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29 abril 2015

Quando eu descobri a linha da pobreza

Percentagem da população que vive com menos de US $ 1,25 por dia. Estimativa da ONU 2000-2007.

Não lembro bem quantos anos eu tinha. Quando vi a foto no meu livro de geografia de um menino na África e um texto falando que um bilhão de pessoas vivem com menos de um dólar por dia (linha da indigência) e dois bilhões com menos de dois dólares por dia – a linha da pobreza. 

Na época lembro que um dólar dava mais ou menos três reais e alguns centavos. Lembro também que o preço do pão tinha subido e custava mais ou menos quinze centavos e o Jornal Nacional passou quase um bloco inteiro mostrando vários pães franceses. Falavam sobre vender pão em quilo ou em unidade e discutiam sobre a inflação. Por aqueles dias meu pai pediu para eu comprar pão na padaria, algo raro para a minha casa onde quase sempre tivemos pão caseiro.  Lembro que fui comprar pão para a minha casa e meu pai me deu um real e cinquenta centavos para cerca de 8 pães. Comprei alguns chicletes com o troco, custavam cinco centavos cada um, 8 pães e 6 chicletes. 

Fui caminhando o caminho de casa e pensando nos três reais por dia. Fazia os cálculos pensando só na comida, não cabia ainda nas minhas contas a luz, o gás, o lazer e o conforto. Pensava que se você comesse 20 pãezinhos por dia não ia passar fome. E começava a calcular 8 pães e 1 pastel para passar o dia. Fiz várias possibilidades aritméticas e imaginava se eu tivesse três reais para comer todo o dia como iria fazer – será que iria sobrar para os chicletes?

Quando transformei no cálculo do mês pensava nos 90 reais da sobrevivência. Calculava o que era essencial para minha infância: quanto custava um lápis? Um caderno? Será que eu poderia ter um violão? Esquecia do botijão de gás, do fogo, da saúde… Não incluía na minha conta a conta da higiene, esquecia muitas coisas nas minhas contas. Mas no final das contas chegava na mesma conclusão, que basicamente só dava para o pão (e alguns pastéis, talvez). 

Sento na cadeira da universidade na Irlanda para estudar direitos humanos e de repente a mesma tal da linha da pobreza volta a me encontrar. E os cálculos de infância não ficam tão diferentes, mais coisas incluídas na conta, mas o final é o mesmo, não sobraria dinheiro para o chiclete, nem para viver. O pior, é que a linha não diminuiu de fato desde que era pequena e cresci, parece que a pouca redução foi quase como crescer comigo e com ela várias pessoas que mal podem comprar pão.

Novos conceitos de pobreza relativa e a conversa roda sobre os determinantes da saúde e a importância de diminuir a lacuna da próxima geração (Veja: Documento da ONU Redução das desigualdades no período de uma geração). Mas a lacuna parece que só fica maior, e se eu era (sou?) a próxima geração então caímos no discurso falido da próxima e próxima geração. E talvez em algum outro espaço-tempo uma mesma menina esteja abrindo o seu livro de geografia e descobrindo a linha da pobreza.

Voam abraços,
Mayara Floss

09 outubro 2013

Pai e filho unidos pelo mesmo amor




Tenho acompanhado muitos projetos de saúde comunitária desenvolvidos como atividade de extensão universitária nos últimos 35 anos, como professor da UFPB. Foi participando desses projetos que descobri o sentido de minha vida como professor universitário. Ao observar o contínuo surgimento de novos profissionais de saúde entusiasmados com o trabalho popular, com tão grande capacidade de iniciativa política e tão marcados por forte sensibilidade no entendimento das relações humanas, eu me pergunto: por onde passa este aprendizado?

A experiência vivenciada por meu filho Marcos me ajudou a entender mais esta questão. Ele se formou em medicina em 2007. Para minha alegria, ele, hoje, é um grande companheiro também na militância. E dos bons. Mas, tudo começou com uma experiência na extensão universitária, trabalhando com saúde comunitária.

Marcos foi criado em uma família de trabalhadores sociais. Quando nasceu, eu e sua mãe, Nelsina, estávamos extremamente envolvidos numa experiência de trabalho comunitário em saúde, no interior da Paraíba. Por sinal, fomos trabalhar lá, em Guarabira, porque a Igreja Católica local tinha uma ação pastoral orientada pela teologia da libertação e a educação popular e nós queríamos atuar onde houvesse companheiros com mais experiência no trabalho social. Com um mês de vida, Marcos já ia para nossas reuniões e, lá, era amamentado com tranquilidade. Fazíamos um programa de rádio semanal sobre saúde e, algumas vezes, ele entrava no estúdio. Seu choramingo fazia parte da programação. Os ouvintes acompanhavam seus passos, que eram discutidos e problematizados, afinal nós estávamos vivendo, pela primeira vez, com ele, muitos dilemas do cuidado de saúde com um recém-nascido. Depois, quando a repressão política nos obrigou a sair da região, fomos fazer um mestrado em educação em Minas, reconhecido, na época, pela valorização do trabalho social junto a mundo popular.

Marcos e seu irmão mais novo, Fernando, sempre conviveram com muitos educadores comunitários em casa. Voltando para a Paraíba, como professores universitários e militantes dos movimentos sociais, eu e Nelsina estávamos sempre conversando sobre questões ligadas ao trabalho social, mas eu notava que estas conversas não entusiasmavam o Marcos. Assim, quando ele decidiu fazer o curso de medicina, não correlacionava sua escolha com o tipo de trabalho médico que eu fazia.

Marcos tem muita semelhança física comigo. Quando entrou na UFPB, foi logo chamado de Eymarcos (no final do curso, tornou-se muito mais conhecido que eu e passei a ser chamado de “o pai do Marcos”). Buscando sua identidade própria, buscava se diferenciar, usando barba e criando espaços próprios de atuação. Assim, apesar de ter o pai coordenando um grande projeto de extensão universitária, sua primeira experiência foi em outro projeto, coordenado pelo meu amigo Emmanuel Falcão, nutricionista e técnico da Pró-Reitoria de Extensão da UFPB.

Tudo aconteceu durante uma greve de professores, no primeiro ano de seu curso. Marcos estava sem o que fazer e resolveu participar do Estágio de Vivência em Comunidades, organizado por Falcão em conjunto com a Direção Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM). Nesta vivência, passou duas semanas com outros estudantes, em um povoado indígena, na cidade paraibana Baía da Traição, que se seguiram de debates sobre o seu significado.

Como pai, senti que esta vivência foi um ponto de corte na vida de Marcos. Sua alma foi tocada de forma intensa por algo semelhante ao que vivi quando, há 39 anos, fui fazer um estágio, ainda como estudante de Medicina, em um povoado de uma região bem pobre de Minas Gerais, o Vale do Jequitinhonha. Após esse Estágio de Vivência, Marcos ganhou uma paixão pela qual passou a lutar e a estudar. A paixão pelo mundo popular, com suas belezas, potências, misérias, surpresas e dores. Passou a dedicar grande parte de sua energia à sua causa. Suas amizades, seu lazer, suas leituras e seus projetos se transformaram nesta militância. Senti a emergência de uma vibração especial em sua vida. Tinha um filho e, naquele momento, ganhei um companheiro de sonhos, projetos, curtições e lutas. Como isto é importante na vida de um pai!

Marcos, desde pequeno, ouvira muitas conversas sobre as belezas e desafios do trabalho social no meio popular. Conversávamos bastante sobre fatos da vida, quando eu expressava meu modo de ver a sociedade. Sua mãe também trazia temas do mundo popular em suas conversas em casa. Mas sentia que estas tantas conversas, destes pais, considerados e valorizados como autores de livros sobre saúde comunitária, não tocavam muito o coração de Marcos. Seus projetos e seus gostos pareciam passar por outros caminhos. O que o tocou e o transformou realmente foi o contato intenso com o mundo popular propiciado por aquela vivência. A experiência valeu muito mais que anos e anos de conversas.

Esta reflexão vem ao encontro do que tenho notado como professor do Curso de Medicina da Universidade Federal da Paraíba, onde ensino desde 1978. Atualmente sou uma pessoa bastante convidada para dar palestras em outros estados do Brasil. Muitos gostam de minhas palavras, entretanto não sinto que elas tenham muito poder pedagógico de transformação entre meus alunos. Grande parte deles não gosta de minhas reflexões. Outros gostam, mas não tenho percebido que minhas aulas tenham maiores impactos em suas vidas profissionais. Mas percebo que o projeto de extensão na Comunidade Maria de Nazaré (uma favela da periferia de João Pessoa), em que participo, tem um impacto de transformação pedagógica imenso.

No nosso Projeto (Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família), que já dura dezesseis anos, muitas turmas de estudantes passaram e pude assistir a grandes transformações. Acompanhei estudantes se transformarem em lideranças com grande capacidade de articulação política e grande envolvimento com as causas dos oprimidos. Formaram-se profissionais extremamente sensíveis aos interesses e às peculiaridades dos subalternos. Mas, neste Projeto, há muito pouco espaço para exposições teóricas. O seu forte é a inserção na realidade popular e o debate sobre as perplexidades que surgem desta vivência. O mais forte é a experiência e não aulas bem feitas. A teoria que valorizam mais é aquela que é buscada a partir das provocações trazidas pelas vivências. Uma teoria que cresce e é elaborada de uma forma que parece mais uma conversa.

O que há na realidade popular que tem tanta força de seduzir e apaixonar as pessoas que dela se aproximam abertos? O que há nesta realidade que levou pai e filho para o mesmo caminho? Há muito mistério nisto, mas algumas coisas podem ser ditas.

O pobre latino-americano está submetido a condições de muita opressão e pobreza. Neste contexto, estruturam-se muitas relações humanas perversas que impressionam muito quem se aproxima dessa realidade de sofrimento e desarrumação. Mas as pessoas que se envolvem com a causa popular não costumam fazê-lo por dó. Vejo nestas pessoas um grande encantamento com o que encontram. Os pobres da América Latina vivem radicalmente a miséria humana, mas o fazem de uma forma que permite dela brotar lutas, alegrias, paixões e solidariedades que encantam. Eles não costumam esconder suas mazelas. Oferecem-nas para o diálogo a quem delas se aproxima com abertura e respeito. Sobre a pobreza assumida sem máscaras, conversas e apoios solidários vão edificando saídas e relações humanas que encantam por sua criatividade e potência. Neste momento, o profissional tem a oportunidade de experimentar o poder dos seus gestos e palavras como dinamizadores desta construção.

