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23 fevereiro 2020

CONSELHO É IGUAL BUCHO DE VACA!


Estela Márcia Rondina Scandola

Santo era um cabra muito, mas muito legal mesmo nos ensinamentos que fazia depois que aprendia algo. Tavo eu em uma capacitação para conselheiros de saúde chamada pela Pastoral Social ou era a CPT, da CUT... não lembro direito..., mas lembro que tinha o Ferrari, Aparecido, Milício... e o Santo. Naqueles anos era o comum ter uma porção de homens e quase nenhuma mulher nos cursos de formação. Nesse tinha mulheres, mas o protagonismo ainda era de homens. Ainda bem que já mudou bem hoje em dia!
Nos anos de 1990 só se iniciava capacitação ou encontro de trabalhadores rurais a partir do que existia de política de saúde que era o Funrural. Quando se ia para o atendimento na cidade que não era para trabalhador rural, embora o SUS já existisse, era “costume” atender o povo do campo com o carimbo do “indigente”. Então, uma  questão é que o Funrural não “ia existir mais”  e prá onde iriam os trabalhadores rurais acostumados ao “seu” posto de saúde? “seu” hospital...? enfim, como ir no SUS se lá não sabiam nada do que era a vida no sítio... A insegurança das lideranças dos  Sindicatos dos Trabalhadores Rurais era imensa. Era como cantar a música “Corre um boato aqui donde eu moro , que as mágoas que eu choro são mal ponteadas”. O fato é que o povo da cidade, exceto os sucaneiros conheciam nada ou quase nada do rural sitiante...
As lideranças tinham um discurso bem afinado com a CUT, ou seja,  havia muitos avanços previstos na Constituição Federal... mas, e os trabalhadores rurais? Falavam da letra das leis... mas o coração continuava pulsando em dúvidas dos sentimentos da alma sertaneja... “ Pra todo aquele que só fala que eu não sei viver, chega lá em casa pruma visitinha...” Como sempre me corrige o Chico... uai, porque é que fazer política, correr atrás de direitos é cidadania? Então significa que isso é da cidade? Será que vamos precisar cravar a rurania como a política pros assentados, sitiantes?
Os discursos e os sentimentos eram bem contraditórios e, somente na hora da comida ou à noite, na roda de viola é que os sentimentos eclodiam e eram compartilhados... “É que a viola fala alto no meu peito humano e  toda moda é um remédio pros meus desenganos; É que a viola fala alto no meu peito humano...  e toda mágoa é um mistério fora deste plano.”
A música trazia romance, sobretudo nostalgia... falava-se da terra, das lutas, dos cheiros de chuva... ah, a música tem essa coisa de  trazer da alma os sentimentos e colocar na roda.  Os freirianos presentes dançavam bonito na metodologia... nem sempre tinham planejado trabalhar com o emocional para além da racionalidade... Fazíamos tudo: questão geradora, levantamento da realidade, palavras-chaves... textos e propostas de encaminhamentos... mas e os sentimentos? Então, a viola e os violeiros e os que balbuciavam se misturavam aos facilitadores dos enontros... e aí.... kkkkkk bora refazer a programação do dia seguinte. Sempre tinha muito disso e o Ferrari era aquele que dormia por último até detalharmos toda a metodologia do outro dia.
 O início do SUS foram riquíssimos em histórias visando a sua  implantação e eu aprendia demais da conta, especialmente com os grupos lutadores e que se organizavam prá fazer valer as conquistas dos abaixo-assinados, passeatas, ocupações, caravanas... Eu era mesmo sortuda em viver no meio do povo que se sentia escritores da história... e, dentre eles tinha o Santo.
Chegou-se, no segundo dia de encontro, lá na Vila São Pedro,  à conclusão que deveriam os trabalhadores rurais entrar em peso pros Conselhos de Saúde... e todo mundo falando da articulação necessária porque tinha muita gente que não gostava dos STRs;  que quem fosse usuário realmente estivesse representado prá não deixar uns sabidões tomar o lugar;  que era preciso fazer os secretários de saúde ouvir o povo do campo; que era forçar o povo da cidade a entender a situação de saúde de quem morava na zona rural... e... todo mundo falando ao mesmo tempo (minha função era sempre ir encontrando as ideias centrais e ir anotando em papel de rolo pregado nas paredes).
Lá pelas tantas, eu penso que foi o Chicão ou o Aparecido, não sei... que perguntou: mas quem, daqui, tem experiência com Conselho de Saúde na sua cidade? Santo levantou a mão e ria pelo canto da boca. Eu, empolgadíssima já fui logo: fala, fala, fala... quero saber...! E ele disse: Conselho é igual bucho de vaca. Sou conselheiro lá em Glória.
A minha sapiência abestada advinda de detentora de curso universitário, especialista em psicologia social tendo como orientadora a Silvia Lane, encarregada de trabalhar com a formação sindical da CUT, formada pela Escola de Saúde para capacitar conselheiros, murchei feito balão furado. E aí ele falou...
Conselho é assim: o secretário de saúde traz um projeto prá ser aprovado. Às veis a gente nem sabe do que se trata, não entende direito, mas a gente fica até orgulhoso de tá ouvindo as palavras bonitas... Se a gente descuida, aprova e pronto. Nem lembra de ruminar. Conselho tem que ruminar. Então tem que avisar pro Secretário que não adianta pressa... ele tem que mandar a proposta antes, explicar de um jeito que a gente entende... É o primeiro estômago...Quando a gente não entende ou quer saber mais, então a gente tem que devolver pro pessoal da secretaria mastigar de novo...
Hoje fui procurar prá entender direito e ri muito... 

