Eu não sou da sua rua - Ernande (2014) |
Ernande Valentin
do Prado
É a terceira
versão deste texto. Escrevi uma com comentários indignados, falando tintim por tintim
tudo que me irritou profundamente no comportamento dos “profissionais”, mas aí
mudei de ideia. Tudo que escrevi já é lugar comum muito grande e achei melhor
abrir espaço para o julgamento do leitor. Deixei apenas os meus pensamentos,
mais ou menos organizados a partir do que vivi e a expressão, cada um no seu
quadrado e seus variantes.
Foi mais ou
menos assim que aconteceu...
Cheguei à
Unidade de Saúde de um bairro enorme na cidade de João Pessoa, Paraíba (onde
moro). Isso foi por volta das 13h00min. Não havia muita gente esperando: uma
pequena fila na recepção, que peguei e ao chegar minha vez descobri que ali não
era o ponto inicial do atendimento, mas que deveria ter entrado e procurado as
pessoas sentadas nos corredores, embaixo do cartaz: acolhimento.
Pensei olhando a
paisagem: “prédio grande, espaçoso. Daria para fazer muita coisa legal aqui”.
Cada corredor
tinha uma profissional sentada e na parede um cartaz dizia: acolhimento. “será
que sabem o que acolhimento significa”, pensei bem baixinho já desconfiado do
que estava por vir.
Como não sabia
qual destas pessoas deveriam me atender, fui até a primeira e ela disse:
- Não tem
atendimento hoje, a médica está doente. Volta amanhã.
Respondi:
- A enfermeira
pode resolver meu problema.
- Ela também não
veio, apresou-se em responder.
- Mas você nem
sabe quem eu sou, não sabe nem qual é a equipe que deveria me atender, nem
olhou minha carteirinha.
Ela pegou meu
cartão e disse:
- Deve ser
aquela equipe ali. Disse apontando para outra mesa. E imediatamente voltou a
não fazer nada.
Fui até a outra
mesa, onde havia duas pessoas conversando de costas para outras pessoas que
aguardavam. (Cada um no seu quadrado. O profissional em um e os usuários em
outro ou outros) Uma delas disse:
- Qual é sua
equipe?
- Não sei,
respondi. Mas aquela moça me mandou falar com você.
- Não é aqui
não, a sua equipe é a de lá...
- Mas você nem
olhou meu cartão, como sabe qual é minha equipe? Já que na parede esta escrito
acolhimento, você poderia me acolher. Até agora não me senti acolhido por
ninguém.
- Qual seu
endereço?
Ai expliquei e
ela disse, a contragosto, para eu esperar e voltou a conversar com a mulher que
depois descobri ser a médica.
Fiquei aguardando
minha vez por mais de duas horas e pesando: “o que impede essa gente de atender
com hora marcada?”. Os profissionais andavam de um lado para o outro e não
tinha como saber quem fazia o que ou se estava fazendo alguma coisa. Quase
ninguém para ser atendido, muita gente sem fazer nada. Muito espaço vazio.
Alice, que me
acompanhava, ficou irritada de ter que esperar (depois que a última criança foi
embora). Duas irritações: um atendimento absurdamente ineficiente e uma criança
repetindo: “quero ir embora, quero ir embora, quero ir embora.”
Lá pelas tantas
a médica saiu da sala e interrompeu a moça que não largava o celular. Reclamou
que não tinha receituário, que já havia falando isso e escrito pela manhã, mas
ninguém deu jeito. Pensei: “deve ter muita gente à sua disposição” (cada um no
seu quadrado). A moça do celular sai para procurar, enquanto isso a médica fez
um discurso sobre a falta de receituários:
- Deveriam fazer
100 mil receitas. Eu passo a manhã e a tarde dando receitas e pedindo exames,
mas a gestão quer economizar.
A moça não
voltava com as receita e a gente ali ouvindo aquela mulher protestar contra a
gestão e nos obrigando a ouvir seu discurso. Comecei a delirar:
“pouca coisa pra
fazer é foda. Muita gente, pouco trabalho dá uma preguiça danada”. E aí tive uma ideia sensacional para facilitar
a vida de todos nós. Apesar de contar aqui, quero deixar claro que vou patentear.
