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28 abril 2017

AMELIANAS

Imagem capturada na internet. 2017
Ernande Valentin do Prado

- Tomei uma dipirona, achei que estava com febre.
Disse Cátia, sorrindo, sem dar importância demais.
- E por que não tomou só um banho?
Perguntei eu, com minha objetividade de enfermeiro que não gosta muito de medicações.
- E dava?
Respondeu ainda sorrindo, Cátia, e continuou explicando e gesticulando:
- ... eu estava sozinha com Sofia. Minha mãe e minhas irmãs tinham saido, estava sozinha e ela não me deixa. Era só afastar um pouquinho e ela abre a boca. Fui conseguir tomar um banho só quando minha irmã chegou, mais de uma hora.
Ela falava sorrindo, só contando, não tinha lamento, dúvida, arrependimentos. Nós dois na porta da Unidade de Saúde, eu por não encontrar o que fazer, ela esperando a Médica, de novo atrasada mais de duas horas.
- Meus peitos estão tão cheios, chega escorrer.
Cátia é uma adolescente de 17 anos, mais ou menos um metro e cinquenta. De aparência dá para ver que o peso ainda não voltou ao normal pré-gravídico. Ainda tá gordinha, a barriga levantando o vestido apertado. Sofia nasceu há mais ou menos sessenta dias. Parto normal. Veio a UBS por causa de uma virose, disse ela. Sente-se com febre, uma tosse chata que faz a garganta queimar. Por conta própria tá tomando lambedor, dipirona e um xarope para tosse que tinha em casa. Será que continuo tomando, perguntou ela.
- Tá usando o absolvente embaixo do sutiã?
Perguntei, apenas para continuar a conversa.
- E não tô? Olha aqui...
Disse a menina recém mãe, mostrando o absolvente embaixo do sutiã, para evitar molhar o vestido.
- Sofia trocou o dia pela noite.
Continuou contando Cátia com o sorriso cada vez maior, ao falar da filha.
- ... dorme o dia todo, de noite não prega os olhos. Estes dias era meia noite e ala acordada, com aquele olhão em cima de mim. Depois dormiu um pouco e acordou antes de uma hora. Eu que não durmo mais...
No rosto da mãe aquele sorriso tão elegante, tão sincero, tão feliz que   até ofende o saber profissional sobre adolescentes mães. Cheguei a me perguntar de onde vinha tanta força, tanta determinação.
Sei não. Existem razões biofisiolágicas e sociais que explicam porque adolescentes não deveriam ser mães, mas existem outras que explicam porque algumas se saem tão bem. Nem todas a gente entende.
- Às vezes Sofia chora sem razão...
Continuo falando Cátia.
- ... já mamou, tá limpinha, sequinha, mas chora. Aí eu falo com ela, apareço e ala se acalma, passa tudo.


[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

11 junho 2014

A cura das almas


Livro de anotações no Sint-Janshospital


Fui visitar Brugge na Bélgica e aproveitei para ver a minha prima que não via há mais de ano. Em Brugge passei por um museu de hospital criado no século XII, o Sint-Janshospital. O Hospital foi uma iniciativa das autoridades municipais e de uma burguesia rica da época. Eu quase não entrei no hospital: “tem tanto disso no meu dia-a-dia”. Mas depois que o namorado da minha prima insistiu, adentrei as portas de pedra do antigo hospital. Logo cheguei e pensei “ainda bem que eu vim”.

Encontrei algumas pinturas famosas daquelas que você encontra recorrentemente nas aulas do primeiro ano da faculdade. Uma coisa muito legal foi ver as anotações dos médicos da época (há mais de 1000 anos atrás), os desenhos, os prontuários médicos enrolados como pergaminho.  Mas não foi isso que me impressionou de fato. Foi cantinho falando da história do hospital falando no tratamento da alma.

Estava escrito: “A morte em um hospital não era incomum. Por isso, a atenção espiritual estava fortemente presente. Sint-Jan contava com o seu próprio cura. O hospital tinha o direito de enterrar os mortos. A capela do hospital era parte da sala hospitalar. A devoção dos santos e da cultura popular religiosa estavam intimamente relacionados com o funcionamento do hospital. As freiras assistiam o cura quando um paciente ia morrer.”

