Em saúde da
família é bom que a equipe more no território. Isso para Agente Comunitário de
Saúde (ACS) chegou a ser uma exigência, hoje nem sei se ainda consta da
Política Nacional de Atenção Básica, já bastante diferente de sua origem. Nunca
entendi porque não era regra também para os outros membros da equipe, quer
dizer, sempre entendi porque não era uma exigência, mas porque nunca chegou a
ser uma recomendação?
Morar no
território ajuda a conhecer onde se está trabalhando, quais os problemas e as
potencialidades do território. Facilita a criação de vínculos duradouros com a
população, com a equipe e a percepção de ser parte e não apenas um prestador de
serviços.
Nem sempre
consegui morar no território em que trabalhava, mas onde consegui, a imersão
aconteceu. Em uma dessas, ia caminhando para a Unidade de Saúde ou pedalando e
conseguia almoçar em casa todos os dias.
Certa vez, após
almoçar com toda a família na mesa, voltava caminhando para Unidade de Saúde e
avistei Dona Lúcia, mãe de uma escadinha de filhos, Luiz, de oito anos, Maísa
de 6 anos, Maicon de 4 e na barriga carregava mais um. Todos limpinhos e vestidos com suas melhores
roupas. Eles iam puxados pela mão da mãe orgulhosa. Uma procissão linda e emocionante
de ver.
Alcancei o
grupo, entrei rápido, pois queria estar já pronto quanto eles chegassem
(detesto me fazer esperar). Fui a sala de puericultura ver se estava tudo em
ordem, passei pela sala de vacina, onde a vacinadora já estava e fui para minha
sala, arrumei as cadeiras das crianças, os brinquedos e fiquei esperando.
Esperei,
esperei, esperei mais e nada, então fui até a recepção ver o que estava
acontecendo. Procurei e não encontrei Dona Lúcia, nem as crianças, então
perguntei à recepcionista, uma das três que atendiam naquele momento,
onde estava Dona Lúcia.
̶ Ela esqueceu de trazer o
cartão SUS.
Foi o que a
recepcionista disse. Fui até o portão do UBS e Dona Lúcia e sua procissão já
iam longe, dois quarteirões. Corri até ela, gritei e pedi que voltasse.
Enquanto ela
voltava fui até a recepcionista, que estava lendo uma revista catálogo de
vendas e pedi o prontuário da família. Ela levantou com cara feia, disse que
não tinha obrigação de procurar o prontuário sem saber o número.
̶ Quer que eu mesmo procure?
Foi o que
disse, sem esconder minha irritação e acrescentei:
̶ Sabe de onde essa família veio caminhando?
Uma das
recepcionistas saiu da sala, a outra foi procurar o prontuário.
Nenhuma das
três recepcionistas sabia de onde vinha caminhando aquela família, deveriam
saber, mas não sabiam. Eu sabia. Conhecia a distância entre a casa dela e a
UBS, sabia como ardia o sol na cabeça, isso porque já tinha feito o mesmo
caminho várias vezes andando em sentido contrário. E isso nunca foi nenhum
favor, sempre considerei que caminhar ao sol, igualzinho a maioria dos
usuários, uma obrigação da equipe, da qual eu escolhi fazer parte.
Esse caminho
conhecia eu, os ACS, a Nutricionista, a Técnica de Enfermagem, a profissional
de educação física e outros (que se consideravam parte da equipe), a
recepcionista não sabia. E talvez por isso tenha sido tão fácil para ela dizer
que não poderia procurar o prontuário pelo nome, mesmo não tendo, naquele momento,
nada de muito significativo para fazer.
Qual a causa
desse comportamento tão desumano e sem profissionalismo: apego às regras,
preguiça, falta de vínculo com a comunidade, o que?
Desde essa
época tenho pensado que uma das formas de melhorar a empatia e o vínculo entre
os trabalhadores da saúde e a comunidade é apresentar o território, o modo de
vida do indivíduo da área, suas dificuldades, enfim, colocar o profissional nos
sapatos dos usuários.
Quase sempre
consegui isso na Estratégia Saúde da Família (ESF), mas nem sempre. Conseguir
fazer isso hoje está cada vez mais difícil. Muitos profissionais, incluindo
ACS, Enfermeiros e Médicos, não estão muito interessados em conhecer o
território (talvez para não se afetar e continuar sendo meros prestadores de
serviços), não querem fazer visita domiciliar, quando muito, aceita a ideia de
visitar acamados, pessoas com dificuldade de locomoção (desde que só de vez em
quando). Isso é o mesmo que dizer que não querem conhecer os usuários, pois se
conhece melhor quando se vai até o domicílio, de preferência andando, tomando
sol na cabeça, pisando lama ou cheirando poeira ou no mínimo vivenciando o que
o usuário vivencia.
Em outra
cidade, em outra região do país, uns quatro anos após essa história, deparei-me
com um médico que estava há oito meses trabalhando em um território e não
conhecia o Seu João, acamado há quase dez anos por causa de uma Acidente
Vascular Cerebral. Confrontado com a situação ele disse:
̶ Eu não sabia!
O profissional
não percebeu que não saber é quase pior do que não querer fazer. O agravante é
que, nesta cidade, até os ACS diziam não ter obrigação de fazer visita
domiciliar. Situação mais grave ainda.
Como conhecer o
território e as pessoas que nele moram sem sair do consultório da
UBS?
Quero acreditar
que o sujeito que conhece o território, conhece também os seus moradores e,
conhecer o outro, a quem jurou cuidar (se bem que desconfio que jurar é mera
formalidade), é o primeiro passo para que o vínculo aconteça. E quando há
vínculo entre os trabalhadores e os usuários, dificilmente o trabalhador se
comportara como barreira de acesso.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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