“Ruminação: quando os alimentos são ingeridos em quantidades adequadas, há uma parada na ingestão por cerca de duas horas para que haja sedimentação do alimento em camadas no rúmen e se inicie um processo de ruminação, onde o material menos digerido que encontra-se nas camadas superiores no rúmen volta para a boca, ou seja, é regurgitado em sucessivas frações de bolos alimentares, para ser remastigado e re-ensalivado de forma mais completa.” Fonte: https://is.gd/BfzPtr

Fiquei pensando e pensando... Conselho que não rumina não é Conselho... tem ligação direta entre esôfago e o intestino, ou seja, é monogástrico... Agora, se tem quatro cavidades gástricas, os conselhos então deveriam debruçar-se com várias formas de análise dos projetos apresentados pelos gestores em saúde... cada análise com sucos gástricos diferentes... “Diz que eu rumino desde menininho, fraco e mirradinho a ração da estrada. Vou mastigando o mundo e ruminando e assim vou tocando essa vida marvada”
No papel pardo tasquei: ruminar sempre – não engolir o que vem pronto... discutir bastante e devolver pro secretário prá melhorar... Teve outro algo que o Santo falou que não esqueci jamais:  a vaca sente se o pasto é bom ou não é... ela até come na hora da fome, mas às veis ela sabe que vai fazer mal. A gente deve sempre olhar o pasto e, se for preciso, bota prá ruminar um monte de vezes... até a proposta ficar boa! Quando o estrume é bom, as plantas agradecem... ele vira esterco! E eu pensei: o mundo vai produzindo vida...
O meu abestamento acadêmico não tinha entendido a grandiosidade e profundidade do que o Santo falava dos Conselhos de Saúde. Aprendi e continuo ruminando sobre isso. “Cumpadi meu que envelheceu cantando, diz que ruminando dá pra ser feliz. Por isso eu vaqueio ponteando e assim procurando minha flor-de-lis”.
Há pessoas que não entendem ainda a ruminação de diferentes cavidades gástricas... pensa que conselho é igual humano, ou seja, monogástrica e então engole o pasto e esfezeia. E aí, se encanta com o pasto e não rumina... e, o que sai do conselho não serve nem prá esterco! E, pior, pode ser um esterco contaminado de toxicidade. Tem conselhos e conselheiros que são mais parecidos aos suínos, pois recebem a realidade feito alimento dos conselhos e jogam mais da metade sem absorver nada dos nutrientes. Cumprem as pautas sem se lambuzar de realidade! São conselhos eficientes e vazios da diversidade da vida... e, a realidade do campo, ah, a realidade nem sequer as conhece...



Ruminar pode ser um verbo dos Conselhos de Saúde. O exercício mental e físico de ruminação das pautas e das realidades em saúde pode construir um ciclo importante entre o pasto aparente e o que há no solo... quem sabe pudesse a ruminação ser propiciada pelo suco gástrico ruraniado. Fato é que ainda na atualidade, caso o Santo vivesse nessa dimensão, a saúde dos trabalhadores e trabalhadoras rurais ainda não chegou ao pasto dos conselhos, quanto mais ao primeiro estômago... E, para além da ruminação em si – exercício cansativo e até irritante - ,  as decisões ruminadas profundamente podem ser um esterco rico em de fazer brotar saúde por todos os lados, feito adubo pro bem viver.

Tem um ditado tido como certo
Que cavalo esperto não espanta a boiada

E quem refuga o mundo resmungando
Passará berrando essa vida marvada

Estela Márcia Rondina Scandola, 57 anos na inteireza de mulherices, publica no Rua Balsa das 10 aos domingos, ainda como convidada. Hoje, colaborou nesse texto, Chico Machado.



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