Em 1188 quem entrava no hospital eram as pessoas em apuros, os viajantes e peregrinos. E as principais “virtudes” do hospital era a hospitalidade e a caridade. Outra passagem que chamou atenção foi que até a metade do século XIX o hospital não era um centro médico como hoje. Como o conhecimento médico era limitado, as pessoas recorriam a remédios alternativos. E por isso era tão evidente a busca da “cura das almas”.

Fiquei a pensar. A medicina avançou tanto que praticamente tudo que não é aferível não é válido. Como disse Helman (2009, p.113): “Quando um fenômeno não pode ser observado ou medido objetivamente por exemplo, as crenças de uma pessoa sobre as causas de uma doença, tal fenômeno é, de certa forma menos ‘real’ do que algo como o nível da pressão arterial do paciente ou a sua contagem de leucócitos (...)”¹.

Dá-se mais valor a medição, a contagem, ao índice, ao órgão do que a pessoa, do que as palavras do paciente. Da história e da vida que está por trás da anamnese. Quantos séculos vamos ter que voltar para falarmos que não são só as medidas? Quanto nós “avançamos” e quanto nós “retrocedemos” nessa caminhada?

Ainda falava-se de remédios alternativos. Composição das plantas. Na parte psiquiátrica do hospital estava escrito sobre “perturbação do espírito”. Sempre quando deparo com isso penso que a visão biológica é apenas uma das maneiras de compreender e analisar a pessoa.  A cura das almas não é tão aferível, assim como a visão biológica não é a maneira mais, única ou melhor de compreender um indivíduo. 

Sint-Janshospital

¹ HELMAN, C. G. Cultura, Saúde e Doença. 5 ed. Porto Alegre: Artmed, 2009. 431 p.


[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

02 abril 2014

Aconchego


       Deixo a água quente escorrer pela boca da térmica dentro do chimarrão. Toda semana, na quinta-feira, abro a minha agenda que recebi de presente da Liga de Educação em Saúde antes de vir para a Irlanda. Seguindo rigorosamente a promessa de não abrir a agenda antes de chegar a data da semana seguinte. O meu aconchego nas terras geladas irlandesas, recebo o carinho distante dos meus amigos. Vejo o que estão fazendo, organizando, as postagens no facebook. Leio, mas sinto falta de estar lá, dos abraços e até da dinâmica e da coreografia do "E-po-e-ta-tá". 

      É aquela presença-ausente da distância. É você perceber que você está com eles e vice-versa porque não é só o artesanato que carrego como chaveiro na mochila que me lembra as artesãs, nem a toalha que ganhei de presente da esposa do enfermeiro do posto de saúde antes de partir, é a presença no que falo, no que escrevo, nas minhas reflexões e na minha saudades.

       Não passa um dia sem falar da Liga, sem rever algo, sem conversar com alguém. Hoje, minha "Host mom" estava com dor de garganta e fiz um chá. Receita antiga de mel, limão e gengibre (quando estava em casa, certamente com o famoso chá de guaco), com a eficácia comprovada ou não, um chá que tem um ingrediente especial: o cuidado. E ela me disse: "Nunca nenhum médico cuidou de mim assim". Eu não sou médica ainda mais esse cuidado que aprendi Liga, ultrapassa as palavras, é aquela velha-nova história de não cuidar pela metade, não é só o remédio, a receita é também a conversa, o olhar, a confiança. É poder olhar pela janela da artesã e ver o mar e os leões marinhos. 


      Enquanto escrevo meus amigos, a Liga, parte para viajar para Gramado para o Congresso WONCA - Rural, muitos trabalhos aprovados, workshops e muita responsabilidade. Coração na mão, vontade de estar lá, vontade de fazer cada minuto valer a pena  aqui e o desejo de boa ventura. Dia 3 de abril, abro minha agenda e vejo os leões marinhos que a Jéssica aprendeu a modelar com a própria mão. A Suzi que é a líder das artesãs da Barra ensinou ela numa dessas tardes frias de Rio Grande durante as férias da Greve. Penso que vai ser a acolhida da Liga de Educação, a primeira reunião do ano letivo com os novos alunos e a primeira que eu não estarei presente. E a Educação Popular passa assim, de mão em mão, sabendo que não é só o conhecimento médico, é aprender a fazer leões marinhos, chás, escutar, falar, cuidar com a própria mão, sentir saudades e aconchego...
  
