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26 agosto 2016

FRAGMENTOS DE MEMÓRIAS VERDE OLIVA

Ernande Valentin do Prado

Minha reservista diz que passei Um ano, Zero meses e Vinte Seis dias no exército brasileiro. Importante dizer: não foi como voluntário, mas obrigado sobre forte coerção legal, psicológica e até física. Desta época, que ainda lembro como uma das mais marcantes em minha vida, guardo lembranças profundas (quase sempre ruins), mas algumas até alegre, talvez amaciadas pelo tempo e pela criação de vínculo com amigos sinceros. Nestas páginas vou escrever algumas delas, como fragmentos de memórias.
Memórias não são o real acontecido, mas o como nos lembramos. Sem exageros, nem prá lá e nem pra cá, são acontecimentos recriados, tão reais quantos nos lembramos ou queremos que seja. Algumas partes esquecidas com o tempo, foram reconstituídas a partir de informação de amigos, de fotografias, documentos, outras foram recriadas intencionalmente a partir da imaginação, do que poderia ter sido e do que gostaria que tivesse sido. O mais importante, que não deve ser esquecido ou colocado em dúvida, é que todos os sentimentos envolvidos, tal qual possível de lembrar, são legítimos, são autênticos. Isso não foi recriado de forma nenhuma, embora escrito de modo elaborada para não despertar indiferença.
Alguns nomes, que não lembrei, foram trocados ou deliberadamente omitidos, principalmente quando configurava situações desabonadora, constrangedoras e/ou pudesse causar embaraço, sobretudo legal.  O resto é verdade.

