O importante não é a casa onde moramos.
Mas onde, em nós, a casa mora.
MIA COUTO
Porto Alegre. Loteamento Porto Novo. Lugar de reassentamento dos moradores vindos da Vila Dique, removidos para dar espaço à pista do aeroporto que precisa aumentar, ser mais moderna e bonita. Planos para um megaevento: a Copa do Mundo. Em uma reunião do Projeto Memórias da Vila Dique, que resgata, ressignifica e torna visíveis as histórias de pessoas que vivem a remoção bem como de territórios que são destruídos, chega uma menina tímida e quieta. Onze anos, ela fica, todo o tempo, perto da irmã, sem quase de mexer.
A ideia, explicamos, é fotografar espaços significativos, mas ela diz que não sabe ou não encontra esses lugares no Porto Novo. Mas sabe desenhar! E desenha castelos. Castelos no meio de rios e matas. Castelos coloridos. Mas todos eles estão na Vila Dique, a floresta que deixou, depois de derrubarem sua casa. A floresta permanece, assim como o conto de fadas em um lugar onde “era uma vez”. Segue a vida com seu concreto, suas calçadas e casas idênticas, conservando, em alguns quintais, um pouco das flores, do pasto, da floresta que insiste, resiste e teima em ser verde, mais verde no meio do cinza. O cinza dos muros que escondem escombros, protegem territórios, limitam o olhar, o castanho olhar da menina que sente saudade.
E saudade é matéria prima de vidas que transitam, caminham nas grandes e pequenas viagens. As cotidianas, pequenas aventuras em nove quadras do ponto do ônibus até a unidade de saúde, no Porto Novo. Ou de um caminho único, sinuoso, dividido em asfalto e terra, na Vila Dique. Construções e destruições. Caminhos. Passos de uma viajante que também visita outros mundos, para poder voltar, para poder olhar para o comum e entender que é valioso, especial. E em um ano incomum, de pequenas grandes aventuras, pousos e decolagens, consigo, em diferentes caminhos, um ponto, uma estrela em comum. Estranho jeito de viajar, buscando pequenas semelhanças em tempos e lugares tão diversos!
Madri. Fui ao mercado por dois dias seguidos. Amo feira e mercado. Comprei uns “regalitos”, mas pouco. As coisas precisam ter significado. Tentei buscar em cada coisinha um sentido, para que não virasse mais um “souvenir” atirado no brique da Redenção. Conversei com as gentes do mercado. Adoro. Um senhor que vendia xícaras. O senhor dos vinhos e que tomei uma taça com gosto de caminhada. A senhora do café lusitano, onde comi um pastel de nata com gosto de praça. Era frio e tudo me aquecia.
E um dia, além dos museus e das ruas, um parque, o Palácio de Cristal...
Nossos castelos. Os que fazemos, os que criamos, os que sonhamos. Parece que entramos em um alicerce de mundo e olhamos ele, de dentro, a partir das veias e artérias, dos nervos, das linhas de expressão, das curvas de sorrisos. De dentro. Das entranhas, do coração, no centro, no que nos aperta e angustia, espera e desespera. Na transparência, a gente vê a gente no meio do mundo. Tem uma hora que a gente toca na gente. Como se pudéssemos ouvir nossas luzes, nossas sombras, nossos reflexos. Dedilhamos a vida como se fossem cordas de violão e criamos uma canção só nossa. A canção do nosso tempo e das nossas escolhas e das nossas caminhadas e das nossas entregas e dos nossos reencontros... E desencontros...
Castelos de sonhos, espirais, raios de sol entrando entre as linhas. Linhas, redes... A rede, sim, a que um dia acreditamos e se desfez quando a falta de ternura, o excesso de poder e a vontade de não tecer juntos foi maior. A rede, a lista. Precisamos tecer outras, mais transparentes como as do palácio. Onde nos vemos e sabemos quem somos. Onde deixamos as luzes entrarem e nos despirem, que nos inspirem com sonhos, esperanças e caminhos abertos. Achamos jeitos de nos recriar em outras linhas, outras redes armadas em água doce, lagoa, balsa que navega e voa: barco voador, mágico, tal qual tapetes voadores das histórias do Aladim. Um tapete é para pisar, uma balsa é para navegar e se navegar é preciso, fixar os pés não é preciso. É preciso voar.
