Ernande Valentin do
Prado
Minha reservista diz
que passei Um ano, Zero meses e Vinte Seis dias no exército brasileiro.
Importante dizer: não foi como voluntário, mas obrigado sobre forte coerção
legal, psicológica e até física. Desta época, que ainda lembro como uma das
mais marcantes em minha vida, guardo lembranças profundas (quase sempre ruins),
mas algumas até alegre, talvez amaciadas pelo tempo e pela criação de vínculo
com amigos sinceros. Nestas páginas vou escrever algumas delas, como fragmentos
de memórias.
Memórias não são o real
acontecido, mas o como nos lembramos. Sem exageros, nem prá lá e nem pra cá,
são acontecimentos recriados, tão reais quantos nos lembramos ou queremos que
seja. Algumas partes esquecidas com o tempo, foram reconstituídas a partir de
informação de amigos, de fotografias, documentos, outras foram recriadas
intencionalmente a partir da imaginação, do que poderia ter sido e do que
gostaria que tivesse sido. O mais importante, que não deve ser esquecido ou
colocado em dúvida, é que todos os sentimentos envolvidos, tal qual possível de
lembrar, são legítimos, são autênticos. Isso não foi recriado de forma nenhuma,
embora escrito de modo elaborada para não despertar indiferença.
Alguns nomes, que não
lembrei, foram trocados ou deliberadamente omitidos, principalmente quando
configurava situações desabonadora, constrangedoras e/ou pudesse causar
embaraço, sobretudo legal. O resto é
verdade.
O INTERROGATÓRIO
No pavilhão um, ao lado
da primeira companhia, espremiam-se uns 150 conscritos, ainda em trajes civis,
como chegaram das cidades da região. Entre eles eu. A neblina, tão típica na
região, já havia se dissipado há algum tempo e o sol tomado conta de vez. É o
primeiro dia do recrutamento de 1989, no 30º Batalhão de Infantaria Motorizada,
mais conhecido nas bocas como 30 BIM, em Apucarana, Norte do Paraná.
A maioria de nós está
tenso, dá para ver nas caras assustadas. Até quem deseja servir a pátria, está
tenso. Quantos desejam realmente ser selecionados e passar um ano inteiro
usando farda verde oliva, carregando fuzil, limpando banheiro, tirando guarda e
recebendo ordens? Imagino que poucos, apesar da maioria ter que se declarar
voluntário, sendo ou não.
Mentalizo o tempo todo:
não posso servir, não posso servir, mas apesar de não conseguir conceber tal situação,
sei não o que pode ser. No momento ainda tenho esperanças de conseguir escapar.
Tem gente demais, não é possível que tenha lugar para cada um.
Homens fardados passam de um lado para o
outro, altivos, ombros levantados, fardas impecavelmente passadas, olhando por
baixo dos gorros. Santos Alves, antigão, como eram chamados os soldados
engajados ou profissionais, que não davam baixa no final do período obrigatório
e ficavam de um ano para o outro, para em frente a primeira fileira dos jovens
civis prestes a ter toda sua vida alterada e pergunta:
- Quem sabe dirigir?
Ninguém responde. Acho
que a maioria está prevenida quanto as terríveis e humilhantes pegadinhas
impostas aos novatos. Ou talvez só estejam paralisados de medo.
De trás da mesa, aonde,
em frente sentava o jovem a ser entrevistado (ou seria interrogado?) um
primeiro ou segundo sargento, de enormes e pretos bigodes, levantou a
sobrancelha, depois a cabeça, diante da nenhuma reação de todos nós:
- Não adianta mentir,
vamos distribui-los segundo suas informações: quem mentir que não sabe ler vai
limpar banheiro, lavar panelas do batalhão. Quem souber dirigir vai ser
motorista.
Na minha vez de ser
interrogado, o sargento perguntou: você quer servir?
- Não! Respondi
decidido, sem deixar margem para dúvidas, mas não tive coragem de dizer que
abominava o que sabia do exército, a vida militar, que obedecer ordens sem
questionar, aceitar hierarquias não fazia parte de quem eu queria ser.
- Por acaso é
revolucionário? Perguntou o sargento, levantando a cabeça e olhando-me
diretamente nos olhos, sem rir. Parecia que aquela era uma pergunta séria,
embora não conseguisse acreditar. Revolucionário em 1989? Ainda dava para falar
nisto com o fim da abominável ditadura, iniciada com o golpe covarde de 1964? Em
Apucarana, cidade com o maior número de reacionários por metros quadrado que já
conheci?
Em junho de 1995, para
inauguração da primeira, e talvez a única vila agrária do País, Fernando
Henrique Cardoso (FHC) esteve em Apucarana. Depois de cinco anos morando em
Curitiba, voltei a cidade para participar das manifestações contra FHC e Jaime
Lerner, àquela altura identificados como os arautos do neoliberalismo no
Brasil. O município estava apinhado de aparatos repressivos, policiais civis,
militares, federais e o exército. No centro, os manifestantes, entre eles eu,
caminharam em torno da praça do redondo, ao som da marcha fúnebre, carregando
um caixão, que simbolizava a morte do recém-nascido governo do PSDB. Em todo o
percurso, no entorno da catedral, o cortejo recebeu vaias da população local,
muito hostil aos manifestantes.