A partir desta constatação, minha preocupação como professor passou a ser aplicar e experimentar este aprendizado nos cursos de graduação. Não é o conhecimento, mesmo crítico e progressista, que age pedagogicamente de forma mais intensa no estudante e, sim, a inserção e vivência no mundo daqueles que são nossa maior preocupação. Desisti de organizar minhas disciplinas de forma centrada na exposição logicamente estruturada dos conteúdos da saúde pública. Procuro, antes de tudo, criar vivências que provoquem e instiguem os estudantes. E criar espaço para debater e pesquisar os estranhamentos e percepções. Preocupo muito mais em criar situações de exposição dos estudantes à realidade de saúde das classes populares e gerar debates dos sentimentos e reflexões que daí surgem. Neste momento, livros, artigos e a pesquisa na Internet passam a ser buscados espontaneamente. Sei que, assim, alguns conteúdos planejados do programa das disciplinas costumam ser deixados de lado, mas o aprendizado, por caminhos surpreendentes, é muito maior. E é muito maior também o interesse e alegria dos estudantes que se envolvem.

Mas, nem todos os estudantes se envolvem nessa metodologia: a aproximação e o olhar compreensivo para com o mundo dos pobres irritam muitos que vivem em contextos familiares e de classe social que se beneficiam da injustiça e da desigualdade. E nem sempre se consegue a verbalização franca e clara desta irritação para ajudar a aprofundar o debate. Por isto, não é fácil conduzir este jeito de educar em cursos universitários em que muitos estudantes trazem uma atitude de soberba pela classe social a que pertencem. Uma coisa é usar esta metodologia na extensão, em que os estudantes se envolvem voluntariamente, por opção própria; outra coisa é aplicá-la de forma ampliada para todos os estudantes de um curso de graduação. Nesta situação, estes estudantes irritados boicotam os espaços de debate e as iniciativas de inserção mais profunda nas comunidades.

Mesmo assim, tem valido a pena. Muitas vezes, o nojo e desprezo para com os pobres são sentimentos difusos entranhados na subjetividade destes estudantes, de uma forma não assumida conscientemente. Estas experiências curriculares obrigatórias de inserção no meio popular criam condições para que eles possam refletir sobre esta conduta quase automática e se transformarem. O acolhimento afetuoso das famílias e movimentos populares, com suas histórias cheias de criatividade e garra, bem como a descoberta do fascínio de se descobrir profundamente útil e significativo em situações de tanto sofrimento têm uma potência transformadora muito maior do que qualquer aula teórica. É muito gratificante, para nós docentes, assistir estas mudanças tão radicais na vida dos estudantes. É isto o que me encanta no ensino universitário: os educandos são confrontados com múltiplas visões de mundo e projetos de vida que estão bem fora de sua tradição familiar e de classe. É um espaço de enorme potência pedagógica. Uma potência pedagógica que vai muito além daquilo que está planejado no currículo oficial. É uma pena que muitos educadores não valorizem, criando espaços de escuta, debate e estudo, para esta efervescência de questionamentos e aprendizados possa se desdobrar e avançar. Só me realizei como professor universitário quando consegui acessar e trabalhar pedagogicamente esta realidade de buscas, perplexidades e trocas que se encontra para além dos conteúdos e das aulas previamente planejados.

Eymard Vasconcelos, outubro de 2013

09 setembro 2013

O amor no trabalho em saúde. Eymard Vasconcelos.



Para muitos profissionais de saúde, o trabalho com os pobres, oprimidos e marginalizados não se orienta só pelo dever profissional, pela cobrança das instituições onde estão empregados, pelos lucros financeiros que obtêm ou por uma obrigação moral aprendida em sua formação. Orienta-se principalmente pelo vínculo afetivo e pelo compromisso fundado neste vínculo. A partir deste vínculo afetivo, aproximam das pessoas e comunidades com um olhar e uma escuta sensíveis, atentas para dimensões sutis da realidade. Orientam seu agir principalmente pela percepção das suas consequências no olhar, nos corpos e nas palavras das pessoas que cuidam.

Este vínculo se inicia com o encantamento com a criatividade da população, a gratidão e valorização como são acolhidos nas comunidades, os instigantes desafios teóricos trazidos pelas complexas situações em que são chamados a lidar e seus consequentes aprendizados, além do clima de amizade e de alegria que surge neste tipo de trabalho. Trata-se inicialmente de um vínculo reforçado pelos encontros e acontecimentos do momento. Mas este vínculo vai se aprofundando. Situações de dificuldade, ingratidão, tensão, conflito e frustração surgem, criando períodos sem estes reforços. São tempos áridos que desanimam alguns, mas fazem outros profissionais descobrirem estar vinculados para além das emoções presentes. Trata-se de um vínculo mais visceral e mais atávico que os aproxima de um compromisso não apenas com os usuários mais próximos dos serviços, mas com a população em geral, principalmente os mais necessitados. Vai criando uma maior capacidade de indignação com outras situações de injustiça e opressão presentes na sociedade. Envolve-os, aos poucos, nas lutas políticas pela ampliação dos direitos sociais e pela superação das causas estruturais da desigualdade. Este vínculo mais profundo, que vai ficando sem medo das dificuldades, enfrentamentos e perseguições decorrentes, é mais bem expresso pelo conceito de amor.

O amor é um sentimento simples de ser entendido por ser uma realidade existencial universal, mas, ao mesmo tempo, é um conceito confuso e de significado teórico pouco preciso por assumir formas muito diferentes no cotidiano da vida humana. Há o amor de mãe, dos casais, dos religiosos, dos políticos populistas, do comércio preocupado com a venda de presentes, dos prostíbulos, dos poetas, etc. Há ainda o amor ao dinheiro, ao poder, a Deus e àquele prato favorito. A grande valorização do amor romântico, entre os casais na cultura contemporânea, tem criado uma referência muito forte para sua compreensão, que tende a tornar o conceito de amor em algo muito idealizado, com as qualidades mais belas possíveis, o que cria ilusões por esconder as suas contradições e seus condicionamentos sociais. No mundo acadêmico e profissional, onde impera uma ideologia de valorização da objetividade racional e lógica desvestida de qualquer emoção, passou a ser um conceito extremamente evitado. Mas na vida privada destes profissionais e acadêmicos, fora dos seus ambientes de trabalho e pesquisa científica, tem sido um dos temas que mais gera interesse. Na última década, no entanto, vem sendo tema de crescente debate nas ciências humanas.

Amor é um vinculo afetivo intenso e profundo entre seres que reorienta a relação entre eles, a partir do momento em que se estabelece. Diferencia-se do outros vínculos afetivos pela intensidade. Nele, dinâmicas inconscientes tornam-se fortes, superando o controle da vontade consciente. Gera um enlevo afetivo que toma simultaneamente a consciência e o agir dos seres envolvidos. Desencadeia um tipo especial de acolhimento, compreensão mútua e aceitação de diferenças não bem compreendidas. Cria uma relação de reciprocidade com um forte sentimento de união de interesses, propósitos, necessidades e emoções. A partir daí, estabelecem-se compromissos que se baseiam mais na emoção do que na vontade e no dever racionalmente construído. Neste vínculo, passa-se a sofrer e alegrar intensamente com o sofrimento e a alegria do outro. A partir do momento em que se estabelece na vida das pessoas, passa a ser elemento estruturante importante do sentido e da motivação que dão ao seu existir. É uma experiência, ao mesmo tempo, espontânea como também intencionalmente cultivada. A abertura e o investimento da vontade consciente criam condições para que a sua dinâmica de envolvimento emocional se aprofunde.

Amor é, portanto, regido principalmente pelo sentimento e não pela vontade. Não se ama por obrigação. Ele não pode ser ordenado. Não é um dever moral. Quando existe amor, o dever moral é supérfluo. Mas como ele não está presente na maioria das relações humanas, a moral é necessária. Para muitos filósofos (Sponville, 2011), o agir regido pela moralidade é um agir como se houvesse amor, com aparência de amorosidade, para o bem do convívio humano em sociedade. A moral, sim, é regida pela vontade e pelo dever.

A valorização dos sentimentos, das emoções e das intuições significa uma abertura para dimensões e forças que estão fora do controle da vontade e da elaboração consciente e lógica. É uma abertura para elementos vindos do inconsciente, onde não existe apenas o amor: ali estão também rancores, instintos confusos, medos intensos, agressividades, ímpetos contraditórios e a agitação de nossas neuroses. Para dar espaço à amorosidade é preciso também acolher e elaborar nossas dimensões sombrias, que tendem a se manifestar juntas. Não basta querer amar. O amor vem. E vem misturado com o que não é amor. Amar é um processo exigente de elaboração. Ao fazê-lo, potências subjetivas ligadas à sensibilidade e à intuição são desenvolvidas, levando a superação do viver restrito ao que é racional, medível e claramente explicável.
A valorização do amor no trabalho em saúde significa a ampliação do diálogo nas relações de cuidado e na ação educativa pela incorporação das trocas emocionais e da sensibilidade, propiciando ir além do diálogo baseado apenas em conhecimentos e argumentações logicamente organizadas. O vínculo afetivo cria novos canais de compreensão. Leva a mente colocar-se no lugar do outro, para perceber o significado dos acontecimentos a partir de sua perspectiva. Alguns chegam a afirmar que só se compreende bem aquilo que se ama. Assim, o amor permite que o afeto se torne elemento estruturante dos diálogos, acordos e motivações do processo de construção de uma vida com mais saúde. O amor aciona um processo subjetivo de elaboração, não totalmente consciente, que traz importantes percepções, motivações e intuições sobre a realidade para o processo de produção da saúde. Assim, são incorporados ao trabalho aspectos mais sutis da realidade subjetiva e material da população. O amor é, portanto, uma dimensão importante na superação de práticas desumanizantes e na criação de novos sentidos e novas motivações para o trabalho em saúde.
O vínculo afetivo, nesta perspectiva, se diferencia das situações de submissão presentes nas relações de dependência emocional, não podendo ser confundida com sentimentalismo ou infantilização das relações de cuidado. Em nome do amor, muitas cobranças opressivas são feitas. Ao contrário, o amor fortalece o compromisso com a superação de situações de sofrimento e injustiça. Enquanto referencia para a ação política, pedagógica e de cuidado, o amor amplia o respeito à autonomia de pessoas e de grupos sociais em situação de iniquidade, por criar laços de ternura, acolhimento e compromisso que antecedem às explicações e argumentações. 