Voar na balsa das 10, onde todos voamos, um pouco, muito, na lembrança do voo de pássaro do amigo-menino que perde o tempo, mas sabe que vai reencontrar em terra, outros tempos recriados. Voar no balanço da rede que, em dois movimentos, ida e vinda, também recria outros voos e tempos, outros movimentos, outros castelos e outros alpendres. E do castelo da menina ao palácio e do palácio ao alpendre, a diferença na sofisticação, no lugar, no frio. A semelhança na luz que entra, na surpresa seja da saudade, seja da beleza, seja da infância. Alpendre, fecho os olhos e me vejo. Retorno.
Conforme estudiosos, alpendre é um tipo de varanda, um espaço entre os espaços de fora e de dentro de uma casa. Protege do sol e da chuva e por isso é comum em residências de regiões quentes. Comum em igrejas, também com pilares, o alpendre dá acesso ao templo, a casa, refúgio sagrado da vida cotidiana e de saberes de colo, cozinha e meninice.
Baturité, Ceará. E meu pai construiu seu alpendre. Era desenho de castelo em seus sonhos. Não era palácio, transparente e nem sofisticado. Muito barro e cimento que, tantas vezes, ele próprio misturou de pés descalços e mãos machucadas pelo cal. O alpendre abrigava as redes e as redes, os sonhos embaladas pelas músicas do rádio. Dos 15 aos 17 anos, eu só interrompia o balanço na rede, pra trocar de estação. E nem sempre trocava de sonho.
Meu mundo era mágico e acreditava que todas as minhas orações iam ser ouvidas. Que todos os meus amores seriam correspondidos e que a felicidade que vivia em sonho, ia ter na vida, em muitos momentos. Descobertas de um tempo entre árvores que abraçava, com a certeza de que elas sentiam meu carinho e ternura. Essa era a minha casa, simples casa de zona rural, com a mangueira mágica na frente, os caminhos, os degraus, o pinheiro plantado pelo meu pai, o jardim da minha mãe, o meu alpendre...
Perto do palácio de cristal é simples, quente, bem mais quente. Mas, rico de histórias, de esperanças, de despedidas, de conversas em luz fraca, ao som de pássaros, sapos, vento nas árvores e chuva nas telhas. Casa sem forro e por isso, toda chuva era canção. Música alta dançada no chão de cimento. Canção leve de amor, solitária, de um tempo em que voltei, em nova viagem. Novamente, mercado e feira. Conversei com as pessoas e revi lugares e bancos de praça, salões de baile da adolescência, sorrisos de amigos, risadas na noite lembrando que, no fundo, no fundo, somos eternos iniciantes, eternos seres de sonho, alma, descoberta e aventura. Quanto tempo! E continuo sendo a mesma menina do alpendre, abrigada nas telhas nuas, na música, no sempre desejo de recomeçar.
Meu alpendre:
E percorro essas paredes abertas para o verde como quem trilha, caminha em mim, passeia em mim, toca em mim, profundamente e distante. Sinto uma falta bonita e orgulho do que fui. Fecho os olhos e quase escuto a música, danço comigo mesma – alma... Alma que me abraça forte, me consola e deixa meu coração me guiar, de novo. Entre os castelos que a menina tímida cria, desenha em florestas que um dia existiram. Entre as linhas do palácio que dedilho, buscando o som do mundo. Entre as fendas de cimento e vento do meu alpendre, a certeza de que o abrigo que nasce em nós, que a saudade que vive em nós, que a ternura que mora em nós é o que nos salva do desalento, da injustiça, do medo, da desesperança. Castelos, palácios, alpendres. Lugares nossos. Lugares sagrados. Templos de nós, onde por vezes deitamos, exaustos e felizes. Onde sempre voltamos, em desenho, em música, em luz ou simplesmente, em som de início de chuva na telha, aviso que a alma vai ser lavada e secada no varal da vida, ao vento.
[Maria Amelia Mano escreve no Blog Rua Balsa das 10 às terças]
Sim, maga Amélia, nos perdemos de nós mesmos e nos re-encontramos naqueles lugares imaginários mas bem reais que fomos colecionando, curiosos, sensíveis, leves e felizes, ao longo da vida. E uma vida que fez a busca consciente do que perdura dentro do coração, é uma vida que vale a pena viver.
ResponderExcluirNa expressão do sutil, que poucos apreendem, está a poesia do coração e do beijo. No contato nunca trivial com os Outros, os simples, tímidos, e invisíveis, descobrimos castelos de transformação.
Obrigado pelo texto e obrigado pelo que nos lembras: que somos aquilo que fomos amando e curtindo ao longo da vida.
Amélia, querida, Larissa me disse que para onde vamos carregamos nossa casa. Lendo seu texto pude entender melhor o que ela queria dizer. Em breve vou levar minha casa para Paraíba.
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