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03 agosto 2018

SOL NA CABEÇA

Ernande Valentin do Prado


Imagem capturada através do Google, 2018.



Em saúde da família é bom que a equipe more no território. Isso para Agente Comunitário de Saúde (ACS) chegou a ser uma exigência, hoje nem sei se ainda consta da Política Nacional de Atenção Básica, já bastante diferente de sua origem. Nunca entendi porque não era regra também para os outros membros da equipe, quer dizer, sempre entendi porque não era uma exigência, mas porque nunca chegou a ser uma recomendação?
Morar no território ajuda a conhecer onde se está trabalhando, quais os problemas e as potencialidades do território. Facilita a criação de vínculos duradouros com a população, com a equipe e a percepção de ser parte e não apenas um prestador de serviços.
Nem sempre consegui morar no território em que trabalhava, mas onde consegui, a imersão aconteceu. Em uma dessas, ia caminhando para a Unidade de Saúde ou pedalando e conseguia almoçar em casa todos os dias.
Certa vez, após almoçar com toda a família na mesa, voltava caminhando para Unidade de Saúde e avistei Dona Lúcia, mãe de uma escadinha de filhos, Luiz, de oito anos, Maísa de 6 anos,  Maicon de 4 e na barriga carregava mais um.  Todos limpinhos e vestidos com suas melhores roupas. Eles iam puxados pela mão da mãe orgulhosa. Uma procissão linda e emocionante de ver.
Alcancei o grupo, entrei rápido, pois queria estar já pronto quanto eles chegassem (detesto me fazer esperar). Fui a sala de puericultura ver se estava tudo em ordem, passei pela sala de vacina, onde a vacinadora já estava e fui para minha sala, arrumei as cadeiras das crianças, os brinquedos e fiquei esperando.  
Esperei, esperei, esperei mais e nada, então fui até a recepção ver o que estava acontecendo. Procurei e não encontrei Dona Lúcia, nem as crianças, então perguntei à recepcionista, uma das três que atendiam naquele momento,  onde estava Dona Lúcia.
­­̶  Ela esqueceu de trazer o cartão SUS.
Foi o que a recepcionista disse. Fui até o portão do UBS e Dona Lúcia e sua procissão já iam longe, dois quarteirões. Corri até ela, gritei e pedi que voltasse.
Enquanto ela voltava fui até a recepcionista, que estava lendo uma revista catálogo de vendas e pedi o prontuário da família. Ela levantou com cara feia, disse que não tinha obrigação de procurar o prontuário sem saber o número.
̶  Quer que eu mesmo procure?
Foi o que disse, sem esconder minha irritação e acrescentei:
̶  Sabe de onde essa família veio caminhando?
Uma das recepcionistas saiu da sala, a outra foi procurar o prontuário.
Nenhuma das três recepcionistas sabia de onde vinha caminhando aquela família, deveriam saber, mas não sabiam. Eu sabia. Conhecia a distância entre a casa dela e a UBS, sabia como ardia o sol na cabeça, isso porque já tinha feito o mesmo caminho várias vezes andando em sentido contrário. E isso nunca foi nenhum favor, sempre considerei que caminhar ao sol, igualzinho a maioria dos usuários, uma obrigação da equipe, da qual eu escolhi fazer parte.
Esse caminho conhecia eu, os ACS, a Nutricionista, a Técnica de Enfermagem, a profissional de educação física e outros (que se consideravam parte da equipe), a recepcionista não sabia. E talvez por isso tenha sido tão fácil para ela dizer que não poderia procurar o prontuário pelo nome, mesmo não tendo, naquele momento, nada de muito significativo para fazer.
Qual a causa desse comportamento tão desumano e sem profissionalismo: apego às regras, preguiça, falta de vínculo com a comunidade, o que?
Desde essa época tenho pensado que uma das formas de melhorar a empatia e o vínculo entre os trabalhadores da saúde e a comunidade é apresentar o território, o modo de vida do indivíduo da área, suas dificuldades, enfim, colocar o profissional nos sapatos dos usuários.  
Quase sempre consegui isso na Estratégia Saúde da Família (ESF), mas nem sempre. Conseguir fazer isso hoje está cada vez mais difícil. Muitos profissionais, incluindo ACS, Enfermeiros e Médicos, não estão muito interessados em conhecer o território (talvez para não se afetar e continuar sendo meros prestadores de serviços), não querem fazer visita domiciliar, quando muito, aceita a ideia de visitar acamados, pessoas com dificuldade de locomoção (desde que só de vez em quando). Isso é o mesmo que dizer que não querem conhecer os usuários, pois se conhece melhor quando se vai até o domicílio, de preferência andando, tomando sol na cabeça, pisando lama ou cheirando poeira ou no mínimo vivenciando o que o usuário vivencia.
Em outra cidade, em outra região do país, uns quatro anos após essa história, deparei-me com um médico que estava há oito meses trabalhando em um território e não conhecia o Seu João, acamado há quase dez anos por causa de uma Acidente Vascular Cerebral. Confrontado com a situação ele disse:
̶  Eu não sabia!
O profissional não percebeu que não saber é quase pior do que não querer fazer. O agravante é que, nesta cidade, até os ACS diziam não ter obrigação de fazer visita domiciliar. Situação mais grave ainda.
Como conhecer o território e as pessoas que nele moram sem sair do consultório da UBS?
Quero acreditar que o sujeito que conhece o território, conhece também os seus moradores e, conhecer o outro, a quem jurou cuidar (se bem que desconfio que jurar é mera formalidade), é o primeiro passo para que o vínculo aconteça. E quando há vínculo entre os trabalhadores e os usuários, dificilmente o trabalhador se comportara como barreira de acesso.

[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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