Voam abraços,
Mayara

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

01 abril 2014

Dia bom





Menina, a felicidade
é cheia de praça,
é cheia de traça
é cheia de lata
é cheia de graça.
Tom Zé



Dia bom, dia bonito. Estou descansada e energizada das férias. Atendo bastante e consigo resolver boa parte das demandas, bem como fazer as receitas e atestados pendentes. Consigo auxiliar aos colegas com dúvidas sobre pacientes e ainda, começo a organizar a agenda e distribuir parte das lembrancinhas que trouxe das viagens. Saio um pouco além da hora, mas feliz e tranquila com o dia.

Pego carona com uma colega divertida. Dividimos as balinhas de gelatina colorida – presente da companhia aérea - uma a uma, tagarelando até uma parte da cidade, onde devo pegar outra condução.

Logo saindo do carro, já entro na lotação, no primeiro banco. Na parada seguinte, uma menina engraçada de chapeuzinho de palha, pede paciência que vai entrar umas duas vezes, pois tem muitas coisas para levar. De fato, entra primeiro com uns cinco quadros grandes e depois, volta trazendo uma sacola cheia e um jarro de violetas. O motorista adverte que isso não pode, que vai passar duas vezes e vai dar no “sistema” que são duas pessoas. Enfim, uma breve conversa que se resolve com ele auxiliando a menina engraçada a subir.

Vendo a atrapalhação, saio do meu lugar e ofereço à menina, para que fique mais perto das suas coisas. Ela agradece e senta. Mais adiante, na minha parada, a menina também faz sinal pra descer. Fica atrapalhada e sem mãos para tantas coisas. Assim, resolvo pegar a sacola e o jarro de violetas e ela, agradecida, fica com os grandes quadros. Saímos da lotação e, na calçada, ela me agradece. Me preocupo em como ela vai carregar tudo aquilo, mas já estava atrasada para meu próximo compromisso. Vou caminhando para atravessar a rua e ela me chama: “moça!”. Volto meu olhar e ela, sorrindo, me presenteia com o jarro de violetas... Diz que pra boa vontade não tem preço. Aceito e saio caminhando. Olho pra trás e nos abanamos, sorrindo uma para outra: velhas amigas de segundos.

Caminho umas cinco quadras até meu bairro, com o jarro de violetas até uma padaria na esquina de uma rua cheia de árvores que amo. Chego, com uma fome de fim de tarde e um tempinho de 15 minutos até meu compromisso. Peço um café e uma broa de milho com erva doce, chamada cavaca mineira que é o meu lanche predileto. A “gula” da tarde me faz pedir mais duas cavacas pra levar. Demoro uns 10 minutos me deliciando com o café e a broa, olhando para as florzinhas cor de rosa ao vento fresco de outono que começa a se insinuar e noto alguma simpatia dos outros clientes pela minha mesa. Sim, a única mesa com flor; meu presente surpresa, prêmio por ajudar a menina engraçada de chapeuzinho de palha.

Saio da padaria e vou direto para um salão perto da minha rua, onde a Ana, minha parceira de cuidados, é expert em “tosar” minhas sobrancelhas cheias de falhas... Só ela mesmo! Aguardo um pouquinho e ela me chama com o sorriso de costume. Sou a última sempre e ela está, nesse horário, mais cansada, mas sempre alegre e contando as histórias do dia, assim como eu. Antes de tudo, me cumprimenta e eu tiro uma das broas da sacola e digo: “experimenta, essa é especial!”. Depois da primeira mordida, deliciada, deixa a broa de lado e diz que vai comer o restante com café, mais tarde. Dou todas as referências de onde comprar, o horário em que está fresquinha e enquanto ela me “belisca gentilmente” com a pinça, falamos dos sabores, da erva doce, dos grãos de milho mais graúdos, das diferenças de farinhas de milho...

 Ana me diz que a mãe dela que ficou viúva recentemente, sempre a espera com um café no fim da tarde, depois que chega do trabalho. Que, agora, nessa fase de ressignificar a vida e o viver, alguns rituais e alguns cuidados vem tomando uma importância maior para as duas. Penso que, possivelmente, esse café em família tinha a presença do pai de Ana que já não mais está. Ana me diz, então, que amanhã vai passar na padaria e levar as broas de milho com erva doce para o café com a mãe. Diz que ela vai adorar o lanche, pois adora tudo que é de milho e aquela broinha é mesmo muito especial. Assim, depois de alguns minutos, nos despedimos, pego minha violeta que me espera em um canto da sala e, finalmente, sigo para casa.