Há inicialmente uma surpresa ao perceber a potência terapêutica e de transformação social do agir regado pela emoção amorosa. Vai se percebendo, no entanto, que a expressão desta emoção precisa ser modulada para que seja eficaz e ética. Não é qualquer emoção, pois ela também pode ser expressão de rancores, preconceitos e neuroses. É preciso aprender a lidar com as emoções no trabalho profissional. É um processo de aprendizado demorado que acontece por meio de vivências, em que erros e acertos são cometidos e refletidos. A relação continuada e franca com os pacientes, possibilitada pelo vínculo, permite que estas situações possam ser revistas. Vai se desenvolvendo o que vem sendo chamado de inteligência emocional (Goleman, ). E a vida afetiva do profissional, inclusive sua vida privada, vai sendo enriquecida.
Em uma sociedade onde grande parte dos profissionais tem um trabalho alienado, sem vínculo com o que se produz, ter um trabalho criativo e integrado com seus principais propósitos de vida é um grande privilégio. A qualidade deste trabalho, carregado de motivação e sentido, acaba sendo reconhecido, gerando gratificações, inclusive financeiras. Portas institucionais se abrem, mesmo sem iniciativa intencional para isto.
A valorização do trabalho profissional por amor é algo bastante propalado em discursos de gestores, empresários e políticos para cobrar um maior empenho do trabalhador, muitas vezes, sem condições institucionais mínimas. Por isto, há uma desconfiança generalizada contra o uso desta palavra no ambiente institucional. Mas o que realmente dá força e legitimidade para o trabalho por e com amor é a vivência de experiências significativas em que ele aconteceu, transformou e encantou. Depois de experiências como esta, discursos, ideologias e mensagens adocicadas têm pouco valor. Quem passou por esta vivência, evita falar muito sobre ela, pois as palavras são pequenas para expressá-la bem. Só conversam com quem percebem entender destes caminhos sutis da subjetividade humana. Trata-se de uma experiência que leva a uma paz e a uma sensação de sentido pleno que dão uma certeza e uma assertividade para seguir o caminho tomado. Assenta-se em rocha firme e se sente bem apoiado. As ventanias e confusões do trabalho não mais abalam significativamente. Depois desta experiência, firme na rocha, se tem força para enfrentar gestores, empresários e políticos com discursos hipócritas. O desafio passa a ser manter–se assentado nesta rocha, nesta vivência do amor, pois rancores, cansaços, medos e seduções individualistas de consumo e poder podem crescer e afastar da rocha. E o trabalho em saúde é cheio destes perigos. Mantê-lo nas trilhas do amor exige sabedoria, estudo e reflexão.

A experiência da centralidade do amor na existência humana transforma os objetivos do trabalho em saúde. A amorosidade e a ternura passam a ser não apenas uma metodologia de aprofundamento do diálogo e do cuidado, para se tornar também seu objetivo. Não se busca apenas uma sociedade justa, igualitária, participativa, sem marginalizados e com direito assegurado à assistência, mas também uma sociedade amorosa, pois só assim o ser humano se realiza plenamente. A amorosidade é pois instrumento e finalidade do trabalho de promoção da saúde.

As dimensões da emancipação ligadas à justiça, democracia e equidade das políticas sociais têm passos e metas mais palpáveis e delimitadas. São necessárias mudanças das leis, do sistema de representação política, da distribuição dos recursos públicos, da organização da produção econômica, do fortalecimento de organizações sociais, etc. São metas e passos muito difíceis, mas palpáveis dentro de uma lógica racional. Já a ampliação da amorosidade na sociedade é uma dimensão da emancipação menos palpável e menos controlada pela ação consciente. Depende do acolhimento e difusão de dinâmicas que, como o vento, a vontade não consegue governar; apenas cria-se espaço, elabora-se e espera. Isto é extremamente incômodo para as mentes regidas pelo cálculo e pelas estratégias racionalmente definidas.

Eymard Mourão Vasconcelos, setembro de 2013

Este texto e os outros textos meus estão sendo debatidos na lista de discussão 

http://br.groups.yahoo.com/group/dialogando_/

30 agosto 2013

Três grandes inspiradores: Jesus, Marx e Paulo Freire


Uma perspectiva ampliada de trabalho em saúde exige visões panorâmicas da realidade que permitam situá-lo no contexto da história humana de luta pela emancipação e felicidade. Querer orientá-lo apenas com saberes técnicos operativos induz a um grande empobrecimento de suas possibilidades. Este empobrecimento simplificador é útil para os que querem apenas usar a ação em saúde com objetivos comerciais ou como instrumento de dominação política. Trabalhadores alienados são muito úteis para operar instituições, cujos fins últimos não podem ser revelados publicamente. Para isto, se adorna as propostas de trabalho com palavras bonitas e cheias de boas intensões e se foge do debate mais amplo com as análises bem estruturadas sobre a realidade social presentes nas tradições históricas de espiritualidade, na filosofia e nas ciências humanas e sociais. Não basta se entregar ao trabalho em saúde com paixão e boa intensão; é preciso também de uma visão crítica consistente. Para isto, é preciso estudo e debate.

O cuidado da saúde é um dos trabalhos mais antigos da humanidade. Seus trabalhadores, em todas as épocas da história, tiveram uma enorme relevância social. Alguns deles se destacaram e se tornaram referências simbólicas importantes na cultura de seus povos. Em geral, eram pessoas que se preocupavam muito com leituras e discussões filosóficas, religiosas e políticas, além do estudo dos detalhes técnicos de seu trabalho. Esta tradição milenar de grandeza profissional precisa ser continuada neste momento da história de crescimento, nunca antes visto, do individualismo voltado para o consumo compulsivo de mercadorias, o gozo privado de prazeres e a obsessão pela diferenciação e distinção pessoal em relação aos outros. O sentido comunitário ficou encoberto pela glorificação do sentido individual. Trata-se de um momento histórico em que enormes instituições empresariais e governamentais conseguiram construir sistemas de controle ideológico complexos e sutis, que deixam os interesses de lucro e domínio mostrarem-se mascarados, adocicados e desejados pela inculcação e difusão de sonhos individualistas, através dos meios de informação e de difusão cultural financeiramente controlados. A dominação ficou parcialmente adocicada e é atraída pelo anzol da sedução das infinitas e mirabolantes promessas de consumo e prestígio, oferecidas para indivíduos competitivos e espertos. Mais do que nunca, é preciso valorizar visões ampliadas e críticas que possibilitem vislumbrar o sentido histórico do trabalho em saúde. Isto tem exigido muito esforço e enfrentamento.

Nos centros formadores de profissionais de saúde e nos centros de pesquisa de novas práticas e tecnologias de assistência, tem sido usual o banimento de estudos filosóficos e sociológicos sobre a realidade de saúde. O debate crítico sobre os propósitos das instituições, o sentido das práticas assistenciais e os interesses subjacentes ficam fora dos espaços planejados e apoiados de ensino e pesquisa. Soam como perda de tempo e energia. O importante seria se concentrar apenas nos detalhes técnicos do trabalho em saúde e sobre o que é imediatamente operacional. Mesmo a saúde coletiva está dominada por discussões sobre conhecimentos instrumentais para gestão institucional. Expulsaram as grandes teorias e os grandes pensadores pela porta principal destes centros formadores e de pesquisa. No vazio do debate filosófico e sociológico mais amplo, criou-se um ambiente propício para o domínio da ideologia comercial e política do comando institucional. Ideologia é a justificativa, com aparência racional, de interesses não muito explícitos. Essa ideologia vai entrando pelas portas dos fundos e gretas das paredes destas instituições e pelas leituras que cada profissional vai fazendo nos meios de comunicação dominados financeiramente pelos mesmos interesses.  Assim, o pensamento dos profissionais de saúde foi ficando dominado, de forma semiconsciente, por conceitos preconceituosos e mesquinhos sobre a realidade. E o trabalho em saúde foi perdendo sua beleza, sua audácia e o seu sentido mais amplo.

Muitos profissionais de saúde resistem e lutam contra esta tendência. Buscam se inspirar nos grandes pensadores da história da humanidade. Priorizam o debate crítico sobre suas práticas e sobre a realidade em que atuam. Participam de movimentos sociais voltados para a difusão deste debate e das ideias que acreditam importantes. Surgiram, então, vários grupos teóricos e entidades que muito têm ajudado nesta luta contra o empobrecimento do trabalho em saúde pela sua submissão parcialmente escondida a interesses comerciais e de legitimação política dos grupos dominantes.
Vários grandes pensadores vêm sendo valorizados por este movimento de resistência. É esta ampla diversidade que assegura um debate mais amplo e envolvente. As ideias presentes neste conjunto de textos estão francamente influenciadas por três destes pensadores: Jesus, Marx e Paulo Freire. Nenhum deles era profissional de saúde, mas forneceram perspectivas ampliadas para o entendimento do trabalho em saúde.
Jesus, entre outras coisas, trouxe para o trabalho em saúde uma perspectiva nova de amor: o amor ágape voltado para quem é apenas próximo, ou seja, aquele que não é nem amante, nem familiar e nem amigo. É algo muito importante para entender o envolvimento de coração que muitos trabalhadores de saúde têm com seus pacientes e suas comunidades. Marx muito contribuiu para o entendimento da dimensão política e econômica do trabalho em saúde e para apontar uma perspectiva de seu engajamento na superação das estruturas sociais reprodutoras da injustiça e da desigualdade. Mostrou a importância do enfrentamento, não apenas de situações individuais e comunitárias, mas também de modos de organização da produção da riqueza econômica e da política para a conquista da saúde. Paulo Freire sistematizou um caminho de integração entre as contribuições de Jesus e Marx e refinou os caminhos da ação pedagógica necessária para a emancipação. As contribuições de cada um serão discutidas em textos seguintes.

Outros grandes pensadores, como Michel Foucault, Deleuze, Espinosa, Freud, Jung, Martin Buber, Edgar Morin, Habermas e Boaventura de Sousa Santos, têm sido valorizados no setor saúde. Explicitar estas referências teóricas mais amplas ajuda a tornar o debate mais franco e produtivo. Os grandes teóricos conseguem explicitar, de forma mais ampla e organizada, uma determinada perspectiva de análise da realidade. Mencionar a centralidade do pensamento de um ou mais destes teóricos, em sua prática, ajuda a tornar mais compreensível e clara a perspectiva que a orienta, contribuindo no diálogo entre os vários profissionais de saúde.

