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20 janeiro 2016

A menina e o mundo (virtual)


Estava ali, quase parada, exceto pelo dedo que rolava a barra de rolagem do computador olhando para os e-mails. Um click aqui, outro ali, o spam comprando ela, ela comprando o spam. Sem mais, nem menos, sem aviso prévio, sem anúncio da Matrix, sem comercial, propaganda, série ou torrente ela desapareceu. Sumiu, desapareceu, escafedeu-se.

A única coisa audível era a respiração ofegante e o pensamento rápido “o que está acontecendo?”.
Mariana começou a correr pela sua caixa de e-mails. Encontrava uma parede de bits nas laterais. Correu até a sua caixa de entrada escalou os botões de excluir, passou pela sua lista. Escadarias invisíveis, lixeira, lixo eletrônico, até que caiu no fundo da página nos “direitos autorais”, “termos”, “privacidade e cookies”. Olhava para o fundo via o branco e olhava para frente e via o vazio gigante da sua escrivaninha e janela. Decidiu escalar para trocar de aba, caiu no Facebook, rolou as visualizações, pulou os anúncios, até que parou na sua última atualização, uma foto do Instagram com um sorriso dela, colocou suas mãos naquele monte de pixels, tentou apertar, mas o tecido computacional era um elástico e tudo voltava para o mesmo lugar.

Correu pela página, nas mensagens, não tinha nem teclado para falar. A caixa de mensagens brilhava.
Carolina: “Ana, você ainda está aí?”

Estou. Dizia, pensava, falava, mas não teclava. Decidiu ir para a próxima página, quem sabe clicar em sair. Viu o sofá que queria comprar, do lado de dentro descobria que era só uma almofada computacional, tentou sentar-se e começou a escorregar em um monte de código binários. Estava escorregando até o fundo da página, passando pelo botão “compre em um click”. Olhava para fora, o dia da janela do quarto.

Estava começando a passar a dose de desespero quando um som ensurdecedor que a fez tremer começou. Chamada do Skype. Queria clicar no botão “atender” pulava em cima e não conseguia, pulava de novo. Conectar-se nunca foi tão difícil. Até que viu lá em cima, no canto esquerdo o cursor, a liberdade talvez do click, escalou pela barra de rolagem e deu um pulo entre os favoritos para conseguir alcançar o cursor, deu um salto, nova adrenalina, e para fugir do toque, e pendurou-se no cursor que primeiro ficou parado. E depois foi caindo até o fundo da página – no fundo novamente. Não tinha ninguém para mexer o mouse contra o peso do tempo. Foi arrastando pixel por pixel até o botão, mas a chamada já havia terminado, Carolina já havia desistido de Maria. Mas ela sabia que era questão de tempo e deixou o cursor no lugar certo, o ponto certo e ficou esperando.
Olhava o sol do lado de fora da janela do seu quarto. O tempo passando e ela ali, dentro do computador, aguardando o Skype. Liga Carol! Liga! Sem mais nem menos veio a chamada, o som ensurdecedor. Clica! Clica! Agora, clica! O botão funcionou a tela do Skype abriu e apareceu a imagem da sua amiga e o vazio do seu quarto. Ela dizia “Mariana, cadê você?”, Mariana gritava enquanto passava com seus braços pixelizados “Estou aqui!”, “aqui bem aqui”, mas a câmera só captava uma imagem vazia. Até que sua amiga impaciente disse: “Não entendi Mariana, vou desligar”. Isso doía nos ouvidos de dados de Mariana, volume muito alto pensou. No “x” talvez a saída, a saída do computador, a fuga. Tentou apertar o “x” o Skype fechou, mas a saída não apareceu, o portal não ressurgiu, nada, o aplicativo só fechou. 

Sentou na barra de inicialização rápida para chorar, perto da data. Os minutos passavam e faziam cócegas nas suas pernas. Chorou tanto que dormiu com os olhos vermelhos e cansados.
Sonhou com a janela, com o mundo do lado de fora, com ela correndo, ela caindo.

Acordou com a mensagem “nível baixo de energia, conecte-se a fonte de energia”. Pensou “e agora”, correu pegar o cursor para clicar em “modo econômico” e ganhar mais “tempo”. Agora era questão de tempo até a energia acabar, até ela acabar. “Será que me encontrariam desaparecida no computador?” Decidiu que iria fechar todos os programas para economizar bateria. Fechou o meio episódio de série que estava assistindo, o navegador de internet – “tem certeza que quer fechar todas as abas”, o fatídico jogo de paciência, o arquivo de word – e salvou todas as alterações. Sentou-se na área de trabalho, não tenha nenhuma grande reflexão. Apenas uma vontade de não ser excluída da lixeira, desaparecer, ser um dado morto. Ficou olhando para o teto da sua área de trabalho abarroatada.

Estava vazia, até que a tela começou a escurecer, “seria o fim?”. A vida virou um túnel, mas daí ela só parou dentro de uma bolha da proteção de tela. Não conseguia estourar a bolha, não conseguia sair, lutou para deixar de ser bolha. Uma vida inteira que poderia ter sido e virou bolha. Só o cansaço poderia fazer você virar uma bolha. Tudo depressa demais.

