Touca de palhaço - Pintura: Alice Bernini do Prado, 2014. |
Ernande
Valentin do Prado
Cada dia mais tenho certeza de
menos coisas. Por isso não sei, não tenho certeza se este texto tem alguma
importância, se alguém vai lhe dar importância ou se alguém vai se importar com
ele. São coisas sem importância que vou escutando de bocas aqui e ali. Falas,
pensamentos, reflexões pouco refletidas. Mas têm significado ou teve para mim.
Talvez tenha algum significado para você também, não sei, mas você poderia me
dizer fazendo comentários.
Sei que precisava escrever assim
e pela urgência comecei escrevendo no ônibus, depois no ponto de ônibus, na
beira da praia, na reunião de Educação Popular em Saúde...
1.
Na
reunião de educação popular ouvi Estela dizer: “a educação popular em saúde não
é um jeito animado de fazer e só. Não quero ser chamada para animar reuniões
que estão sem graça”. Fiquei pensando, o que já pensava antes, que é nisto que
querem nos transformar. Alguns se deixam levar logo, outros resistem. Por quê?
2.
Falei o seguinte: “a política nacional de
educação popular em saúde não pode ser usada para que o militante se acomode,
para que deixe de fazer o que já faz, mas para lhe dar maior respaldo para promover
seu fazer.” Mas de fato, quem garante que a PNEPS não foi permitida justamente
para desmobilizar os educadores e legitimar um tipo de educação popular em
saúde que não seja tão perigosa? A história mostra que as políticas publicas têm
esse efeito colateral, quando não é o efeito principal.
3.
No
fim da reunião pergunto ao rapaz que faz a segurança da reitoria:
- o senhor passa à noite toda
aqui?
- já têm dez meses.
- e consegue dormir de dia?
- as vezes sim, as vezes não, mas
quando durmo é um sono incomodado.
Fiquei pensando se aquele povo
evoluído sociopoliticamente e espiritualmente, progressistas em seu pensar
sobre a emancipação humana e política sabem que o prédio precisa de um
segurança durante a noite toda. E que o segurança é um daqueles homens que
precisam ser emancipados. Será que alguém pensou no sono incomodado do
segurança do lado de fora da sala de reuniões dos educadores?
4.
vi
o filme A busca, com o Wagner Moura. A história vai surpreendendo o assistente
assim como o personagem vai surpreendendo-se com sua busca. É um filme muito
delicado, a trilha sonora e a edição de som criam um clima emocional muito intenso.
O trabalho dos atores é outra coisa a se destacar. Pensando no sucesso de
alguns filmes do cinema brasileiro, talvez a delicadeza e a vida real destacados
neste filme tenha incomodado o grande público que busca só distração. Assim
como a postura de certos educadores populares, esse filme incomoda certos
públicos. Sei não, talvez seja isso ou talvez não seja nada, como diz um dos
personagem do filme Amarelo Manga.
5.
Às
vezes me vejo trocando de lugar com as pessoas. Estes dias um companheiro disse
que sentia raiva de tal atitude e eu lhe expliquei porque não conseguia sentir.
Aí percebi que estávamos trocando de lugar. Geralmente sou eu quem sente raiva
e ele que me explica porque não sentir. Pareceu que ele estava me influenciando
de um modo muito positivo.
6.
Alice
olhando a chuva cair pela janela do coletivo:
- a chuva é transparente...
... não dá para ver...
... mas dá pra imaginar.
Quanta coisa neste mundo não dá
para ver, mas dá para imaginar, como o resultado de certas coisas que fazemos
hoje, certas decisões que podem se tornar desastres terríveis ou acertos
inexpressivos, mas ainda acertos.
Depois, no calçadão, indo ao
encontro de Estela, Alice, com surpresa e alegria disse com os lábios cheios de
dentes (mas nem tanto):
- seu cabelo é roxo.
Estela respondeu:
- é da cor da flor de sua tiara.
Gostou?
- eu adorei. Quero pintar o meu
da cor do seu.
7.
Alice
do meu lado na mesa de trabalho pinta o gato, vez ou outra olha desconfiada
para meus afazeres (que ela acha ser brincadeira – não consegue entender que
mexer no computador é o trabalho que sustenta nossa casa). No sorriso falta um
dente, mas continua linda, como só podem ser as pessoas em momento especiais.
8.
Estou
no computador lendo um PDF: a aventura antropológica e chego a uma conclusão
meio perturbadora. Os autores me levam a concluir que a realidade depende da
maneira como eu penso sobre ela. É mais ou menos isso: se penso a parede enquanto
parede tenho algumas possibilidade de ação, mas se a categoria muda e passo a
pensar a parede como muro, muda-se as possibilidades sobre essa realidade. Ao
mudar a categoria com que penso sobre algo ou alguém ou algum fato, muda-se a
realidade. Isso equivale dizer que a realidade é moldada pelo pensamento a
medida que o pensamento é moldado pela realidade. Ou seja, a realidade não é
real em si mesma, mas na medida em que penso sobre ela. Larissa na cozinha
fazendo café, ouve minhas explicações e dúvidas e diz:
- é isso mesmo, não
tinha percebido ainda?
10. Todo dia percebo coisas que ainda não tinha percebido e a vida vai seguindo.
10. Todo dia percebo coisas que ainda não tinha percebido e a vida vai seguindo.
[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às
6tas-feiras]