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Imagem capturada na internet, 2017. |
Ernande
Valentin do Prado
Os caminhões do quartel eram
capazes de subir até paredes, dada a força dos motores, a tração quatro por
quatro, mas não andavam bem no asfalto. Perto do fim do ano formos para
manobras em Santa Catarina. Deveríamos chegar em poucas horas, em uma situação
normal, porém com os caminhões do exército, movidos a gasolina, levamos três
dias.
No primeiro dia chegamos em
União da Vitória, na divisa dos estados. Ficamos no batalhão sediado lá. Nos
colocaram em um alojamento imundo, com camas sem colchão, cheio de poeira, o
que revoltou o Sargento Borba, acho que o único viu onde os soldados ficariam.
Passamos a noite nestas
condições e seguimos em frente, bem cedo no dia seguinte. Viajamos o dia todo
na carroceria do caminhão, sentados em bancos de madeira até chegar em Palmas,
lugar horrivelmente gelado, mas limpo. O batalhão parecia novinho e formos
muito bem recebidos, integrado a tropa local e foi até agradável conhece-los.
Um dos antigões de nossa companhia inventou de ler a mão dos soldados e
ganhamos a simpatia de todos. Até minha mão o cara leu. O incrível é que tudo
que ele falava fazia sentido.
No dia seguinte chegamos em
Concordia, cidade de Santa Catarina, onde encontraríamos tropas de todo o sul
do Brasil. Ficamos acampado em um fábrica de ração da Sadia, dormimos nas
mesmas baias onde dormiam os porcos, desalojados naqueles dias para dar lugar
aos soldados de exército brasileiro.
Lembro de pouca coisa desse
acampamento. Numa dessas lembranças o Aspirante que comandava o PELOPES colocou
toda a tropa em formação e tentava falar alguma coisa, mas eu não ouvia, nem
notava sua presença. Então o cara se irritou e gritou:
- Entendeu, Prado?
Eu respondi na mesma hora:
claro, perfeitamente. O homem não se conformou e perguntou: e o que foi que eu
falei?
Passei uma tremenda vergonha
na frente de todos: não sabia o que o sujeito falava, nem sabia que ele estava
ali, para ser sincero. Claro que Ugo não deixou passar, ficou o resto do dia me
sugando, que era como se chamava bullying na época.
Como em todos os
acampamentos, nesta também chovia e fazia frio. Andávamos de caminhão de um
lado para o outro, em estradas que pareciam sempre iguais. O povo era muito
branco, muitas mulheres louras, magras, lindas, ao menos de longe, pois quando
se chegava perto eram feias demais. Lembro disso porque era uma coisa que os
soldados lamentavam o tempo todo.
Em uma das noites, como
sempre de chuva, houve um ataque ao nosso acampamento. Estávamos em nossa
barraca tentando nos aquecer, quando entra o aspirante e pede três voluntários
para uma patrulha. Dois se oferecem, levantam-se e se equipam rapidamente, como
bons soldados operacionais. Mais alguém acabaria se oferecendo, era um pelotão
de soldados por vocação, mas o aspirante não deu tempo, olho em volta e me viu
tentando se esconder e disse:
- Prado, pegue seu fuzil.
Fomos inspecionar o
perímetro. Em um dos pontos, depois de rodas por toda parte sem achar nada, o
aspirante resolveu voltar para o acampamento e comandou a volta em linha reta.
Entraríamos no meio das barracas da cozinha do acampamento e os soldados
cozinheiros abriram fogo contra nós. Tivemos que dar uma volta de 180 graus no
acampamento para voltar sem ser fuzilados. Quando finalmente decidiu-se entrar
no perímetro, avistamos um terceiro sargento com insígnias das forças
especiais. O aspirante comandou:
- Alto lá. Qual a senha.
Mas o terceiro sargento o
ignorou e seguiu seu caminho, como se nada tivesse ouvido. O aspirante olhou
para nós, para verificar se alguém havia percebido carão que ele tinha passado
e como não teve jeito de disfarça, eu já estava quase rindo, ele disse:
- Ele é forças especiais:
embusteiro.
O terceiro sargento, forças
especiais, fez igualzinho Ugo fizeram certa vez na Hora, no episódio em que o
cabo queria lhe apresentar para as visitas civis ao batalhão. Se ainda não leu
essa parte, pode ver em: A guarda. Naquele dia Ugo ignorou o cabo, assim como o
sargento ignorou o oficial. Por sua vez, o aspirante agiu como o cabo, diante
da indiferença.
Não me lembro se foi no
retorno destas manobras ou em outra, que passamos por Cascavel, no Paraná. Lá
ficamos em um quartel que fazia fundos para outro. Durante a noite acordamos
com um tiroteio, que logo silenciou. No dia seguinte ficamos sabendo que a
guarda de um quartel costumava abrir fogo conta a outra. Diziam que não era de
propósito, o que deixa a coisa pior ainda. Isso já parecia suficientemente
absurdo, mas o absurdo completo aconteceu uns dias depois.
Acampamos nos arredores da
cidade para desenvolve alguns treinamentos e certo dia saímos sob o comando do
Sargento Mendonça. Faríamos uma patrulha rápida, buscando guerrilheiros, papel
que poderia ser desempenhado por militares de outros batalhes da região.
Escondemos o caminhão entre
arvores fechadas e saímos para reconhecer o território. George e Joacir ficaram
guardando o caminhão. Quando voltamos não tinha mais caminhão, nem os guarda
nem coisa nenhuma. No chão ficou só as marcas dos pneus. De algum modo, um
soldado de folga e desavisado, morador da região, passou por ali e foi detido
pelos soldados que guardavam o caminhão, que suspeitaram que o recruta estava
desempenhava um papel de guerrilheiro.
George lhe explicou sobre as
manobras e que precisava mantê-lo preso, para averiguações, mas de algum modo
ele fugiu e trouxe a guarnição do quartel de Cascavel, daquele mesmo que abriam
fogo entre si de madrugada com munição, talvez para afastar o tédio. Prenderam
Jorge, Joacir e o caminhão.
Para resumir – não
conseguimos voltar para o acampamento em tempo de comer e, na volta, famintos,
passamos por baixo de pés de laranja em uma chácara e o Sargento Mendonça confiscou
as laranjas dos moradores, sem dar chance para que dissessem não, o que
provavelmente não faria mesmo.
Os soldados do glorioso EB
depenaram as frutas e até as folhas das arvores, de tanta forme.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]
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