O INTERROGATÓRIO

No pavilhão um, ao lado da primeira companhia, espremiam-se uns 150 conscritos, ainda em trajes civis, como chegaram das cidades da região. Entre eles eu. A neblina, tão típica na região, já havia se dissipado há algum tempo e o sol tomado conta de vez. É o primeiro dia do recrutamento de 1989, no 30º Batalhão de Infantaria Motorizada, mais conhecido nas bocas como 30 BIM, em Apucarana, Norte do Paraná.
A maioria de nós está tenso, dá para ver nas caras assustadas. Até quem deseja servir a pátria, está tenso. Quantos desejam realmente ser selecionados e passar um ano inteiro usando farda verde oliva, carregando fuzil, limpando banheiro, tirando guarda e recebendo ordens? Imagino que poucos, apesar da maioria ter que se declarar voluntário, sendo ou não.
Mentalizo o tempo todo: não posso servir, não posso servir, mas apesar de não conseguir conceber tal situação, sei não o que pode ser. No momento ainda tenho esperanças de conseguir escapar. Tem gente demais, não é possível que tenha lugar para cada um.
 Homens fardados passam de um lado para o outro, altivos, ombros levantados, fardas impecavelmente passadas, olhando por baixo dos gorros. Santos Alves, antigão, como eram chamados os soldados engajados ou profissionais, que não davam baixa no final do período obrigatório e ficavam de um ano para o outro, para em frente a primeira fileira dos jovens civis prestes a ter toda sua vida alterada e pergunta:
- Quem sabe dirigir?
Ninguém responde. Acho que a maioria está prevenida quanto as terríveis e humilhantes pegadinhas impostas aos novatos. Ou talvez só estejam paralisados de medo.
De trás da mesa, aonde, em frente sentava o jovem a ser entrevistado (ou seria interrogado?) um primeiro ou segundo sargento, de enormes e pretos bigodes, levantou a sobrancelha, depois a cabeça, diante da nenhuma reação de todos nós:
- Não adianta mentir, vamos distribui-los segundo suas informações: quem mentir que não sabe ler vai limpar banheiro, lavar panelas do batalhão. Quem souber dirigir vai ser motorista.
Na minha vez de ser interrogado, o sargento perguntou: você quer servir?
- Não! Respondi decidido, sem deixar margem para dúvidas, mas não tive coragem de dizer que abominava o que sabia do exército, a vida militar, que obedecer ordens sem questionar, aceitar hierarquias não fazia parte de quem eu queria ser.
- Por acaso é revolucionário? Perguntou o sargento, levantando a cabeça e olhando-me diretamente nos olhos, sem rir. Parecia que aquela era uma pergunta séria, embora não conseguisse acreditar. Revolucionário em 1989? Ainda dava para falar nisto com o fim da abominável ditadura, iniciada com o golpe covarde de 1964? Em Apucarana, cidade com o maior número de reacionários por metros quadrado que já conheci?
Em junho de 1995, para inauguração da primeira, e talvez a única vila agrária do País, Fernando Henrique Cardoso (FHC) esteve em Apucarana. Depois de cinco anos morando em Curitiba, voltei a cidade para participar das manifestações contra FHC e Jaime Lerner, àquela altura identificados como os arautos do neoliberalismo no Brasil. O município estava apinhado de aparatos repressivos, policiais civis, militares, federais e o exército. No centro, os manifestantes, entre eles eu, caminharam em torno da praça do redondo, ao som da marcha fúnebre, carregando um caixão, que simbolizava a morte do recém-nascido governo do PSDB. Em todo o percurso, no entorno da catedral, o cortejo recebeu vaias da população local, muito hostil aos manifestantes. 
Duas horas antes, quando cheguei à rodoviária da cidade, junto com alguns colegas do sindicato dos bancários, da Central de Movimentos Populares, da CUT, identifiquei, tomando refrigerante no maior e mais vistoso boteco, de onde tinha visão de todos os ônibus que chegavam, o sargento Borba e um cabo, daqueles antigões, gordos e lentos. Diziam deste cabo, que fora promovido e estabilizado por matar revolucionário durante a ditadura. Vá saber se era lenda ou realidade. 
Borba, semanas depois dessa manhã de recrutamento, seria o sargento de meu pelotão. Baixinho, forte, cara amarrada, como se tivesse eternamente irritado, mas ao mesmo tempo engraçado, como se a cara enfezada fosse uma máscara para esconder seu eterno deboche, do que fazia ou da cara dos soldados e até dos superiores, seu humor mordaz.  Ele era e ainda parece ser, a encarnação do militar de direita, que odeia qualquer movimento de esquerda, qualquer pessoa com tendências anarquista ou socialistas, qualquer um com simpatia pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), ou pela cor vermelha. Ao mesmo tempo, foi com ele que aprendi verdadeiramente o significado de honra, ética, compromisso, dedicação as suas convicções, a importância de ser o exemplo do que fala, mais do que com qualquer pessoa de esquerda que vim a conhecer ou admirar. Se Borba comandava exercício de rastrejo na lama, por baixo de arrame farpado, ele ia na frente, rastejando, e não em pé, olhando, como faziam ouros instrutores. 
Os dois usavam roupas civis, barba grande, como nunca havia visto nos mais de 365 dias de quartel. Mas eram eles.
- Bom dia sargento, disse eu, segurando minha bandeira tão vermelha quanto o sangue arterial que corria em minhas entranhas.
O sargento não respondeu, apenas acenou com a cabeça, como se fosse um tique nervoso, típico dele. Fez sinal para o cabo, entraram em um fusca branco (que deveriam chamar de viatura) e sumiram. Apareceram, depois, na marcha fúnebre, mas ao ver que foram identificados novamente, entraram no fusca e não os vi mais.
- Não! Disse abaixando os olhos, porque tinha medo que o sargento, de alguma forma paranormal, descobrisse que me sentia revolucionário. E se o SNI  tivesse uma ficha com minhas informações e o bigodudo tivesse lido? O que ele faria se soubesse de minhas falas na aula de “estudos Sociais”, se soubesse do Jornal do Grêmio no Colégio do Pirapó? Se soubesse que já tinha visto Prá Frente Brasil, Nunca Fomos Tão Brasileiros? E se ele soubesse que tinha lido “Brasil Nunca Mais” e que formara minhas convicções sobre o exército a partir do livro que expunha todas as atrocidades cometidas pelos militares que impuseram com armas seu governo, nas duas décadas anteriores?
Será que ele tinha como saber dessas coisas e por isso perguntou se eu era revolucionário?
Tremi.
- Vou perguntar de novo, diz Santos Alves: quem sabe dirigir?
Desta vez, três pessoas ergueram os braços sem muita convicção. Nos meses seguintes, ao menos nas instruções do Sargento Borba, ninguém voltaria a erguer os braços sem convicção: ele sempre dizia, antes de fazer qualquer pergunta: responda certo ou errado, mas responda com convicção, nada de erguer mais ou menos o braço. Erga assim, fazendo ele mesmo o gesto: mão fechada, com força, braço estendido bem alto, com convicção.
Quase sempre, depois da resposta à sua pergunta, ele dizia:
- Não! Mas errou com convicção. Se o soldado erguia a mão sem convicção, nem deixava responder, já mandava pagar dez, mentalmente.
- Veem comigo! Diz o antigão, por trás dos óculos redondos, virando as costas e caminhando para longe de nosso olhar. Os civis, que ainda nem havia passado pelo interrogatório, o seguiu.
Em poucos minutos voltaram, seguindo o soldado antigo. Estavam com vassouras, pás e dirigiam duas carriolas, onde colocavam rejeitos recolhidos no pavilhão.
Apesar da pegadinha indecente e desmobilizante, aprendi minha primeira lição sobre as funções de um soldado, no glorioso exército brasileiro: obedecer é regra, limpar é regra e tem sempre alguém mais antigo disposto a lhe dar ordens.

[Ernande Valentin do Pradinho publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


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