Não sabe em que pensamento estava quando a mensagem estourou todas as bolhas: “Você só tem 7% de bateria conecte-se imediatamente a uma fonte de energia”. Ela pensou: “Logo vai terminar, será que volto para meu quarto? Será que só termino?”. Maria aproveitou a mensagem para sair do modo de proteção de tela e teve uma ideia simples: “deixar uma mensagem, um último grito”. Correu, uma carta, pelo menos um telegrama. “Quando encontrarem o computador entenderão”. Desligou o bluetooth e a internet para salvar tempo correu pela barra de inicialização, aplicativos, chegou até “acessibilidade” e no teclado virtual. Estava renovada para carregar o cursor.

“Apenas 5% de bateria” dizia a mensagem, nível crítico, sabia que o tempo era curto. Abriu uma nova nota autoadesiva e foi caminhando por entre os espaços do teclado virtual, procurando as teclas. O tempo era pouco, sabia que depois da mensagem dos 5% o computador desligava a qualquer momento. Às vezes se perdia no teclado QWERTY mas conseguiu escrever sem nenhuma citação famosa antecedendo uma publicação, sem botões de sentimentos do facebook ou hashtags do twitter. 

O que escrever?

Mariana escreveu:

Virei estrela amo voces. Ma__ ...

E acabou a bateria.

"Inspirado em O menino e o mundo"

*Ilustração: background http://d11sjosxu0rtpd.cloudfront.net/wp-content/uploads/2013/12/social_media_strategy.jpg e "menina" desenhado no  software Kleki. 

Voam abraços,
Mayara Floss

19 março 2014

Parideira


Parteiras tradicionais do Amapá. Foto: divulgação/J.R. Ripper
Chegaram correndo de carroça na casa de Dona Francisca, a melhor parteira da região. Uma moça sem nome nem sobrenome tinha chegado na cidade e já estava em trabalho de parto, mas a criança custava a nascer, já tinham ido outras duas parteiras tentar resolver o caso, mas era de difícil solução.
 
Dona Francisca arregaçou as mangas, pegou a sua bolsa cheia de chás e ervas quase mágicas e foi a cavalo até a cidade, porque até mesmo mulheres sem nome e sobrenome precisam de ajuda na hora do parto, e também ninguém aguenta os gritos da mãe no nascimento. Aliás não há maior alívio do que o choro do bebê. Dona Francisca já tinha visto de tudo, mas sempre sabia que tinha mais algo para ver.

O homem que levava Dona Francisca suava, todo mundo tinha medo da hora de nascer. Chegavam na boca da noite, a cidade repontava lá em baixo, uma meia dúzia de casas com umas dez famílias, um mercado e, claro, uma igreja. Dona Francisca, com os cabelos brancos amarrados fortemente na cabeça desceu e adentrou numa casa que ficava nos fundos da igreja e que quando fosse muito necessário ajudava quem estava com necessidades. Porque na Vila ficava feio gente indulgente.

Entrou na casa, já era velha conhecida, encontrou a mulher chorando aos berros e quase sem força. Aproximou-se e colocou a mão na sua testa, estava com febre, mandou ferver mais água, amassou algumas plantas mágicas e começou a rezar enquanto se colocava perto do canal do parto. Mandou a mulher fazer força e segurar-se firme na mão de uma freira que estava ao seu lado, disse para colocar o queixo no peito e não gritar tanto porque dai perdia as forças.

Decidiu colocar a mão lá dentro para ver como estava a cabeça do bebê, colocou sentiu o canal aberto, mas de cabeça não sentia nada, sentia uma coisa pontuda. Será que isso é obra de coisa ruim? Pensou. Mas não ia levantar a questão tão perto da igreja, porque se não iam deixar a mulher de qualquer jeito em qualquer lugar, ninguém queria filhos desse jeito.

Dali a pouco queria tentar ajudar a puxar a criança, mas quando colocava a mão lá dentro sentiu algo redondo, começou a arregalar os olhos. Dona Francisca estava achando aquilo tudo muito estranho. E assim passou a noite, Dona Francisca tentando puxar, empurrando a barriga, tentando fazer nascer aquela cria estranha.

Quando repontou o dia a mulher sem nome nem sobrenome desmaiou. E Dona Francisca já não sabia o que fazer. Ela perdeu as forças, Dona Francisca sabia que já estava partindo. A mulher relaxou e num último momento ela tentou puxar o rebento. Enquanto isso todos saíram da sala e a freira foi chamar o padre para terminar logo com tudo aquilo. De repente que susto tomou. Foi quando já não tinha mais esperança.

Começaram a nascer letras e mais letras, palavras, frases e textos e tudo que se imaginava. Dona Francisca nem sabia ler. Começaram a se derramar no chão como criação poemas e textos, saiam com sangue, liquido amniótico e placenta. Nasciam e gritavam o que queriam dizer, e caiam pulsando com palavras. Dona Francisca ficou apavorada e se encostou na porta para não deixar ninguém entrar, era assustador e belo o nascimento.