Além dos grandes pensadores que conseguiram criar perspectivas de análises da realidade e de intervenção amplas e articuladas, temos ainda intelectuais que vem pensando a aplicação destas perspectivas para contextos específicos de prática. Muitos sanitaristas e outros profissionais de saúde têm feito este trabalho. Em cada região ou instituição há ainda profissionais mais vocacionados para o trabalho intelectual que atuam como mediadores entre os questionamentos locais e as discussões teóricas mais amplas. Alguns professores, lideranças de movimentos sociais, profissionais locais, pastores, comunicadores, familiares, ativistas culturais fazem este trabalho para públicos menores. Na verdade, todo trabalho pedagógico é também uma mediação entre as ideias mais articuladas de leitura da realidade e as questões emergentes no cotidiano da vida.
O ser humano tem fome de entender amplamente a realidade. Não quer apenas curtir, sobreviver, interagir socialmente, ser amado, formar família e transformar a realidade próxima; é um ser curioso que carece situar sua vida particular diante de sistemas de ideias que lhe permitem ter um entendimento amplo da realidade. Mas nem todos têm condições e facilidade para investir no trabalho de organizar o pensamento. Este é o trabalho dos intelectuais, mestres e dos sábios existentes nas comunidades. É um trabalho exigente, muitas vezes não reconhecido. Educar e lutar pela justiça, liberdade e democracia é também ampliar este processo de elaboração e organização do pensar para toda a sociedade, principalmente para os mais pobres, oprimidos e marginalizados. O entendimento amplo da realidade é imprescindível para o ativo protagonismo de cada cidadão na reconstrução da nação.

Eymard Vasconcelos, agosto de 2013Este e outros textos meus estão sendo discutidos na lista de discussão http://br.groups.yahoo.com/group/dialogando_/


29 agosto 2013

Do pobre, do invisível, do descartado... e do criar e do pensar



Nova Veneza - Santa Catarina

para Cecília Mano.

Este texto curto é inspirado nos textos de dois colegas de Rua Balsa das 10 (Eymard e Ernande) também publicados aqui, sobre o começo do trabalho no mundo dos pobres; mas a lógica deles não fará meu percurso.

O texto abordará um sentimento. Uma sensação de "estar". Ou, melhor, de ter estado e de desejar estar.

Ando envolvido com esses mundos das articulações e dos diálogos institucionais e de movimentos desde garoto, se mal não lembro. E, desde 98, com as articulações em torno de um tema que eu desde antes de vir morar aqui no Brasil, já considerava difícil e suspeito: a educação popular.

Difícil e suspeito pela possibilidade de má utilização, de transformar valores éticos e princípios pedagógicos em fundamentalismos, em reducionismos ou, pior, em formas opressivas de alienação - o opressor que se considera bonzinho. Educação Popular não se proclama, não se impõe, eu pensava / penso. Se faz.

Manifestei isso ao Victor Valla em 1995, que fingiu não ouvir, como ele fazia com extrema habilidade. Mas, anos depois, ele já tocado pelos AVCs e as quedas que o deixaram cadeirante - embora lúcido e mais radical - ele falaria a muitos que não queria mais ouvir falar de educação popular. Que isso permitia que um grupo de espertinhos lucrassem politicamente com os pobres.

Sempre fui meio marginal na edpop, embora eu tenha construído ferramentas centrais para sua construção, e ainda tenha coordenado por curto tempo sua Rede; e, faz dois anos, seu Grupo Temático inserido na Abrasco.

100% sabedoria e 0% poder. Essa afirmação repetida de muitas maneiras por místicos, buscadores espirituais, etc. sempre foi norte desde que iniciei essa "caminhada". Nunca foi libertar, doutrinar, impor, usar ou coisa parecida.

Tive sim poderes. Tenho-os hoje. Só não me iludem. Só não os uso para justificar maldades nem mediocridades.

E aqui o "sentimento". Ou, ao dizer de Drummond, o sentimento do mundo: sinto que para produzir beleza e reflexão temos que nos distanciar desses mundos da política realmente existente na educação popular em saúde. Sair de comitês e coordenações, não perseguir presença a qualquer custo. E se conectar de novo com o pequeno, na sua grandiosidade, do ínfimo que é um universo. Fugir da ilusão universalista. E da ingenuidade que um documento vai mudar a perversidade.

Gosto do valor da marginalidade. A reflexão e a criação artística precisam dessa marginalidade. Holofotes, elogios vãos, unanimidades, etc. nos fazem perder rumo e fôlego. O pequeno não. O cotidiano nos desafia - seja pela dor, pela raiva, pela beleza ou mesmo pela impotência.

Marginalidade, sendo migrante, de origem parte oriental numa cidade como o Rio de Janeiro com poucos orientais ainda... me oferece o privilégio de observar a cultura para com o outro, o jeito dos Outros com o Estranho. E me permite ver, mesmo depois de 18 anos, as singularidades mágicas das culturas locais.

Isso não significa que devamos ou possamos nos distanciar dos poderes. Isso significa que os poderes serão vividos e vistos como o que são: possibilidades, pequenas ferramentas para viabilizar soluções, pequenas coisas feias e úteis.

Sem ilusão, sem engano, sem alienação, os poderes voltam a ser o que sempre foram: caminhos.

Uma pessoa muito querida gosta de falar do "poder do bem". Temos que construir ele, ela diz. Pessoas capazes e boas que tem acesso ao poder são poucas. De fato. Desafio interessante. É sabido que o poder testa o ser humano acima de quaisquer outra vivência. A grandeza se manifesta. O sofrimento do poder leva também a caminhos inesperados.

Mas é ai que é importante alimentar o Ser dos mundos ínfimos. Esse trabalho, esse treino, é valioso e fundamental para poder criar. Os criares são para nós e para compartilhar. Sua qualidade é determinada pelo trabalho interior (reflexivo, intuitivo, espiritual). E não pelas pressões dos órgãos de fomento, dos programas de pós-graduação, etc.

Esse é meu caminho desde que, aos 14 anos, descobri que queria privilegiar a dimensão de beleza do mundo. E que essa beleza precisava de justiça. E que essa justiça precisava de sabedoria. E que a sabedoria, enfim, tinha que abrir mão da ilusão do poder.

Eis aqui o sentimento do mundo.


Belo Horizonte, no meio do poder da inteligência sanitária brasileira.

27 agosto 2013

A MINHA PARTE COM OS POBRES E OPRIMIDOS

Ernande Valentin do Prado


Eu devia estar contente
Por ter conseguido tudo o que eu quis 
Mas confesso abestalhado 
Que eu estou decepcionado
                           Raul Seixas

A questão que Eymard propôs no grupo [dialogando_] (Meu envolvimento inicial com o mundo popular) deixou-me intrigado e com dúvidas. Quando foi que comecei a dedicar-me a trabalhar com os pobres e oprimidos? Não consegui encontrar realmente a origem, o dia e lugar onde tudo começou, por isso vou divagar um pouco (se me permitem).
Lembro-me que entre os 12 e 15 anos (fazendo o ensino ginasial – como se chamava na época), o meu maior sonho, lá em Apucarana, norte do Paraná, era libertar a América, refazer os passos de Tchê Guevara (não lembro exatamente como conheci essa história, mas acho que tem a ver com um professor de língua portuguesa que contava como foi preso e torturado no Congresso da UNE pela ditadura). Eu sabia que a gente vivia oprimido, sendo roubado em nossa dignidade, que alguns ganhavam muito, outros passavam fome. Meus amigos sonhavam em comprar uma moto para ganhar as meninas e isso não era fácil como hoje (vivemos uma epidemia de motos e acidentes de motos – acho que deve ser pior do que o crack, mas é uma indústria legalizada, então não chama tanta atenção).
O meu sentimento é que não trabalho para pobres e oprimidos e nem com eles, mais que sou um deles (apesar de que neste momento estou em um hotel em Brasília pago pelo Ministério da Saúde e o café da manhã foi farto – como não tem em casa todo dia). Defino-me melhor como militante do Sistema Único de Saúde (SUS), mas não de qualquer SUS e sim esse que é encarnado. Existe efetivamente mais de um SUS, assim como existe mais de um "deus". Sinto que cada igreja criou seu "deus" particular e ministros, políticos, secretários e até grande parte de trabalhadores criam o seu SUS, que lhes beneficiam com horários flexíveis, favores políticos, venda de facilidades, subfinanciamento para algumas áreas, opulências e favorecimento para outras. Não defendo esse SUS, mas um mais humano, onde as pessoas podem se encontrar, conhecer-se, criar laços e vínculos de verdade e vivenciar a equidade.
Mas vamos retroceder um pouco mais para entender de onde vem esse sentimento: meu pai tem alma de pescador e hoje, depois dos 60 anos, mora em frente a um grande rio, onde pode pescar (sua casa foi inundada esses dias pela cheia do rio que acontece todo ano, e ele me ligou animado com isso, pode?). Mas o orçamento não fecha com os vencimentos da aposentadoria (direito que adquiriu por trabalhar desde os seis anos de idade), por isso também trabalha como pedreiro. Já trabalhou com muita coisa (só não foi ladrão e imitador do Ney Mato Grosso em boates especializadas – como diz um amigo de infância): agricultor, tratorista, motorista, inventor, marceneiro, eletricista, encanador, pedreiro e pescador. Lê muito pouco, escreve menos ainda, mas, junto com minha irmã mais velha, são os maiores gênios da família e os maiores que conheço, não há nada que não saibam fazer, não há problema que não deem jeito, só não sabem ganhar dinheiro (defeito comum na família).
Não nasci com o talento de meu pai, que minhas irmãs herdaram. Sou mais parecido com minha mãe, mais pé no chão, sem grandes saltos, sem coragem de largar tudo e encarar o mundo de peito aberto. Quando moleque fui vendedor de frutas de porta em porta, engraxei sapatos na rodoviária de Campinha da Lagoa (uma das coisas que mais lembro de ter gostado de fazer), fui entregador de supermercado (naquele tempo que a gente usava bicicletas), atendente de balcão em mercearia e lanchonete, garçom e vendedor de sapato em loja chique (uma das coisas que mais detestei. Só não foi pior do que trabalhar em UTI). Também fui metalúrgico e tentei ser pedreiro. Quando vi que estava fabricando carros que nunca chegaria a comprar  e não via o sol (entrava na fábrica no escuro e saía no escuro), mas ser pedreiro, embora muitos ache uma coisa sem “saber”, exige um conhecimento especializado e um fazer refinado (quem já precisou fazer uma obra ou reforma, por menor que seja, já deve ter percebido isso). Não consegui dominar esse saber/fazer bem e não gosto de fazer sem conseguir fazer bem feito (aprendi com minha mãe).
Um belo dia, um amigo, meu sócio num trabalho de "pedreragem" mal sucedida (é um dos caras mais inteligentes e mais entendidos de literatura que conheci na vida)  chegou com a ideia de fazermos um curso de Auxiliar de Enfermagem. Segundo ele, o curso durava um ano e três meses e seria financiado pela prefeitura. O aluno receberia uma bolsa de um salário mínimo mensal (R$ 100,00 na época, mas não lembro se já era real e mais vale transporte). Achei uma péssima ideia (pensava em sangue, em curativo, em pessoas com diarreia, fralda suja, sofrimento sem fim, hospital com cheiro de remédio, gente morrendo), mas vendo o risco das paredes que havíamos acabado de levantar cairem, achei que era melhor  tentar (até hoje a casa esta em pé). Acabamos ficando com as duas últimas vagas do curso (a colega que nos avisou não passou na seleção e tornou-se uma excelente professora algum tempo depois).
O curso foi oferecido pela prefeitura para suprir a falta de mão de obra no setor. Faltavam auxiliares e enfermeiros. Havia empregos em todo lugar e o salário, embora não fosse bom, não era tão ruim quanto hoje, quando há uma escola de enfermagem em cada esquina e emprego, quase sempre quando se compromete em ser cabo eleitoral .
Mais ou menos um ano e meio depois, fui fazer a graduação por “pirraça”, por desentendimento com uma enfermeira (minha chefe). Trabalhava no hospital mais mal afamado da cidade, por opção, pois achei que lá estariam as pessoas que pagaram para eu estudar. O hospital era administrado por uma Universidade e eles ofereciam bolsa de estudo generosa (75% de desconto na mensalidade). No meio do curso fui demitido e perdi a bolsa, mas o serviço de assistência social chamou-me no fim do semestre e disseram que eu não teria como pagar aquele curso, que estavam preocupados comigo, mas como eu tinha boas notas e não faltava, estavam  oferecendo-me uma bolsa de 50%,que eu não teria que reembolsar no fim do curso. Isso desde que me comprometesse a não faltar, continuar tendo boas notas e não contar para ninguém que esta bolsa existia. Claro que aceitei, mas contei para uma colega que também não tinha como pagar o curso e ela reivindicou e conseguiu a mesma bolsa.
Sabia que não se tratava de bondade, mas de um olhar atento do serviço social (que agradeço todos os dias até hoje, sem eles minha vida teria sido muito mais dura). A instituição era beneficente e tinha uma cota de bolsa a preencher para justificar a isenção fiscal. Por isso, assim como no curso de Auxiliar de Enfermagem que havia feito antes, sabia que no final das contas quem pagava para que eu pudesse estudar era a população. Prometi para mim mesmo, assim como fiz no curso de Auxiliar, que depois de formado iria trabalhar onde a população precisasse, fosse onde fosse.
Ninguém me pediu para fazer (o que acho um erro, todos que têm o beneficio de estudar com bolsa ou em instituições pública, deveriam ter o dever de devolver um pouco do que receberam). Sinto que tenho a obrigação de devolver um pouco do que recebi. Sou enfermeiro graças ao investimento do Estado, da população que pagou com impostos minha bolsa. Fiz minha parte, aproveitando o curso, levando a sério, investindo horas e recurso, sendo o primeiro a chegar à biblioteca para não ter que comprar fotocópias ou os livros, mas mesmo assim sempre tive o sentimento de que deveria fazer mais, ir aonde não quisessem ir, fazer tudo que estivesse ao meu alcance para que o SUS fosse como deveria ser.
Por conta desse sentimento abandonei o concurso na UFPR (Hospital de Clínicas de Curitiba – o melhor hospital onde já trabalhei), Secretaria Estadual de Saúde do Paraná (que não cheguei a assumir, pois era para trabalhar em hospital e minha vida estava direcionada à Estratégia Saúde da Família), Prefeitura Municipal de Curitiba (que não cheguei assumir o concurso, pois não acredito no modelo de saúde que se praticava nesta época, onde o Enfermeiro ficava longe das pessoas e envolto em burocracias sem sentido) e Campo Largo (onde não suportei a desorganização e a intencionalidade de só fazer política eleitoral e não de saúde). Trabalhei no Espirito Santo, Mato Grosso do Sul, Bahia, Sergipe. Fui, voltei, prometi não voltar mais e voltei. Hoje estou trabalhando como Apoiador Institucional na Bahia e como Apoio Pedagógico na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no curso de Especialização em Saúde da Família em convênio com a Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS/UFPel).
O meu sentimento é que continuo fazendo tudo que posso para que o SUS venha a ser cada vez mais como sonhou os militante da Reforma Sanitária nos anos de 1970, e cada vez menos o SUS real dos gabinetes chiques com ar condicionado e charutos cubanos.

