Nova Veneza - Santa Catarina
para Cecília Mano.
Este texto curto é inspirado nos textos de dois colegas de Rua Balsa das 10 (Eymard e Ernande) também publicados aqui, sobre o começo do trabalho no mundo dos pobres; mas a lógica deles não fará meu percurso.
O texto abordará um sentimento. Uma sensação de "estar". Ou, melhor, de ter estado e de desejar estar.
Ando envolvido com esses mundos das articulações e dos diálogos institucionais e de movimentos desde garoto, se mal não lembro. E, desde 98, com as articulações em torno de um tema que eu desde antes de vir morar aqui no Brasil, já considerava difícil e suspeito: a educação popular.
Difícil e suspeito pela possibilidade de má utilização, de transformar valores éticos e princípios pedagógicos em fundamentalismos, em reducionismos ou, pior, em formas opressivas de alienação - o opressor que se considera bonzinho. Educação Popular não se proclama, não se impõe, eu pensava / penso. Se faz.
Manifestei isso ao Victor Valla em 1995, que fingiu não ouvir, como ele fazia com extrema habilidade. Mas, anos depois, ele já tocado pelos AVCs e as quedas que o deixaram cadeirante - embora lúcido e mais radical - ele falaria a muitos que não queria mais ouvir falar de educação popular. Que isso permitia que um grupo de espertinhos lucrassem politicamente com os pobres.
Sempre fui meio marginal na edpop, embora eu tenha construído ferramentas centrais para sua construção, e ainda tenha coordenado por curto tempo sua Rede; e, faz dois anos, seu Grupo Temático inserido na Abrasco.
100% sabedoria e 0% poder. Essa afirmação repetida de muitas maneiras por místicos, buscadores espirituais, etc. sempre foi norte desde que iniciei essa "caminhada". Nunca foi libertar, doutrinar, impor, usar ou coisa parecida.
Tive sim poderes. Tenho-os hoje. Só não me iludem. Só não os uso para justificar maldades nem mediocridades.
E aqui o "sentimento". Ou, ao dizer de Drummond, o sentimento do mundo: sinto que para produzir beleza e reflexão temos que nos distanciar desses mundos da política realmente existente na educação popular em saúde. Sair de comitês e coordenações, não perseguir presença a qualquer custo. E se conectar de novo com o pequeno, na sua grandiosidade, do ínfimo que é um universo. Fugir da ilusão universalista. E da ingenuidade que um documento vai mudar a perversidade.
Gosto do valor da marginalidade. A reflexão e a criação artística precisam dessa marginalidade. Holofotes, elogios vãos, unanimidades, etc. nos fazem perder rumo e fôlego. O pequeno não. O cotidiano nos desafia - seja pela dor, pela raiva, pela beleza ou mesmo pela impotência.
Marginalidade, sendo migrante, de origem parte oriental numa cidade como o Rio de Janeiro com poucos orientais ainda... me oferece o privilégio de observar a cultura para com o outro, o jeito dos Outros com o Estranho. E me permite ver, mesmo depois de 18 anos, as singularidades mágicas das culturas locais.
Isso não significa que devamos ou possamos nos distanciar dos poderes. Isso significa que os poderes serão vividos e vistos como o que são: possibilidades, pequenas ferramentas para viabilizar soluções, pequenas coisas feias e úteis.
Sem ilusão, sem engano, sem alienação, os poderes voltam a ser o que sempre foram: caminhos.
Uma pessoa muito querida gosta de falar do "poder do bem". Temos que construir ele, ela diz. Pessoas capazes e boas que tem acesso ao poder são poucas. De fato. Desafio interessante. É sabido que o poder testa o ser humano acima de quaisquer outra vivência. A grandeza se manifesta. O sofrimento do poder leva também a caminhos inesperados.
Mas é ai que é importante alimentar o Ser dos mundos ínfimos. Esse trabalho, esse treino, é valioso e fundamental para poder criar. Os criares são para nós e para compartilhar. Sua qualidade é determinada pelo trabalho interior (reflexivo, intuitivo, espiritual). E não pelas pressões dos órgãos de fomento, dos programas de pós-graduação, etc.
Esse é meu caminho desde que, aos 14 anos, descobri que queria privilegiar a dimensão de beleza do mundo. E que essa beleza precisava de justiça. E que essa justiça precisava de sabedoria. E que a sabedoria, enfim, tinha que abrir mão da ilusão do poder.
Eis aqui o sentimento do mundo.
Belo Horizonte, no meio do poder da inteligência sanitária brasileira.
Julio, querido, você traduz de forma poética um quase manifesto político e (diriam eles) apocalíptico. Obrigado por escrever.
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