Duas horas antes,
quando cheguei à rodoviária da cidade, junto com alguns colegas do sindicato
dos bancários, da Central de Movimentos Populares, da CUT, identifiquei,
tomando refrigerante no maior e mais vistoso boteco, de onde tinha visão de
todos os ônibus que chegavam, o sargento Borba e um cabo, daqueles antigões,
gordos e lentos. Diziam deste cabo, que fora promovido e estabilizado por matar
revolucionário durante a ditadura. Vá saber se era lenda ou realidade.
Borba, semanas depois
dessa manhã de recrutamento, seria o sargento de meu pelotão. Baixinho, forte,
cara amarrada, como se tivesse eternamente irritado, mas ao mesmo tempo
engraçado, como se a cara enfezada fosse uma máscara para esconder seu eterno
deboche, do que fazia ou da cara dos soldados e até dos superiores, seu humor
mordaz. Ele era e ainda parece ser, a
encarnação do militar de direita, que odeia qualquer movimento de esquerda,
qualquer pessoa com tendências anarquista ou socialistas, qualquer um com
simpatia pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Movimento dos Trabalhadores
Sem Terra (MST), ou pela cor vermelha. Ao mesmo tempo, foi com ele que aprendi
verdadeiramente o significado de honra, ética, compromisso, dedicação as suas
convicções, a importância de ser o exemplo do que fala, mais do que com
qualquer pessoa de esquerda que vim a conhecer ou admirar. Se Borba comandava
exercício de rastrejo na lama, por baixo de arrame farpado, ele ia na frente,
rastejando, e não em pé, olhando, como faziam ouros instrutores.
Os dois usavam roupas
civis, barba grande, como nunca havia visto nos mais de 365 dias de quartel.
Mas eram eles.
- Bom dia sargento,
disse eu, segurando minha bandeira tão vermelha quanto o sangue arterial que
corria em minhas entranhas.
O sargento não
respondeu, apenas acenou com a cabeça, como se fosse um tique nervoso, típico
dele. Fez sinal para o cabo, entraram em um fusca branco (que deveriam chamar
de viatura) e sumiram. Apareceram, depois, na marcha fúnebre, mas ao ver que
foram identificados novamente, entraram no fusca e não os vi mais.
- Não! Disse abaixando
os olhos, porque tinha medo que o sargento, de alguma forma paranormal,
descobrisse que me sentia revolucionário. E se o SNI tivesse uma ficha com minhas informações e o
bigodudo tivesse lido? O que ele faria se soubesse de minhas falas na aula de
“estudos Sociais”, se soubesse do Jornal do Grêmio no Colégio do Pirapó? Se
soubesse que já tinha visto Prá Frente Brasil, Nunca Fomos Tão Brasileiros? E
se ele soubesse que tinha lido “Brasil Nunca Mais” e que formara minhas
convicções sobre o exército a partir do livro que expunha todas as atrocidades
cometidas pelos militares que impuseram com armas seu governo, nas duas décadas
anteriores?
Será que ele tinha como
saber dessas coisas e por isso perguntou se eu era revolucionário?
Tremi.
- Vou perguntar de
novo, diz Santos Alves: quem sabe dirigir?
Desta vez, três pessoas
ergueram os braços sem muita convicção. Nos meses seguintes, ao menos nas
instruções do Sargento Borba, ninguém voltaria a erguer os braços sem
convicção: ele sempre dizia, antes de fazer qualquer pergunta: responda certo
ou errado, mas responda com convicção, nada de erguer mais ou menos o braço.
Erga assim, fazendo ele mesmo o gesto: mão fechada, com força, braço estendido
bem alto, com convicção.
Quase sempre, depois da
resposta à sua pergunta, ele dizia:
- Não! Mas errou com
convicção. Se o soldado erguia a mão sem convicção, nem deixava responder, já
mandava pagar dez, mentalmente.
- Veem comigo! Diz o
antigão, por trás dos óculos redondos, virando as costas e caminhando para
longe de nosso olhar. Os civis, que ainda nem havia passado pelo
interrogatório, o seguiu.
Em poucos minutos
voltaram, seguindo o soldado antigo. Estavam com vassouras, pás e dirigiam duas
carriolas, onde colocavam rejeitos recolhidos no pavilhão.
Apesar da pegadinha
indecente e desmobilizante, aprendi minha primeira lição sobre as funções de um
soldado, no glorioso exército brasileiro: obedecer é regra, limpar é regra e
tem sempre alguém mais antigo disposto a lhe dar ordens.
[Ernande
Valentin do Pradinho publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]
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