Menina, a felicidade
é cheia de praça,
é cheia de traça
é cheia de lata
é cheia de graça.
Tom Zé
Dia bom, dia bonito. Estou descansada e energizada das férias. Atendo bastante e consigo resolver boa parte das demandas, bem como fazer as receitas e atestados pendentes. Consigo auxiliar aos colegas com dúvidas sobre pacientes e ainda, começo a organizar a agenda e distribuir parte das lembrancinhas que trouxe das viagens. Saio um pouco além da hora, mas feliz e tranquila com o dia.
Pego carona com uma colega divertida. Dividimos as balinhas de gelatina colorida – presente da companhia aérea - uma a uma, tagarelando até uma parte da cidade, onde devo pegar outra condução.
Logo saindo do carro, já entro na lotação, no primeiro banco. Na parada seguinte, uma menina engraçada de chapeuzinho de palha, pede paciência que vai entrar umas duas vezes, pois tem muitas coisas para levar. De fato, entra primeiro com uns cinco quadros grandes e depois, volta trazendo uma sacola cheia e um jarro de violetas. O motorista adverte que isso não pode, que vai passar duas vezes e vai dar no “sistema” que são duas pessoas. Enfim, uma breve conversa que se resolve com ele auxiliando a menina engraçada a subir.
Vendo a atrapalhação, saio do meu lugar e ofereço à menina, para que fique mais perto das suas coisas. Ela agradece e senta. Mais adiante, na minha parada, a menina também faz sinal pra descer. Fica atrapalhada e sem mãos para tantas coisas. Assim, resolvo pegar a sacola e o jarro de violetas e ela, agradecida, fica com os grandes quadros. Saímos da lotação e, na calçada, ela me agradece. Me preocupo em como ela vai carregar tudo aquilo, mas já estava atrasada para meu próximo compromisso. Vou caminhando para atravessar a rua e ela me chama: “moça!”. Volto meu olhar e ela, sorrindo, me presenteia com o jarro de violetas... Diz que pra boa vontade não tem preço. Aceito e saio caminhando. Olho pra trás e nos abanamos, sorrindo uma para outra: velhas amigas de segundos.
Caminho umas cinco quadras até meu bairro, com o jarro de violetas até uma padaria na esquina de uma rua cheia de árvores que amo. Chego, com uma fome de fim de tarde e um tempinho de 15 minutos até meu compromisso. Peço um café e uma broa de milho com erva doce, chamada cavaca mineira que é o meu lanche predileto. A “gula” da tarde me faz pedir mais duas cavacas pra levar. Demoro uns 10 minutos me deliciando com o café e a broa, olhando para as florzinhas cor de rosa ao vento fresco de outono que começa a se insinuar e noto alguma simpatia dos outros clientes pela minha mesa. Sim, a única mesa com flor; meu presente surpresa, prêmio por ajudar a menina engraçada de chapeuzinho de palha.
Saio da padaria e vou direto para um salão perto da minha rua, onde a Ana, minha parceira de cuidados, é expert em “tosar” minhas sobrancelhas cheias de falhas... Só ela mesmo! Aguardo um pouquinho e ela me chama com o sorriso de costume. Sou a última sempre e ela está, nesse horário, mais cansada, mas sempre alegre e contando as histórias do dia, assim como eu. Antes de tudo, me cumprimenta e eu tiro uma das broas da sacola e digo: “experimenta, essa é especial!”. Depois da primeira mordida, deliciada, deixa a broa de lado e diz que vai comer o restante com café, mais tarde. Dou todas as referências de onde comprar, o horário em que está fresquinha e enquanto ela me “belisca gentilmente” com a pinça, falamos dos sabores, da erva doce, dos grãos de milho mais graúdos, das diferenças de farinhas de milho...
Ana me diz que a mãe dela que ficou viúva recentemente, sempre a espera com um café no fim da tarde, depois que chega do trabalho. Que, agora, nessa fase de ressignificar a vida e o viver, alguns rituais e alguns cuidados vem tomando uma importância maior para as duas. Penso que, possivelmente, esse café em família tinha a presença do pai de Ana que já não mais está. Ana me diz, então, que amanhã vai passar na padaria e levar as broas de milho com erva doce para o café com a mãe. Diz que ela vai adorar o lanche, pois adora tudo que é de milho e aquela broinha é mesmo muito especial. Assim, depois de alguns minutos, nos despedimos, pego minha violeta que me espera em um canto da sala e, finalmente, sigo para casa.
Em casa, comendo a segunda cavaca mineira, escrevo essa passagem simples e cotidiana de um fim de tarde de outono, com um sabor de erva doce e ternura. Ganhei uma violetinha rosa e amanhã, mãe e filha vão ter um café de fim de tarde mais especial, com um saborzinho a mais. Penso que são esses pequenos atos tão simples, o sorriso e o tchauzinho da menina engraçada do chapeuzinho de palha, os 10 minutos de café de fim de tarde, a broa de milho quentinha é que dão o sabor mágico do dia e da vida. Olho para as folhas verdes da minha nova plantinha e tenho certeza de que ela sabe do que estou falando. Ela floresce e precisa ser cuidada, regada, que nem nós, que nem nossos dias.
Quando mãe e filha se sentarem para se acalentarem, para renovarem suas esperanças na vida, para diminuírem a saudade e a ausência, para degustarem uma broinha de milho, para falarem de seus dias, não vão nem imaginar que tudo começou com uma bala de gelatina colorida. Brinde de companhia aérea... Pois que a vida é mesmo isso. É brinde, é esse café, esse encontro, esse vento de outono, esse sorriso, esse cansaço, esse presente inusitado, esse sabor de querer ajudar, dividir e agradecer. Vida é mesmo esse verdinho escondido na farinha de milho que se saboreia de olhos fechados que nem abraço de saudade, que nem beijo de amor. Vida é a erva doce...
[Maria Amélia Mano publica na Rua Balsa das 10 às 3as-feiras]