 Em casa, comendo a segunda cavaca mineira, escrevo essa passagem simples e cotidiana de um fim de tarde de outono, com um sabor de erva doce e ternura. Ganhei uma violetinha rosa e amanhã, mãe e filha vão ter um café de fim de tarde mais especial, com um saborzinho a mais. Penso que são esses pequenos atos tão simples, o sorriso e o tchauzinho da menina engraçada do chapeuzinho de palha, os 10 minutos de café de fim de tarde, a broa de milho quentinha é que dão o sabor mágico do dia e da vida. Olho para as folhas verdes da minha nova plantinha e tenho certeza de que ela sabe do que estou falando. Ela floresce e precisa ser cuidada, regada, que nem nós, que nem nossos dias.

Quando mãe e filha se sentarem para se acalentarem, para renovarem suas esperanças na vida, para diminuírem a saudade e a ausência, para degustarem uma broinha de milho, para falarem de seus dias, não vão nem imaginar que tudo começou com uma bala de gelatina colorida. Brinde de companhia aérea... Pois que a vida é mesmo isso. É brinde, é esse café, esse encontro, esse vento de outono, esse sorriso, esse cansaço, esse presente inusitado, esse sabor de querer ajudar, dividir e agradecer. Vida é mesmo esse verdinho escondido na farinha de milho que se saboreia de olhos fechados que nem abraço de saudade, que nem beijo de amor. Vida é a erva doce...





[Maria Amélia Mano publica na Rua Balsa das 10 às 3as-feiras]

26 março 2014

Ninar


"Vem meu ursinho querido
Meu companheirinho
Ursinho Pimpão
Vamos sonhar aventuras
Voar nas alturas
Da imaginação"


                Chovia na rua. Sentei ao lado de uma jovem grávida no meio da comunidade. Sem jaleco, sem nenhuma grande “proteção” médica. Segundo ano da faculdade, mais ouvidos, menos opiniões. Sentei e comecei a falar sobre o tempo, afinal a desculpa para todos os dias úmidos de Rio Grande. Ela estava sentada, com a barriga aparecendo, blusa curta, calça colada, chinelos de dedo, cabelo preso, sorriso no rosto.

                Gravidez na adolescência era o que eu pensava. Meu cérebro estava trabalhando, pensando em camisinha, sexo seguro, usar anticoncepcional. Mas enfim, decidi falar do clima. Ela falou que a casa que ela morava alagou, mas estava feliz porque agora ia ter uma casa só sua. Perguntei onde, e ela disse sorrindo que era no fundo da casa da mãe dela, perto da casa do seu irmão. Por enquanto ia ser um só cômodo, e ainda estavam pensando se iam fazer banheiro ou não, mas a casa era dela. Dela e do bebê.

                E o pai da criança? Era o que eu deveria perguntar, mas o assunto surgiu assim sem mais nem menos, sem nenhuma interrogação. O pai era mais velho, trabalhava no porto e de vez em quando aparecia, não muito feliz que ela estava grávida, mas esperava que fosse um menino. E ela tinha um sorriso imenso no rosto.

Estava orgulhosa que ia ser mãe com seus quinze anos, que ia ter um espaço só para ela, e ajudava a construir o seu novo lar. Agora teria o espaço seu, tão sonhado depois de dividir por muito tempo os cômodos entre vários irmãos. Nesse ponto acho que muita coisa foi se desmanchando em mim, todas as minhas preconcepções de mundo. Ela não era uma jovem grávida que “errou”, deixou de estudar para ter um filho, não usou camisinha, não tomou anticoncepcional. Era uma mulher fazendo suas escolhas.

                Ela tinha esse brilho, a vontade de ser mais, de poder ter o seu espaço. Eu consegui ouvir e perceber a importância da maternidade na independência dela. Toda a lista de “coisas erradas” (ou talvez “mais corretas”) perdeu o sentido, e aprendi a tentar buscar compreender o diferente e não deixar que a minha avalanche de conhecimentos científicos viesse sufocá-la no seu direito de ser mãe.

