08 janeiro 2014

Gesso

Olhos. Autor desconhecido.

    Era um desses dias da disciplina de traumatologia prática. Estávamos lá discutindo sobre um fraturas de membro inferior e chegou acompanhada de uma estagiária uma senhora simples, levemente encurvada, com um casaco xadrez, blusa vermelha, pele um pouco escurecida, alguns dentes faltando, e os olhos muito assustados. 

    Chegou lá no meio daquele exército de jalecos brancos, ela iria tirar o gesso. Para quem ainda não vivenciou essa experiência, para retirar o gesso é utilizada uma serra vibratória, muito barulhenta e que é realmente assustadora. Ela não é circular, apenas vibratória, só corta o gesso e não corta a pele, tanto que os alunos ficam fazendo demonstrações para os pacientes para deixá-los tranquilos colocando a serra vibratória nas próprias mãos. O fato de não cortar, não exime a pessoa do medo. 

    Cada um reage de uma maneira, já vi reagirem rindo, brincando, gritando, chorando. Essa senhora que iria tirar o gesso do braço direito estava nitidamente apavorada. Mal sentou na cadeira e já estava com os olhos cheios de água, olhando em suplica para nós. A estagiária foi aprontando a serra, dizendo para colocar o braço aqui, e colocando o avental na senhora, e conversando com pressa. 

    Ela começou a serrar o gesso, enquanto a senhora olhava desesperadamente para todos nós, até que nos aproximamos e ela deu a mão para uma colega minha. A estagiária terminou e ao tentar retirar o gesso ele não soltou, e aí ela olhou para a senhora e só então percebeu que ela estava tremendo e chorando. Eu fui buscar um copo de água para acalmá-la, colocamos a serra de lado e enquanto ela estava tomando água, com os olhos de desespero a estagiária falou que teria que utilizar a serra novamente. Ela sorveu a água tremendo, gole por gole e me olhando nos olhos. Quando ela terminou eu perguntei se ela tinha alguma religião.

    Ela falou que era luterana e tinha feito a eucaristia com um pastor que ela gostava muito na sua cidade. Eu olhei profundamente nos olhos dela e pedi se ela queria fazer uma oração antes de tentarmos serrar o gesso novamente. Ela disse que sim. Fechou os olhos e ficou em silêncio, a respiração acalmou, ela ficou serena e quando abriu falou que estava pronta para o segundo tempo. Ela apertou a mão da minha colega e eu fiquei todo o tempo com a minha mão no seu ombro e olhando nos seus olhos.

    Era um infinito até terminar de serrar o gesso, mas acabou. Ela suspirou e sorriu aliviada. Seus olhos se transformaram em agradecimento, não falou nenhuma palavra, apenas assentiu com a cabeça. E depois partiu para o setor de Raio-X.

28/06/2013

Do meu caderno de vivências, voam abraços,

Mayara Floss

[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às quartas-feiras]

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