Quando terminou de nascer e ficaram todas no chão a mulher acordou, suada e cansada. E pediu para Dona Francisca recolher todas aquelas palavras e fez com a mão que não tivesse medo, estava tudo certo, mas pediu que mantivesse segredo. Dona Francisca colocou na bolsa da mulher as letras, palavras, poemas e textos. Enquanto a mulher se virava para descansar.

De repente chegou o padre, pronto para benzer e a mulher enterrar ela e o bebê que não quis nascer. Dona Francisca avisou que a moça estava bem e que não era bebê, era uma outra doença que não sabia reconhecer. Mas que a mulher parecia estar bem e precisava descansar, olhava de canto para a sacola que não parava de se mexer. Estava lá o bendito bebê.


É a sina dos poetas, parirem e quase morrerem para deixar escrita a dor de nascer.
 
Parteiras tradicionais do Amapá. Foto: divulgação/J.R. Ripper

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

31 janeiro 2014

TEMPO DE CRIANÇA





Ernande Valentin do Prado
 Quem somos  é o modo como nos compreendemos, e o como nos compreendemos é análogo ao como construímos textos sobre nós mesmos. (Larrosa, 2004)

Quando era criança levantava da cama, nem tomava café da manhã direito e já saia. Tinha uma preocupação central: encontrar os amigos para começar o ofício que toda criança tem (ou deveria ter), brincar. Saia pela porta sem se despedir, porque não havia necessidade, estava por ali na casa dos vizinhos ou em um terreno baldio, ou andando pelos matos nos arredores, quando mais longe no campo de futebol, na serraria ou fugido para tomar banho de rio (isso nenhuma mãe permitia e só fugindo mesmo).
Não havia necessidade de avisar a mãe ou pedir permissão para entrar na casa dos vizinhos, nem tão pouco eles para entrar em nossa casa. Fazíamos cabanas no mato do terreno baldio, tapetes velhos viravam tapetes voadores, pilhas de tijolos viravam naves espaciais e qualquer revolver de plástico dava uma guerra e os pais não tinham medo da gente virar bandido por causa disso. Uma vez montei um laboratório de fómulas secretas, nele a gente matava arranhas, misturava com folhas de algumas árvores e vendia para outros laboratórios. Vez ou outra roubava remédios em casa e diluía com outras coisas para criar outra fórmula. Coisa de louco, né? E ainda tinha as temporadas de burquinha (bola de gude), espada, pipa, futebol, pião e tantas que nem lembro mais.
Construíamos campos de viação para helicóptero, disco voador, campo de futebol e invadíamos pomares em busca de laranja, mexerica ou qualquer fruta da época. (Como sempre fui careta, antes de invadir sempre pedia permissão).
Essas aventuras se estendiam até a adolescência, a infância se arrastava e se prolongava. Estes dias, ouvi uma colega dizer que brincava de boneca até os 19 anos e achei estranho, mas é verdade, aos 17 ainda brincava de pega-pega pelas ruas da cidade, de perna lata e esconde-esconde. Claro que nesta idade as meninas já brincavam com a gente e tinha aquele negócio da salada mista que só uma vez me dei bem.
Claro que tudo isso só acontecia depois das aulas, quer dizer, acontecia nas aulas também. Sempre estudei pela manhã, meu cérebro funciona melhor cedo. Começavam  às oito, mas às sete eu já estava lá, às vezes antes da mulher que abria a escola, por que a “piazada” tinha que brincar de “salva” antes da aula e na hora do recreio. Tudo era oportunidade para brincar. E se a gente ia para sala sujo ou rasgado, a professora não chamava nossos pais, pois sujeira e roupa rasgada fazia parte da infância. Brigar com um ou outro também fazia parte e os pais não eram chamados de urgência na escola. No dia seguinte já estava tudo resolvido ou, na maior parte das vezes, na hora do recreio ou na saída. Sempre tinha aquela de te pego lá fora, mas lá fora a gente já tinha esquecido porque queria pegar.
Fiquei pensando em tudo isso porque hoje em dia parece ser muito triste ser criança. Os pais não têm pique e nem tempo para acompanhar os filhos. Por outro lado, às prendem dentro de casa com medo do mundo que às cerca (e não é sem razão).
Essas reflexões me vieram à cabeça enquanto lia Da vila Dique ao porto novo, e ouvia Alice conversando com o gato. Ela não levantou e correu para casa do vizinho, que é um terreno enorme, com cavalo, cachorro, porco, galinhas e outras crianças. Ela passa o dia presa em casa com dois adultos chatos, uma irmã adolescente já sem paciência de brincar com ela. Triste viver assim!
Quando vai para escola vive reprimida por uma professora cristã que ainda coloca as crianças olhando para parede e que ensina que só quem se comporta tem direito ao recreio. Se Alice olha feio para uma coleguinha, a mãe já é chamada para mediar o conflito que só existiu na cabeça da professora.
Quem tem saudade da infância ou é jovem de mais para entender do que estou falando, dê uma olhada no melhor livro de contos que já li na vida: Os meninos crescem, de Domingos Pellegrini, à venda por cinco reais no mercado livre.


Revisão: Piedade Rosário – Paripiranga, BA.

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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