Conversamos mais e sobre vários assuntos, falei que gostava de tocar violão e ela falou “não sabia que médicos tocavam violão, achei que só estudassem”. Nos despedimos com um abraço comovido e sem julgamentos, trocamos muito sem nem perceber, sem impor, sem mais nem menos, só diferentes. Médicos tocam violão e meninas escolhem ser mães. Nós, mulheres, crianças, jovens escolhendo seus caminhos. Eu-menina começando a medicina e ela gestando. Ninamo-nos sem perceber. E a chuva continuou lá fora.




[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]

08 janeiro 2014

Gesso

Olhos. Autor desconhecido.

    Era um desses dias da disciplina de traumatologia prática. Estávamos lá discutindo sobre um fraturas de membro inferior e chegou acompanhada de uma estagiária uma senhora simples, levemente encurvada, com um casaco xadrez, blusa vermelha, pele um pouco escurecida, alguns dentes faltando, e os olhos muito assustados. 

    Chegou lá no meio daquele exército de jalecos brancos, ela iria tirar o gesso. Para quem ainda não vivenciou essa experiência, para retirar o gesso é utilizada uma serra vibratória, muito barulhenta e que é realmente assustadora. Ela não é circular, apenas vibratória, só corta o gesso e não corta a pele, tanto que os alunos ficam fazendo demonstrações para os pacientes para deixá-los tranquilos colocando a serra vibratória nas próprias mãos. O fato de não cortar, não exime a pessoa do medo. 

    Cada um reage de uma maneira, já vi reagirem rindo, brincando, gritando, chorando. Essa senhora que iria tirar o gesso do braço direito estava nitidamente apavorada. Mal sentou na cadeira e já estava com os olhos cheios de água, olhando em suplica para nós. A estagiária foi aprontando a serra, dizendo para colocar o braço aqui, e colocando o avental na senhora, e conversando com pressa. 

    Ela começou a serrar o gesso, enquanto a senhora olhava desesperadamente para todos nós, até que nos aproximamos e ela deu a mão para uma colega minha. A estagiária terminou e ao tentar retirar o gesso ele não soltou, e aí ela olhou para a senhora e só então percebeu que ela estava tremendo e chorando. Eu fui buscar um copo de água para acalmá-la, colocamos a serra de lado e enquanto ela estava tomando água, com os olhos de desespero a estagiária falou que teria que utilizar a serra novamente. Ela sorveu a água tremendo, gole por gole e me olhando nos olhos. Quando ela terminou eu perguntei se ela tinha alguma religião.

    Ela falou que era luterana e tinha feito a eucaristia com um pastor que ela gostava muito na sua cidade. Eu olhei profundamente nos olhos dela e pedi se ela queria fazer uma oração antes de tentarmos serrar o gesso novamente. Ela disse que sim. Fechou os olhos e ficou em silêncio, a respiração acalmou, ela ficou serena e quando abriu falou que estava pronta para o segundo tempo. Ela apertou a mão da minha colega e eu fiquei todo o tempo com a minha mão no seu ombro e olhando nos seus olhos.

    Era um infinito até terminar de serrar o gesso, mas acabou. Ela suspirou e sorriu aliviada. Seus olhos se transformaram em agradecimento, não falou nenhuma palavra, apenas assentiu com a cabeça. E depois partiu para o setor de Raio-X.

28/06/2013

Do meu caderno de vivências, voam abraços,

Mayara Floss

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às quartas-feiras]