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Revisão – Cecília Mano.
Este e todos os outros textos publicados por mim neste blog foram revisados de forma fundamental por Dona Cecília Mano. Um trabalho inestimável que já fez também no livro: Vivências de Educação Popular em Atenção Primária à Saúde: a realidade e a utopia.
Dona Cecília: meus sinceros agradecimentos.




12 agosto 2013

Meu envolvimento inicial com o mundo popular - Eymard Vasconcelos


Era o ano de 1974. Eu estava em crise. No terceiro ano de medicina, pensava em abandonar o curso. Escolhi medicina pensando ser o curso mais apropriado para me tornar um pesquisador. Era fascinado com a complexidade da vida. Imaginava-me em um laboratório procurando desvendar mistérios do corpo e encontrando soluções de impacto. A figura do professor Pardal, das histórias em quadrinho do Pato Donald, com suas descobertas mirabolantes, era uma referência não claramente assumida. Mas o estágio que havia feito no Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de Minas Gerais, um centro de pesquisa bastante reconhecido nacionalmente naquela época, me decepcionara. Descobrira como a pesquisa científica em laboratório era demorada, dependente de longa rotina de repetição de testes. Era um ambiente sem o dinamismo que imaginara. Mas o que fazer então? Imaginava também o trabalho clínico em consultórios particulares e ambulatórios públicos como algo rotineiro e chato. Cheguei a procurar uma psicóloga da Universidade para me orientar.

Nesta época, o Centro Acadêmico do Curso de Medicina organizou a I Semana de Saúde Comunitária - SESAC. Eram férias e eu tinha alguns amigos na sua organização. Resolvi participar sem saber bem o que encontraria. Estudantes de cursos de medicina de outros estados vieram, trazendo relatos e reflexões de experiências de trabalho comunitário em saúde que começavam a se organizar no Brasil, em geral ligados a universidades. Era impressionante o entusiasmo de alguns deles. Animei-me, então, a participar de um estágio de duas semanas em postos de saúde recém-criados na Região do Vale do Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais, para os participantes da SESAC. Fui parar, com mais dois estudantes, no povoado de Engenheiro Schinnor, no município da Araçuaí, depois de uma desconfortável viagem de ônibus por toda uma noite. Até hoje não compreendo bem o que me animou a arriscar nesta aventura.

Era um povoado pobre e em decadência pela desativação da Estrada de Ferro Vitória-Minas, que lá passava. Fomos muito bem acolhidos pela comunidade. Cada refeição era feita na casa de um morador diferente. Estávamos bastante desajeitados e inseguros, apesar de apoiados por uma estudante de Brasília mais adiantada e já com alguma experiência em saúde comunitária. Apesar de estudantes, a população da redondeza, carente de assistência, afluía em grande número trazendo seus problemas que procurávamos resolver com os medicamentos da Secretaria Estadual de Saúde e muita conversa entre nós. Já iniciados em alguns princípios da pedagogia libertadora de Paulo Freire, procurávamos criar espaços para ir discutindo, de forma mais ampla, as raízes e soluções dos problemas mais importantes do lugarejo. Tentávamos identificar lideranças que nos ajudassem no trabalho de mobilização.

A carência da população, que ao tornar valiosos os nossos poucos conhecimentos, os levava a expor intensamente os seus problemas, e as orientações de Paulo Freire, que nos levavam a não assumir a atitude de doutor sabe-tudo, mas de encontrar formas para discuti-los coletivamente, fizeram uma mágica. Aquele povoado pacato e decadente se revelou lugar de uma dinâmica fascinante. Problemas aparentemente banais iam mostrando estar ligados a histórias complexas, carregadas de sofrimento, garra, opressão e paixão. Eu, filho de uma família de classe média tradicional da capital mineira e com uma vida bem regradinha, tive acesso a mistérios que nem imaginava. Assustei-me e encantei-me. Além do mais, sentia que éramos significativos na busca de soluções. Pouco entendíamos de política, sociologia, psicologia ou economia, mas nosso precário saber técnico nos dava autoridade para propor encontros e, seguindo os princípios da Educação Popular, colocar problemas em discussão. Nossa insegurança até ajudava, na medida em que nos dificultava tentar responder sozinhos às dúvidas. Estávamos perplexos demais com o que deparávamos para conseguirmos transmitir segurança. Era impressionante como uma simples orientação metodológica salvava e abria caminhos: “diante de um problema significativo, procure discutir com as pessoas envolvidas, buscando construir coletivamente as soluções”. Nas discussões com as famílias e nos grupos formados, fios da complexa meada da vida iam se revelando, mostrando dimensões inusitadas da luta pela sobrevivência e felicidade. Soluções eram costuradas com palpites de muitos, já os envolvendo no encaminhamento. Ficávamos encantados com os resultados esboçados no processo que ajudávamos a construir. 

Participávamos da obra de recriação coletiva da vida e isto era fascinante. Esta metodologia pedagógica nos aproximava afetivamente deles e nos permitia desfrutar de seus carinhos e alegrias que expressavam de forma intensa.

Não me lembro mais dos rostos daquelas pessoas, nem da maioria de suas histórias. Mas ficou marcado em minha alma um sentimento tão forte que tem me acompanhado em toda minha existência. Nunca vivera nada tão intenso. Foi algo, tão tremendo, que relativizou todas as minhas dúvidas. Não entendia bem o que acontecera, mas, a partir daí, fiquei sabendo que era isto que queria para a minha vida.

Desde então, em cada período de férias, buscava organizar um estágio em alguma comunidade. Precisava experimentar aquilo novamente; queria viver outros desdobramentos do amor que se iniciara; necessitava conhecer mais esta realidade que me fascinava. Vieram, então, ainda como estudante, Veredinha, Padre Paraíso, Calciolândia e a favela da Avenida Raja Cabáglia de Belo Horizonte. Os rostos e lugares mudavam e o vínculo aumentava. Classes populares e movimentos sociais foram conceitos que descobri e me ajudaram a dar uma identidade a este outro que tanto me atraía para um encontro de criação conjunta, mobilizando meus sonhos e minha paixão. As classes populares eram um novo e fascinante outro que encontrei em minha vida; um outro desvestido de pompas e sem pudor de escancarar sua intimidade desarrumada na crise da doença, deixando mostrar uma criatividade e vibração capazes de construir uma inesperada alegria e amorosidade em situações aparentemente insustentáveis.

