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Rio Paraná. Ernande, 2018 |
Ernande Valentin do Prado
No meio do Rio Paraná, sentiu uma dor aguda em cima do coração,
indo para o lado esquerdo e uma sensação de que estava morrendo. Pediu para o
companheiro de pesca o levar para casa. Lá, tomou um banho e até perfume passou. Depois
disse à esposa para só passar um batom, não precisava nem trocar de roupa: a
dor é demais.
O companheiro de pescaria, enlameado até os olhos, dirigia um
carro com dois lugares e disse que os três no carro ao mesmo tempo ficariam
muito apertados. Levaria meu pai para o hospital e voltaria buscar minha mãe.
Combinado.
Sumiu na estrada, com minha mãe olhando da porta de casa, às
margens do Rio Paraná, em Porto Felício. De um lado o Paraná, na outra margem o
Matogrosso do Sul. Local onde escolheu para viver.
Alguns minutos, antes dela entrar em casa, o carro reaparece na
estrada e meu pai, sentado no banco do passageiro grita, para vizinha.
Queira ter certeza que ela, que se sentia mal, não estava precisando ir ao
hospital:
— O carro é pequeno, mas a
gente se aperta. Gritou ele.
No caminho até o hospital, a dor era muito grande, a agonia ia
aumentando.
— Passa esse carro, se precisa entra no pasto.
Gritava.
Na porta do hospital, antes do motorista estacionar, ele abriu a
porta, desceu correndo, atravessou a porta, entrou pelos corredores que já
conhecia bem, gritando:
— Me acorde que eu não quero morrer.
O enfermeiro, seu conhecido, atendeu imediatamente.
Quando o companheiro, depois de estacionar, entrou no hospital,
ele já estava deitado na maca, passando por um eletrocardiograma.
Aguentou firme todos os procedimentos. A decisão do médico foi
transferir para um hospital maior, com mais recurso em uma outra cidade.
Enquanto o companheiro foi buscar a esposa, como prometera, ele ficou só. Assim
como ficaria só a partir das 17 horas do dia seguinte.
Uma procissão de parentes, esposa, filhos, netos, sobrinhos,
cunhados, cunhadas, genros, amigos, pescadores, companheiros de pesca,
companheiros de companheiros de pesca, adentraram o cemitério da cidade de
Apucarana, norte do Paraná, distante centenas de quilômetros de Porto Felício,
em Querência do Norte, onde decidira morrer. Isso com protestos de vizinhos,
companheiros de pescas, que não puderam ir tão longe para se despedir.
Os funcionários do cemitério abriram o jazigo da família, onde já
estava um primo/cunhado de longos anos de amizade. O caixão foi conduzido até o
local final de morada. Ajeitado com cuidado. Eu fiquei olhando o homem colocar
massa de cimento e tijolo, enquanto o caixão sumia de minhas vistas. Tijolo por
tijolo, até que as pessoas começaram a ir embora. Um tio passou a mão pelo meu
ombro: “agora é preciso ter força”. Depois outro: “melhor ir”.
Fomos embora, meu pai ficou sozinho.
Acho que foi neste momento que me toquei que meu pai, de apenas
setenta e dois anos, morreu. Fomos embora e meu pai ficou sozinho. Até então
ele estava cercado por tanta gente, que até parecia um dia normal, onde era
sempre o centro das atenções com suas falas, anedotas, histórias mirabolantes. Agora
ficaria sozinho e eu deixaria de ser o filho para ser só pai. Senti que
imediatamente envelheci.
Caminhei para longe sentindo-me, agora sim, distante de meu pai de
um jeito irremediável, como nunca sentira antes.
Uma morte rápida, antes de envelhecer, como dia desejar. No dia
quatorze de outubro de 2018, entrou no hospital por volta das dezenove horas e
morreu mais ou menos às vinte e uma horas e trinta minutos.
Já andava se sentido mal há algum tempo, fraqueza, dores, fadiga,
desanimo até para pescar. Mas recusava-se a ir ao serviço de saúde, para o
desespero conformado de minha mãe. Segundo suas crenças, ir ao “médico” fazia
ficar doente.
Um mês antes foi advertido por um médico, de uma cidade onde
estava trabalhando, de que tinha um “problema sério no coração”.
Claro que não acreditou, só estava cansado. E, seu médico de confiança, talvez
até companheiro de pesca, o tranquilizou: “você está ótimo, não tem problema
nenhum no coração”.
Ao receber a primeira notícia, de que ele passara mal e estava no
hospital, comecei a procurar passagens. Sem preocupação. Depois
minha irmã disse que ele seria transferido de hospital, depois que achava que
ele tinha tido uma parada cardiorrespiratória, depois que ele estava em coma.
Uma sucessão de informações tão rápidas que era até difícil de acreditar ou de
entender. Por fim, eu já com a passagem comprada, ela disse:
— Nosso pai, que ia viver pra sempre, morreu.
Sempre tive medo de levar a mesma vida e percorrer os mesmos
passos de meu pai. Impaciente, inquieto, sempre indo de um canto ao outro.
Mudando de cidade em cidade, de estado em estado e achando que seria na próxima
que tudo ia ser como ele queria. E sem querer fiz tudo isso e continuo fazendo.
Uns dias antes ele me disse, por telefone, que envelhecer é
difícil de mais. Perde-se as forças e as esperanças.
— Quando era jovem tudo eu resolvia trabalhando. Agora quem vai
contratar um velho?
É verdade.
Isso sempre me preocupa. Por outro lado, é verdade que meu pai
viveu e morreu como queria. É verdade que não tinha uma casa tão confortável
como gostaria, nem um carro tão novo quanto gostaria ou um barco tão potente
quanto achava que precisava.
Fez tudo do jeito que podia e queria. Não envelheceu demais a
ponto de perder a autonomia, como queria, e morava na Beira do Rio Paraná, como
sempre quis.
No final das contas, é apenas isso que espero, poder viver como e
onde eu sempre quis e morrer antes de perder minha autonomia.
Embora ainda não me saia da cabeça que meu pai ficou sozinho
naquele cemitério, sei que está dentro de mim e estará cada vez mais: cada vez
que me olho no espelho, até fisicamente, vejo meu pai em cada centímetro desta
pele que vai ficando vermelha de sol e de tempo.
Vou ficar em paz, meu pai, e um dia, quem sabe, talvez até tenha
paciência para aprender a pescar.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]
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