levantou e correu para casa do vizinho, que é um terreno enorme, com cavalo, cachorro, porco, galinhas e outras crianças. Ela passa o dia presa em casa com dois adultos chatos, uma irmã adolescente já sem paciência de brincar com ela. Triste viver assim!
Quando vai para escola vive reprimida por uma professora cristã que ainda coloca as crianças olhando para parede e que ensina que só quem se comporta tem direito ao recreio. Se Alice olha feio para uma coleguinha, a mãe já é chamada para mediar o conflito que só existiu na cabeça da professora.
Quem tem saudade da infância ou é jovem de mais para entender do que estou falando, dê uma olhada no melhor livro de contos que já li na vida: Os meninos crescem, de Domingos Pellegrini, à venda por cinco reais no mercado livre.


Revisão: Piedade Rosário – Paripiranga, BA.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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