Meu curso de medicina ficou colorido. Nas diversas disciplinas, os assuntos técnicos ganharam vida, pois me ajudavam a entender os problemas das pessoas com quem criara vínculos. Passei a ter, então, uma referência para selecionar o que estudar mais, ganhando uma autonomia diante da cobrança dos professores. Formei, fui trabalhar na Paraíba com saúde comunitária. Desde então, tive fortes encontros em Pilõezinhos, Guarabira e nas favelas de João Pessoa e Belo Horizonte. Descobri que outros profissionais também tinham paixões semelhantes e estavam cheios de inquietações. Fiz mestrado, doutorado e pós-doutorado buscando a melhor compreensão de nossas dúvidas. Vieram livros e a Rede de Educação Popular e Saúde, que aglutina hoje centenas de profissionais com buscas parecidas.

Hoje, com 60 anos, já tive vários amores. Tive namoradas, casei, tive dois filhos que não mais vivem comigo, separei, casei novamente e, agora, tive um novo filho. Olhando para trás, vejo que o encontro, com o mundo dos pobres, oprimidos e marginalizados, iniciado em Engenheiro Schinnor, no espaço do trabalho em saúde e da luta pela justiça social, funcionou em mim como um grande encontro amoroso. Destes que criam um vínculo de tal monta que reorientam todo o viver. Que despertam energias e motivações que nos dão garra para enfrentar a aventura da vida. Entre desencontros, desencantos, momentos de intensa alegria e conquistas, raivas e frustrações, este amor perdurou central. Gerou filhos: alunos e leitores espalhados pelo Brasil, movimentos sociais, sistematizações teóricas. Criou redes de parentesco. É um amor cheio de precariedades e contradições como todos outros, mas o que mais desencadeou mudanças em minha vida.
A partir do conhecimento da realidade propiciado por este comprometimento com a pobreza, opressão e marginalidade, fui também definindo meu modo de encarar minha vida afetiva, meu lazer, minhas amizades, minha vida religiosa e minha profissão.

A força deste comprometimento estruturante da minha vida foi confirmada na década de 1990, cerca de 20 anos depois da experiência de Engenheiro Schinnor. Nesta época, passei por um intenso processo de revisão de valores. Afastei-me do cristianismo, pela crescente tomada de consciência das feridas deixadas pela formação cristã tradicional (a desvalorização dos desejos, a cobrança contínua de perfeição e a ênfase na culpa pessoal) e pelo cansaço com as contradições da igreja. E terminei o casamento de 19 anos.
Como não cristão, fui fazer meu doutorado em Medicina Tropical na UFMG, procurando estudar o novo papel da educação popular a partir da conquista do Sistema Único de Saúde, quando suas práticas passaram a valorizar mais o espaço de atuação dentro das instituições. Escolhi fazer a pesquisa em um serviço de atenção primária à saúde bem estruturado, inserido em uma grande favela de Belo Horizonte. Esta experiência está descrita no livro Educação Popular e a Atenção à Saúde da Família (Hucitec, 2010, 4ª edição). Nesta pesquisa, quando percebi, estava totalmente dedicado à educação popular junto às famílias mais pobres e rejeitadas da favela: a maioria dos moradores e lideranças comunitárias tinha raiva delas pelos tumultos e sujeiras que causavam. Quando percebi isto, vi que tinha em mim um vínculo muito profundo, até mesmo inconsciente, com os pobres, oprimidos e marginalizados que dinamizava minha criatividade e trazia realização. Fui tomando consciência que um cristianismo não teórico fazia parte da minha estrutura pessoal, mesmo tendo muitas discordâncias com sua doutrina antes aprendida. Um cristianismo que não era mais essencialmente um sistema de saberes para conduzir a vida, mas um caminho de desvelamento e elaboração de uma estrutura amorosa que nos constitui (o Cristo que habita em nós, desde a criação da humanidade). A partir desta percepção, as palavras do Evangelho ganharam novo sentido. Passei, então, a ouvir e valorizar mais as vozes interiores profundas, abrindo perspectivas de ver e relacionar com a realidade, de forma menos regida pelo dever e pelo pensamento considerado correto. Retornei ao mesmo lugar, vendo, no entanto, nova paisagem. Novamente, minha vida pessoal e profissional se modificou a partir de um insight originado, em grande parte, no contato com os pobres. Por isto, tenho uma grande identidade com a história de São Francisco, narrada em texto anterior.

Este foi o caminho inicial de meu envolvimento pessoal com a luta pela saúde dos pobres, oprimidos e marginalizados. Vivi uma experiência que fundou um novo modo de ser. Percebo que vários profissionais, com envolvimento semelhante, tiveram também experiências fundantes, mas falam pouco sobre elas. É importante reconhecer a força destas experiências numinosas, isto é, experiências tão tremendas e fascinantes que passam a reorientar o viver. Trazem-lhe um novo sentido e motivação, bem profundos. Grandes aprendizados ocorrem por meio de experiências das quais pouco conversamos, pois nossas palavras não dão conta de expressá-las inteiramente. Aí, calamos.  Mas como educadores, precisamos tentar conversar mais sobre elas, criando espaços educativos protegidos em que possamos explicitar estes pensamentos e sentimentos ainda embaçados e inseguros para se expressarem com firmeza. É importante trazer para a pedagogia estes processos subjetivos, que ficam abaixo da linha d’água da consciência clara e lógica e que têm imenso poder orientador dos maiores sentidos e motivações do existir. Em outras palavras, valorizar a dimensão espiritual no fazer educativo.





03 agosto 2013

As várias faces da pobreza, opressão e marginalidade na sociedade - Eymard Vasconcelos



Pobreza, opressão e marginalidade são conceitos pouco precisos nas ciências humanas. Têm sido estudados por diferentes autores e disciplinas, com diferentes definições e ênfases teóricas. Justamente por causa desta imprecisão conceitual é que eles são adequados para as reflexões deste livro. Assim, permitem nominar pessoas e grupos sociais muito diversos e situações inesperadas de subalternidade que não se enquadram em esquemas teóricos clássicos. Expressam uma realidade em que a sensibilidade afetiva costuma, muitas vezes, detectar com mais precisão do que as muitas análises sociológicas.

Já vi pobres marginalizados na Inglaterra (imigrantes paquistaneses) com condições materiais melhores do que muitas famílias consideradas ricas na cidade onde morava, no interior da Paraíba. O ser considerado pobre tem uma dimensão relativa que depende da situação de disponibilidade de recursos em determinado ambiente social. Vi também opressores com atitudes aristocráticas, morando em favelas bem precárias.
Minha mãe, que trabalhava na pastoral da saúde de sua paróquia católica, em bairro bem rico de Belo Horizonte, conheceu e apoiou pessoas extremamente oprimidas e marginalizadas (principalmente idosos e deficientes físicos ou mentais), morando em apartamentos finamente decorados deste bairro tão nobre. Um ex-aluno trabalhou na ONG Médicos Sem Fronteiras, assistindo populações ricas, mas extremamente oprimidas pela guerra e dominação política. Há pessoas com boas condições materiais, mas que vivem humilhados por pertencerem a grupos sociais marginalizados, como os travestis e os ciganos. Pertencer a um grupo religioso pode ser fator importante de exclusão social. Pessoas pertencentes à determinada religião podem ser opressores ou oprimidos dependendo do lugar onde moram.

Opressão e marginalidade podem surgir em situações inusitadas e inesperadas.  Podem estar em situações extremamente variadas: favelados das periferias dos grandes centros urbanos, camponeses, índios da Amazônia, índios nos bairros urbanos, sem-terras, moradores de rua, idosos explorados por filhos e netos, prostitutas que sustentam sua casa, mas vistas com vergonha pelos familiares, imigrantes, presos das penitenciárias, desempregados, o aluno desajeitado e tímido da escola famosa, dependentes de drogas psicoativas, os gays, as pessoas com deficiência física, as esposas de maridos grosseiros, o amante tolhido por jogos de chantagem emocional, o trabalhador de grande empresa exploradora de mão de obra, o doente crônico deixado isolado em seu quarto, pessoas com agitação mental maior que a usual, o empregado do sapateiro da esquina, o funcionário público com vínculo precário, pessoas com aparência física muito diferente dos padrões de beleza, as vítimas da guerra, os ciganos, as faxineiras dos luxuosos shoppings centers, os operários, o morador de distante povoado ribeirinho, pessoas com ideias e propostas de vida muito diferentes da maioria, filhos de pais autoritários,  etc.

Se a opressão e marginalidade são mais evidentes em alguns grupos sociais e em algumas situações familiares e institucionais, elas, de alguma forma, são também experiências de todos. Os profissionais de saúde não são apenas pessoas que delas cuidam. De alguma forma, eles também as experimentam em suas vidas, de modo mais forte em alguns momentos e em alguns de seus espaços de convivência. Essas dolorosas experiências próprias são importantes referências para melhor compreender as pessoas a quem cuidam.

As situações de opressão e marginalidade são muitas, mas a maioria está definida pela inserção de seu grupo social no processo econômico e na consequente forma de participação da riqueza produzida, podendo ser enquadrada dentro do conceito marxista de classe trabalhadora. Empregados subordinados de grandes e pequenas empresas, grandes ou pequenas fazendas, casas de famílias e pequenas propriedades rurais. Eles e seus familiares. São pessoas que vivem de trabalho assalariado ou que até mesmo não o conseguem durante períodos, quando sobrevivem de pequenos negócios precários. São elas que constroem a imensa riqueza mundial atual, mas tem acesso à apenas uma parte pequena dela. Mas há também várias situações de exploração e marginalização que não são diretamente ligadas à organização política e econômica da sociedade, sendo apenas alteradas por ela.

Grande parte desta enorme variedade de situações está determinada por um número bem mais restrito de causas sociais, a maioria delas ligadas à forma como a riqueza é produzida e distribuída na sociedade. E como o poder político é controlado.  As ciências sociais e a economia política são fundamentais para a compreensão destas origens comuns de muitas destas situações. A assistência à saúde integral busca contribuir também no enfrentamento destas fontes estruturais da pobreza, opressão e marginalidade, sendo, portanto, importante buscar que os pacientes e os grupos assistidos as compreendam. O tratamento e a prevenção de doenças são importantes espaços para questionamento e discussão das causas mais gerais do sofrimento.

No entanto, as teorias mais importantes sobre as origens da pobreza, opressão e marginalidade na sociedade não dão conta de explicar e identificar todas as situações. A realidade é mais complexa do que as teorias existentes. Muitas vezes, o apego extremo a determinada teoria sociológica, religiosa ou econômica sobre as causas e explicações da opressão e exclusão impedem a percepção de situações novas e até frequentes. Por isto é importante a sensibilidade, que pode conseguir perceber situações inusitadas. Pela sensibilidade pode se identificar, se comprometer e, posteriormente, buscar análises explicativas para estas situações inesperadas. As teorias são importantes instrumentos para apurar nosso olhar sobre a realidade, mas podem também turvar a visão.

