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09 novembro 2018

NA BEIRA DO RIO PARANÁ

Rio Paraná. Ernande, 2018


Ernande Valentin do Prado



No meio do Rio Paraná, sentiu uma dor aguda em cima do coração, indo para o lado esquerdo e uma sensação de que estava morrendo. Pediu para o companheiro de pesca o levar para casa. Lá, tomou um banho e até perfume passou. Depois disse à esposa para só passar um batom, não precisava nem trocar de roupa: a dor é demais.
O companheiro de pescaria, enlameado até os olhos, dirigia um carro com dois lugares e disse que os três no carro ao mesmo tempo ficariam muito apertados. Levaria meu pai para o hospital e voltaria buscar minha mãe. Combinado.
Sumiu na estrada, com minha mãe olhando da porta de casa, às margens do Rio Paraná, em Porto Felício. De um lado o Paraná, na outra margem o Matogrosso do Sul. Local onde escolheu para viver.
Alguns minutos, antes dela entrar em casa, o carro reaparece na estrada e meu pai, sentado no banco do passageiro grita, para vizinha. Queira ter certeza que ela, que se sentia mal, não estava precisando ir ao hospital:
 — O carro é pequeno, mas a gente se aperta. Gritou ele.
No caminho até o hospital, a dor era muito grande, a agonia ia aumentando.
— Passa esse carro, se precisa entra no pasto.
Gritava.
Na porta do hospital, antes do motorista estacionar, ele abriu a porta, desceu correndo, atravessou a porta, entrou pelos corredores que já conhecia bem, gritando:
— Me acorde que eu não quero morrer.
O enfermeiro, seu conhecido, atendeu imediatamente.
Quando o companheiro, depois de estacionar, entrou no hospital, ele já estava deitado na maca, passando por um eletrocardiograma.  
Aguentou firme todos os procedimentos. A decisão do médico foi transferir para um hospital maior, com mais recurso em uma outra cidade. Enquanto o companheiro foi buscar a esposa, como prometera, ele ficou só. Assim como ficaria só a partir das 17 horas do dia seguinte.
Uma procissão de parentes, esposa, filhos, netos, sobrinhos, cunhados, cunhadas, genros, amigos, pescadores, companheiros de pesca, companheiros de companheiros de pesca, adentraram o cemitério da cidade de Apucarana, norte do Paraná, distante centenas de quilômetros de Porto Felício, em Querência do Norte, onde decidira morrer. Isso com protestos de vizinhos, companheiros de pescas, que não puderam ir tão longe para se despedir.
Os funcionários do cemitério abriram o jazigo da família, onde já estava um primo/cunhado de longos anos de amizade. O caixão foi conduzido até o local final de morada. Ajeitado com cuidado. Eu fiquei olhando o homem colocar massa de cimento e tijolo, enquanto o caixão sumia de minhas vistas. Tijolo por tijolo, até que as pessoas começaram a ir embora. Um tio passou a mão pelo meu ombro: “agora é preciso ter força”. Depois outro: “melhor ir”.
Fomos embora, meu pai ficou sozinho.
Acho que foi neste momento que me toquei que meu pai, de apenas setenta e dois anos, morreu. Fomos embora e meu pai ficou sozinho. Até então ele estava cercado por tanta gente, que até parecia um dia normal, onde era sempre o centro das atenções com suas falas, anedotas, histórias mirabolantes.  Agora ficaria sozinho e eu deixaria de ser o filho para ser só pai. Senti que imediatamente envelheci.
Caminhei para longe sentindo-me, agora sim, distante de meu pai de um jeito irremediável, como nunca sentira antes.
Uma morte rápida, antes de envelhecer, como dia desejar. No dia quatorze de outubro de 2018, entrou no hospital por volta das dezenove horas e morreu mais ou menos às vinte e uma horas e trinta minutos.
Já andava se sentido mal há algum tempo, fraqueza, dores, fadiga, desanimo até para pescar. Mas recusava-se a ir ao serviço de saúde, para o desespero conformado de minha mãe. Segundo suas crenças, ir ao “médico” fazia ficar doente.
Um mês antes foi advertido por um médico, de uma cidade onde estava trabalhando,  de que tinha um “problema sério no coração”. Claro que não acreditou, só estava cansado. E, seu médico de confiança, talvez até companheiro de pesca, o tranquilizou: “você está ótimo, não tem problema nenhum no coração”.
Ao receber a primeira notícia, de que ele passara mal e estava no hospital, comecei a procurar passagens.  Sem preocupação. Depois minha irmã disse que ele seria transferido de hospital, depois que achava que ele tinha tido uma parada cardiorrespiratória, depois que ele estava em coma. Uma sucessão de informações tão rápidas que era até difícil de acreditar ou de entender. Por fim, eu já com a passagem comprada, ela disse:
— Nosso pai, que ia viver pra sempre, morreu.
Sempre tive medo de levar a mesma vida e percorrer os mesmos passos de meu pai. Impaciente, inquieto, sempre indo de um canto ao outro. Mudando de cidade em cidade, de estado em estado e achando que seria na próxima que tudo ia ser como ele queria. E sem querer fiz tudo isso e continuo fazendo.
Uns dias antes ele me disse, por telefone, que envelhecer é difícil de mais. Perde-se as forças e as esperanças.
— Quando era jovem tudo eu resolvia trabalhando. Agora quem vai contratar um velho?
É verdade.
Isso sempre me preocupa. Por outro lado, é verdade que meu pai viveu e morreu como queria. É verdade que não tinha uma casa tão confortável como gostaria, nem um carro tão novo quanto gostaria ou um barco tão potente quanto achava que precisava.
Fez tudo do jeito que podia e queria. Não envelheceu demais a ponto de perder a autonomia, como queria, e morava na Beira do Rio Paraná, como sempre quis.
No final das contas, é apenas isso que espero, poder viver como e onde eu sempre quis e morrer antes de perder minha autonomia.
Embora ainda não me saia da cabeça que meu pai ficou sozinho naquele cemitério, sei que está dentro de mim e estará cada vez mais: cada vez que me olho no espelho, até fisicamente, vejo meu pai em cada centímetro desta pele que vai ficando vermelha de sol e de tempo.
Vou ficar em paz, meu pai, e um dia, quem sabe, talvez até tenha paciência para aprender a pescar.


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]


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