Coisa bem simples: instalar maquina eletrônica nas unidades de saúde, tipo
caixas automáticos destes de bancos, mas com receitas e solicitações de exames.
Agilizaria muito o atendimento. A pessoa usaria o cartão SUS no lugar do cartão
do banco e faria suas escolhas. Na evolução desta tecnologia, a versão 2.0,
poderia vomitar medicações no luar de dinheiro. Ouvi a médica dizer que dá
receita de omeprazol de 40 mg, que é melhor do que de 20 mg, para todo mundo,
até para os profissionais.
- Quando chega,
disse ela, dou receita de monte e acaba tudo no mesmo dia. Coitada: a minha máquina
vai ajudar muito, pode até evitar lesão de esforço repetitivo. Coitada, qual
seria sua utilidade se perdesse a mão que escreve receita de omeprazol de 40
mg?.
Nenhum outro
médico na unidade, dos quatro que ali deveriam estar, segundo uma agendam que
me deram. Pensei: poderia pegar o receituário do consultório ao lado, mas
descobri que o médico ao sair tranca a porta. “Deve achar que é uma sala
particular e não da população”, pensei sozinho.
A médica não
parou de falar e esqueceu-se que estava atendendo.
Quando achei que
não ia mais ser chamado, chegou minha vez. Entro na sala, ela pergunta meu
nome, anota em um livro preto e me pede para assinar. Pergunta onde eu moro,
sem muita vontade de ouvir a resposta e faz um encaminhamento para
fonoaudiologia. Escreve na ficha: fonoaudiologia, dia, assina e carimba. Não
fez mais nada e me pediu para levar para outra pessoa terminar de preencher.
Fiquei pensando: “anos de faculdade para fazer isso?” (Se tivesse uma máquina
eletrônica eu não precisaria passar por esse tipo de médico e só gastaria 5
minutos). Por outro lado, caso ela tenha uma lesão que lhe impeça de continuar
receitando, não será um prejuízo total, pois tem um secretario para preencher
as receitas. Com o tempo o secretario poderia até aprender a assinar por ela,
se é que já não sabe, e a médica poderia ficar em casa.
Fui para sala do
“secretário” da médica, que preencheu a ficha. Fiquei pensando que é uma
maravilha trabalhar para o estado, duas pessoas para fazer o mesmo trabalho.
Isso é que é ter dinheiro sobrando e pouco que fazer. Deste modo podem terminar
o trabalho mais sedo e ir para casa ver a novela (ouvi dizer que Meu pedacinho
de chão dá dando show – 18 horas, mais ou menos, na globo, anota aí!).
O secretario
preencheu a ficha, anotou de novo em um livro preto e pediu para eu assinar.
Ai lhe perguntei,
como quem não quer nada:
- Demora sair
esse encaminhamento?
- Não sei, disse
ele sem nenhum interesse. Quem sabe isso é a fulana. Ela que marca. (cada um no
seu quadrado)
Procurei a
fulana, que estava ocupada procurando uma solicitação desaparecida e ela disse:
- A gente não
marca fonoaudiologia, você tem que ir direto ao hospital... (cada um no seu
quadrado)
- Tudo bem, mas
é melhor contar isso para seu colega, pois protocolou o meu pedido e disse para
eu esperar que você iria me ligar com o dia da consulta. Pode me dizer onde
fica esse hospital?
- Você não sabe
onde é? Disse ela espantadíssima!
- Não, mas não
precisa me explicar, basta escrever o nome e o endereço que eu acho.
- Eu não sei o
endereço e nem onde é. (cada um no seu quadrado)
- Como assim,
não sabe o endereço, disse assustando! Você está me encaminhando para um local
da rede que você desconhece?
- Eu não tenho
obrigação de saber qual é o endereço. (cada um no seu quadrado e deus contra
todos)
- Então me diga
o nome da pessoa que deveria saber, quero falar com ela...
Para concluir
essa conversa, escute aí Raul Seixas, Check-Up,
onde ele conta para todos nós quais as medicações ele toma “com prescrição
médica, com receita
e tudo.” Só assim para aguentar.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]