A identificação e conhecimento de muitas situações de opressão e marginalidade têm sido possíveis também pela formação e luta de movimentos sociais destes grupos. São movimentos que criam união e articulação política, divulgam saberes e denúncias e trazem para a cena cultural e política questões até então encobertas.
Pessoas que não convivem de perto com os pobres oprimidos e marginalizados podem vê-los de forma romântica e simplista. Eles são constituídos de grupos e pessoas contraditórias como quaisquer outras. Outros modos de opressão e subalternidade podem ser criados dentro de famílias e grupos sociais empobrecidos e marginalizados. Pessoas injustiçadas podem exercer grandes injustiças e ter ações extremamente perversas. Se entre eles há muita luta solidária de superação, também há indolência e desunião. A miséria e humilhação não têm apenas efeitos materiais e psicológicos, mas também morais. Podem gerar comportamentos tumultuados, agressivos e ressentidos. Suas contradições têm sido usadas politicamente para justificar o não investimento em políticas sociais a eles destinadas. A visão mítica dos pobres é também base para uma intensa rejeição após a percepção das primeiras contradições.

Os serviços de saúde são um dos principais locais para onde se dirigem os que mais sofrem na sociedade. Se o profissional não tiver uma visão restrita à queixa orgânica bem específica dos pacientes e tiver sensibilidade, ele pode ajudar a identificar e problematizar realidades opressivas bem maquiadas pelas famílias ou pela cultura dominante. Uma queixa centrada em um problema físico bem específico pode ser o jeito socialmente mais aceito para se chegar aos profissionais de saúde e pedir socorro, quando o sofrimento é difuso e confuso por derivar de situações sociais complexas. Alguns machucados nas pernas e braços podem revelar situações de espancamento repetido em famílias garbosas. Algumas modalidades de doença pulmonar podem indicar condições de trabalho insalubres. Uma dor de cabeça persistente pode mostrar o ritmo desumano de trabalho de uma empresa. Isto dá uma dimensão política muito forte para o trabalho em saúde, tornando-o instigante e grave. Exige um saber e uma habilidade para lidar com situações que podem gerar perseguições ao profissional. O solo por onde se desenvolve o trabalho em saúde exige um caminhar reverente. Mas também pode ser trilhado levianamente com espírito comercial e de ostentação.

Os serviços de saúde podem ser também locais que reforçam a marginalização e humilhação de pessoas e grupos sociais. “Não vou lá, porque lá me sinto mais podre do que já sinto”. Muitas resistências em procurar os serviços se devem aos olhares de rejeição e as pequenas ironias que ali acontecem, provenientes dos profissionais ou dos outros usuários. Na fragilidade da crise trazida pela doença, rejeições aparentemente pequenas causam grande efeito de afundamento da autoestima. Para alguns grupos, é preciso criar serviços específicos próprios para se conseguir uma frequência regular.

A assistência à saúde, que acolhe e trata a opressão e a marginalização, pode acontecer em diferentes tipos de serviço. Os serviços de atenção primária à saúde, bem inseridos na vida comunitária e com condições de dar um acompanhamento próximo e de longo prazo, são espaços privilegiados para um trabalho potente e criativo. As enfermarias dos hospitais acolhem os subalternos por períodos limitados, em momentos de muita fragilidade e de dependência intensa a um cuidado humano e pedagógico, podendo ter grande significado no cuidado das situações de opressão. As unidades de atendimento de urgência iniciam o cuidado nas crises, momentos cruciais na vida das pessoas, onde as situações de injustiça e desprezo se mostram evidentes, clamando por iniciativas firmes e carinhosas. O atendimento ambulatorial especializado é fundamental no acompanhamento de pessoas acometidas por problemas específicos e servem de referências orientadoras da assistência continuada nos serviços de atenção primária. Neles, é possível rever condutas antigas que não estavam dando resultados satisfatórios e perceber dimensões humanas ainda não consideradas. Organizações não governamentais e movimentos sociais voltados para problemas específicos de saúde ( como para portadores de HIV, usuários de serviços de saúde mental, síndrome de Down, hanseníase, dependentes de drogas psicoativas, etc.) ou para públicos específicos ( como os homossexuais, prostitutas, meninos de rua, negros, etc.) são espaços de trabalho riquíssimo e locais de articulação de lutas políticas fundamentais. Por traz do funcionamento de todos estes serviços, há gestores que podem atuar numa perspectiva de sua transformação em direção a uma assistência mais humana e integral. É um trabalho mais distante do atendimento às pessoas, mas muito difícil, pois exige muita habilidade política e uma visão ampla das possibilidades e alternativas. Os gestores dos serviços de saúde podem criar condições gerais propícias a uma assistência integral e orientar amplamente o conjunto de serviços em direção a um cuidado humanizado.

São, portanto, muitas as formas, espaços e possibilidades de um trabalho em saúde a serviço da superação da opressão, pobreza e marginalidade em suas múltiplas e surpreendentes faces. Elas precisam ser articuladas para serem mais potentes.

Eymard Vasconcelos
Este e outros meus textos deste blog estão sendo discutidos em uma Lista de Discussão criada para isto. Para participar basta enviar um e-mail em branco para: dialogando_-subscribe@yahoogrupos.com.br


23 julho 2013

Exigências e saberes especiais necessários à assistência aos oprimidos [eymard vasconcelos]





É usual ouvir a afirmação de que qualquer coisa basta para a assistência à saúde aos pobres. Sendo eles tão carentes, qualquer migalha já teria um grande significado. Na sua propalada ignorância, eles nem saberiam valorizar esforços mais elaborados de assistência. Por isto, causa surpresa verificar a existência de tantos profissionais estudando arduamente como aprimorar a sua atuação junto a eles.

Os pobres estão revoltados com a assistência que lhes é usualmente prestada. As manifestações mais agressivas de insatisfação causam indignação nos serviços. Para deslegitimá-las e esconder seu real significado, estas revoltas e agressividades são logo classificadas como grosseria, vandalismo, falta de educação e ignorância, que, no imaginário das elites, seriam típicas das classes populares.

É notória a precariedade da maioria dos serviços destinados aos grupos sociais subalternos. É usual encontrar prédios feios, cheios, desorganizados, com atendentes ríspidas, profissionais com baixos salários, escolhidos sem processos seletivos bem feitos e gerenciados de forma ora autoritária, ora displicente. Mas a precariedade da assistência não se deve apenas à precariedade dos recursos e ao pouco investimento na organização: é profundamente inadequado o modelo da assistência prestada nestes serviços. Eles têm, como referência orientadora, o modelo de atenção denominado de biomedicina, o modelo dominante que orienta a assistência na sociedade moderna, mas que ali é operado de forma caricatural. Este modelo biomédico já vem gerando muitas insatisfações e críticas importantes entre os usuários de padrão cultural e econômico privilegiado, mas é entre os grupos subalternos que ele manifesta mais as suas limitações.

Em que consiste este modelo biomédico de assistência? Não é algo que diz respeito apenas à assistência médica, mas a todas outras profissões do setor saúde. Trata-se de um modelo de assistência que se tornou dominante no setor saúde a partir do final do século XIX e só começa a ser criticado, de forma mais consistente, no final do século XX. Nele, a doença é vista como um mau funcionamento dos mecanismos biológicos, estudados do ponto de vista da biologia celular, da bioquímica e das leis da física. O papel do profissional de saúde é intervir física e quimicamente para consertar o defeito no mecanismo enguiçado. As atividades mentais (pensamento, sentimento, sonho, contentamento, sofrimento e angústia), quando valorizadas, são entendidas como resultado da anatomia, bioquímica e fisiologia do cérebro.

Para trabalhar orientado por este jeito considerado, até então, como científico de prestar assistência, são necessários profissionais que apliquem as técnicas de modo desvestido de sentimentos, pois estes corroeriam a objetividade. São necessários profissionais que aprendam a olhar para os pacientes de um modo focado em seus órgãos e, não, na sua totalidade como pessoa. Cada manifestação do paciente é processada procurando identificar seu significado como sinal de acometimento de algum órgão específico do seu corpo, de modo a chegar a uma classificação do problema dentre uma das diversas entidades patológicas já definidas e estudadas pela ciência. Os sintomas e sinais clínicos do paciente têm sentido e são valorizados se ajudam a encontrar a classificação do problema dentro das categorias já padronizadas pela ciência. Este modelo exige profissionais treinados a mirar principalmente as doenças (os defeitos), desvalorizando as singularidades positivas, a garra e a criatividade da pessoa para enfrentar desafios e viver com alegria e solidariedade. É necessário também que os profissionais sejam treinados a dar valor apenas ao saber produzido nos grandes centros de pesquisa e que consequentemente desvalorizem o saber produzido localmente pelas comunidades e pelos colegas. O saber presente nas tradições passa a ser visto apenas como curiosidade. É ainda preciso de profissionais competitivos e, consequentemente, individualistas, pois a concorrência é consagrada como o grande instrumento de garantia da eficiência. Tudo isto resulta em trabalhadores habilidosos em tratar doenças orgânicas, mas que não sabem cultivar o florescimento da vida.

Este modelo biomédico de assistência teve um enorme impacto positivo na melhoria das condições de saúde da população durante o século XX, em que se tornou dominante. Continua gerando inovações fascinantes na assistência à saúde, mas vem sendo crescentemente denunciado como ineficiente (os crescentes recursos que exige estão cada vez gerando menores resultados), ineficácia (a insatisfação dos usuários tem aumentado muito), iatrogênico (o número de danos e adoecimentos causados pela própria assistência têm crescido enormemente), desumano (a desconsideração de dimensões subjetivas e sociais inerentes aos problemas de saúde tem revoltado e gerado muito sofrimento nos pacientes, pois os trata como coisas) e entranhado de interesses comerciais (os tratamentos considerados mais modernos têm sido definidos principalmente por empresas interessadas em ampliar o consumo de seus produtos).

A insatisfação com o modelo biomédico e a sua inadequação são muito maiores para com os pobres, oprimidos e marginalizados. A situação de miséria, a opressão social, a humilhação, o sufoco na gestão do cotidiano e a insegurança em relação ao dia seguinte geram uma tensão e instabilidade emocional muito grande. Eles ficam muito mais vulneráveis às variações da realidade social. Têm uma dificuldade muito maior para seguir tratamentos prescritos de forma insensível às suas condições de vida. Por terem menos conhecimento para decodificar as informações e orientações técnicas dos profissionais, acabam as compreendendo menos e tendo muitos mal entendidos. Têm menos opções e recursos para compensar e superar o agir técnico focado apenas sobre os órgãos do corpo acometido pelo problema. A espoliação e perda de tempo e energia das ações de saúde desnecessárias e corrompidas pelo interesse comercial lhes causam muito maior dano e revolta por causa da precariedade de seus recursos e reservas. Além disto, usualmente têm acesso apenas a ações muito limitadas do modelo biomédico. A expressão “uma medicina pobre para os pobres” é uma realidade comum.