24 outubro 2013

UMA BICICLETA


Ernande Valentin do Prado

Fui a bicicletaria hoje. O bicicleteiro já me conhece bem por que a cada três dias o pneu murcha e passo lá. Como não gosto de incomodar ninguém, eu mesmo encho o pneu e, às vezes, sujo a mão de graxa (acho isso um horror). Desta vez ele estava sem fazer nada e ficamos conversando.
Bicicletaria é um lugar diferente de outras oficinas. Lá sempre tem um monte de bicicletas velhas, pedaços ou boas bicicletas que ainda funcionam, mas os donos meio que esquecem ou pensam na oficina como um cemitério sem morte, um lugar onde largar o que se amou muito, mas não tem mais utilidade – nem nos afetos. Não sei qual o mistério, mas é assim em toda bicicletaria que conheci.
Perguntei-lhe porque não usa peças de uma para montar outra e se livrar de tantos entulhos. (estava pensando no combate a dengue – epidemia nesta época, mas também na “judiaria” de gente precisado de uma bicicleta)
- Não compensa, ele disse.
- Compensa sim, disse eu. O Natal está chegando, monta e dá de presente ou vende a preço simbólico para uma criança que não pode comprar.
E sabe por que eu pensei nisto?
Quando era criança, todo ano meu pai prometia uma bicicleta. Era no meu aniversário, depois no dia das crianças, depois se eu passasse de ano e por fim no Natal. Mas em todas as datas marcadas ela não vinha. Muitos colegas tinham bicicleta e eu só aprendi a pedalar na bicicleta deles. Muitas vezes fiquei de fora das brincadeiras por não ter meu próprio veiculo de duas rodas.
Com o tempo, percebi que não ia conseguir uma bicicleta. Sem revolta, sem mágoa, pois via perfeitamente as condições financeiras de meu pai (isso é uma coisa que sempre me doeu, ver as coisas desde pequeno). Na boa parei de contar as datas e o dia de receber minha bicicleta. (talvez isso de entender as dificuldades financeiras de minha família tenha a ver com o fato de aos três ou quatro anos ter ficado revoltado com Papai Noel ou com o fato de, aos cinco anos, ter descoberto que papai Noel não existia.), mas conto outro dia.
Enfim, consegui uma bicicleta aos 16 anos. Velha, de terceira mão (comprada de um piá com a alcunha de farinha, de tão branco que era). Era muito ruim e feia, mas era minha primeira bicicleta. Conseguida com a grana de um de meus muitos trabalhos na adolescência. Aqueles, sem carteira assinada e sem nenhuma garantia de nada (igualzinho aos que consigo hoje, como enfermeiro).
Fiquei empolgado e usei a bicicleta por uns três meses. Depois, perdi a graça e a deixei encostada por um longo tempo. Os pneus murchando sob o sol a e chuva.
Acho que eu nem gostava de bicicleta ou a minha estação de bicicleta havia passado – sobre isso ver: Os meninos crescem, de Domingos Pelegrini – o livro de contos de que mais gostei na vida
Um dia, cheguei do trabalho e minha mãe disse, com a maior naturalidade, que havia um garoto da vizinhança querendo comprar minha bicicleta.
Fiquei indignado com aquela ousadia, mas não falei nada. Imagina, vender o que eu levara anos para conseguir comprar. A concretização de meus maiores sonhos da infância.
No dia seguinte antes de sair para trabalhar, ela perguntou quanto eu queria, pois teria que dar o preço para o garoto.
Fiz as contas de quanto havia gasto na bicicleta, quanto já havia investido e quanto ela valia. Cheguei a um custo que não sei mais dizer qual é (era um tempo de inflação galopante) e disse um valor.
Quando cheguei do trabalho ela disse:
- Ele só tem tanto. (uma quantia que não dava nem um terço do valor que eu pedia), mas disse que te paga em prestações.
Era o fim da picada, imagina, queria minha bicicleta e nem tinha dinheiro para pagar.
Nem respondi, mas fiquei com aquilo na cabeça.
O garoto deveria ter uns 12 anos (eu o via na redondeza sempre fazendo uma coisa ou outra, juntado ferro velho para vender, limpando quintais e coisa assim). De verdade via nele o mesmo desejo de ter uma bicicleta que tive um dia. E pensei comigo: se eu só pude satisfazer esse desejo aos 16 anos quando a bicicleta nada mais significava para mim, (não o que significaria na infância), por que exigir o mesmo de um garoto se eu podia realizar (meu) sonho com ele?
- Pode falar para ele vir buscar a bicicleta amanhã. Ele dá o que tiver e quando pude, e se puder, paga o resto.
Na primeira vez em que ele veio pagar a prestação, (eu mesmo nunca falei com ele, sempre foi minha mãe quem resolveu tudo), disse que não precisava mais, que aproveitasse a bicicleta bem e que passasse para frente quanto pudesse comprar uma melhor. Nunca mais pensei nisso, até hoje.

(Escrita em 2006 – Rio Negro, Mato Grosso do Sul)

 Revisão - Cecília Mano - outubro de 2013.

Foto: Julio Wong Un

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