As práticas do modelo biomédico foram pensadas e elaboradas com vistas aos pacientes de melhor condição econômica e política, consumidores mais almejados das empresas que comandam a pesquisa e produzem os meios materiais para implementação dessas práticas ou que operam os serviços privados que as oferecem. A maioria dos doutores dos serviços de saúde, principalmente as suas lideranças, veio das elites ou das classes médias da sociedade e, mesmo sem perguntar, compreendem melhor as condições culturais, psicológicas e materiais de seus pacientes, vindos do mesmo ambiente social. Assim, naturalmente, suas orientações e prescrições levam em conta sua realidade, mesmo que o modelo de consulta não valorize as dimensões sociais e psicológicas. E mesmo que os profissionais de nível superior não tenham uma preocupação de deixar seus raciocínios serem entendidos, os seus clientes mais privilegiados são capazes de compreendê-los em parte e até questioná-los. Estes pacientes podem ter acesso ainda, pela compra no mercado profissional, de uma série de serviços de apoio complementar (psicoterapias, massagens, variados tipos de personal trainers, cuidadores, empregadas domésticas, medicinas holísticas, academias de ginásticas, ioga, ginástica postural, spas, musicoterapias, polícias privadas, danças terapêuticas, entretenimentos, tratamentos estéticos, consultorias especializadas, acesso a ricas fontes de leitura e pesquisa, engenheiros, maior disponibilidade de tempo e recursos para participar de espaços reflexivos e pedagógicos, advogados, associações de defesa do consumidor, entidades de classe, políticos amigos, etc.) que compensam parcialmente o caráter tecnicista e focado apenas no órgão doente da biomedicina.
É fácil apontar as mazelas de atendimentos feitos por profissionais desmotivados e sem compromisso social. No entanto, profissionais dedicados e comprometidos também têm dificuldade para prestar um bom atendimento para este público.

Não basta propor ou querer prestar uma assistência à saúde de boa qualidade para os grupos sociais subalternos. É preciso, para isto, repensar as práticas de assistência para eles. O modelo biomédico de assistência demorou séculos para se consolidar. Um novo modelo de atenção, mais humano e adequado para os setores econômica e politicamente marginais da sociedade, também exigirá um processo demorado e que só poderá ser conseguido por um longo e coletivo esforço de pesquisa e compartilhamento de experiências. Pouco adianta apenas a vontade sincera de ter uma prática mais integral e holística se não há recursos e treinamento em novas formas de abordagem: no corre-corre dos serviços acaba-se sendo obrigado a operar os formatos tradicionais de atendimento, com rotinas já bem estabelecidas e treinadas, para conseguir ser rápido.

Dos saberes já acumulados na perspectiva mais ampla de assistência, o saber mais importante é o que enfatiza a importância do diálogo para a redefinição das práticas assistenciais. O diálogo é o grande instrumento para a busca de adequação da assistência a estes grupos sociais tão diversos e vivendo situações existenciais tão diferentes daquelas imaginadas pelos profissionais de saúde.

O profissional, diante de cada caso, dispõe de múltiplos meios de investigação, que fornecem diferentes níveis de precisão ao diagnóstico, e tem diferentes formas de tratamento, que proporcionam níveis diversos de segurança e de cobertura. Cada um destes meios de investigação e tratamento tem diferentes custos (dinheiro, tempo, sofrimento, afastamento das atividades e esforço físico) para o paciente e para a sociedade. Cada um dos possíveis meios de investigação e de tratamento para uma determinada situação resulta em diferentes níveis de agressão para o corpo e para a rotina familiar. A decisão de quais os recursos de investigação e tratamento vão ser empregados, em cada caso, não é uma decisão puramente técnica, mas baseada em valores subjetivos e culturais, bem como na consideração da realidade material em que as pessoas vivem. Os padrões de investigação e de tratamento tidos como ótimos pelo modelo biomédico são, no fundo, decisões e padrões estabelecidos levando em consideração as condições de vida das classes dominantes. E mesmo as condutas ainda não padronizadas podem ser mais facilmente decididas, sem diálogo, pelos seus profissionais porque eles são membros destas mesmas classes. As considerações que eles fazem, baseados em suas próprias condições pessoais e em suas vivências, são, em grande parte, aplicáveis aos seus clientes. Isto não ocorre em relação aos tão diversos grupos sociais subalternos. Como um profissional pode compreender as estratégias de sobrevivência de uma família composta de quatro filhos e uma mãe (abandonada pelo marido) que vivem em casebre da periferia de uma pequena cidade, constantemente ameaçada pela violência de grupos locais ligados ao narcotráfico, sem móveis e sem utensílios domésticos, e que têm um rendimento declarado apenas de pequenas lavações de roupas e da bolsa família? Dificilmente um profissional conseguirá compreender bem a sua psicologia, os seus hábitos de vida, as suas prioridades e a sua visão da sociedade. Como ele pode então decidir por eles? Só existe mesmo um caminho: o diálogo.

Os pacientes trazem para os atendimentos visões e saberes importantes (porque integrados em sua cultura e em sua realidade material de vida) e que precisam ser valorizados. Por isto, é preciso aprender a construir as condutas terapêuticas através do diálogo. De um lado, o paciente que conhece intensamente a realidade onde está inserida o seu problema de saúde e carregado de crenças, saberes e estratégias de intervenção nesta realidade. De outro lado, o médico com conhecimentos técnicos sobre o problema, mas também carregado de crenças próprias da cultura do grupo social de onde veio. Na medida em que cada um sabe dos seus limites, é possível estabelecer uma relação, onde o diálogo não é apenas uma estratégia de convencimento, mas a busca de uma terapêutica mais eficaz por estar inserida na cultura e nas condições materiais do paciente, como também por estar aberta a outras lógicas de abordagem da doença. Agindo dessa forma, se contribui para a formação de cidadãos mais capazes de gerirem sua saúde.

As pessoas marcadas pelo sofrimento e pela humilhação da subalternidade, em geral, apresentam dificuldades para se expressar ou para elaborar um discurso direto e claro na linguagem dos doutores, em sua relação com os serviços de saúde, dificultando o entendimento de sua lógica e de seus valores. Esta característica cria desafios muito especiais para o seu atendimento. Para superar esta crise de compreensão, é preciso aproximação com abertura afetiva. O coração (símbolo da inteligência emocional e espiritual do ser humano) tem grande poder de compreender aquilo que o raciocínio lógico não consegue. É preciso criar dinâmicas para que as pessoas silenciadas se expressem. É preciso promover um ambiente afetivo para que se percebam acolhidos e à vontade para explicitar suas considerações e opiniões.

A exasperação é comum nos momentos de crise da saúde. Mas o estado de exasperação é muito mais intenso entre os pobres e marginalizados pelas condições em que vivem. Isto gera atendimentos mais carregados de tensão. Nem sempre se consegue um diálogo calmo, em que se consegue conversar sobre os problemas de forma racionalmente organizada, aspecto por aspecto. A emoção tende a se tornar central, não conseguindo ficar controlada e desorganizando os esquemas preestabelecidos de abordagem. Isto pode tornar o encontro terapêutico mais autêntico, mas exige habilidade do profissional em lidar com emoções mais ligadas à irritação, à agressividade e ao lamento. No entanto, o ensino profissional não forma para isto. As emoções tensas e irritadas tendem a provocar o afloramento de sentimentos rancorosos e descontrolados dos profissionais.

Estes grupos sociais têm a vida marcada pelo sufoco. Como todos os grupos sociais, buscam viver com intensidade, mas encontram muitas limitações, materiais e culturais. A sobrevivência, a felicidade e a desejada vida intensa estão sempre ameaçadas. Isto exige um enorme esforço físico e psicológico a cada dia. Em meio a tantas humilhações e sofrimentos, a mente fica confusa e dividida entre conflitantes dilemas de superação e ressentimentos. As angústias e desafios do presente são tão grandes que impedem maiores investimentos em esforços voltados para o futuro. Assim, ações preventivas de saúde ou focadas em melhorias de longo prazo têm muito mais dificuldade para se tornarem prioridades em suas lutas diárias pela sobrevivência material e afetiva. Isto costuma irritar muito aos profissionais de saúde bem educados sobre a importância das ações de promoção da saúde. Neste contexto, é preciso muita paciência e habilidade para ir construindo, no ritmo destas pessoas, ações de longo prazo que consigam enfrentar as causas políticas e sanitárias dos problemas que se repetem no presente. Isto só se consegue com um vínculo e um compromisso que permaneçam por longos prazos, exigindo um desapego das expectativas de gloriosas ações redentoras de curto prazo, tão frequentes entre os profissionais que dedicam suas vidas aos marginalizados.

Nestas várias décadas de atuação profissional, tenho viajado para vários locais do Brasil, chamado para dar assessorias e participar de eventos. Tenho convivido com muitos trabalhadores de saúde que atuam junto aos pobres, oprimidos e marginalizados. Percebo que vivem grandes dificuldades na relação com os grupos sociais subalternos. Angustiam-se e se revoltam, muitas vezes, porque seus clientes não entendem e não incorporam as verdades que trazem. Costumam dizer “este povo não me compreende”. Sentem como se seus esforços fossem desvalorizados. Alguns chegam a dizer: não merecem minha dedicação. A grande dificuldade é não perceberem que a cultura, destes grupos e pessoas que assistem, é expressão de um rico conhecimento e sabedoria de enfrentamento das dificuldades e de busca de felicidade nas condições concretas de sua tensa existência. Uma sabedoria e um conhecimento que se mostram de jeito bastante esquisito e confuso para o padrão dos profissionais. Não percebem também que têm outros valores para orientar suas prioridades do existir. Não percebem ainda que há uma diversidade muito grande de formas de pensar, sonhar e organizar a vida entre os grupos subalternos. De forma alguma, são uma realidade uniforme. Na verdade, a maior crise de compreensão é nossa; nós profissionais é que não entendemos suas variadas formas de buscar uma vida intensa, nas suas tão diferentes realidades. Com isto, nosso trabalho fica superficial. Porque desconsideramos seus caminhos diferentes e não acreditamos na possibilidade de terem formas próprias e inteligentes de organizar suas vidas marcadas por tantas precariedades, confusões e opressões, nós não investimos na superação das incompreensões. Eles acabam sendo visto como apáticos, deseducados e descontrolados. O maior esforço necessário para uma assistência mais ampla é o da compreensão.

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