17 janeiro 2014

Obrigado (por nada)

Ernande Valentin do Prado

Eu fui criado por uma mãe adotiva. Ainda lembro como se fosse hoje.
Ela já tinha outro filho. Eu  ficava com tudo que ele não queria. As roupas que não lhe serviam mais, os brinquedos quebrados, o doce que mordia e não gostava. Quase nada sobrava. No lugar dele eu apanhava quando ela estava nervosa. E parecia que vivia nervosa. Fumava muito. Tinha os dedos amarelados pela nicotina. As roupas cheiravam forte.
Nunca entendi porque me adotou. Vivia gritando que devia me devolver para minha mãe: “aquela bêbada sem vergonha”, dizia com os olhos saltando em mim. Mas do seu modo sei que fez o que pôde para me criar com seu salário de professora. Trabalhava muito em uma escola particular que lhe roubava mais que o tempo, a alma.
Do meu modo sempre lhe fui grato. Sei que minha vida teria sido ainda pior sem ela. O cigarro. Durante muito tempo e ainda hoje o cheiro  lembrava-me amor de mãe.
Meu irmão sumiu no mundo aos 18 anos. Fiquei sozinho com minha mãe, ainda mais nervosa e ressentida do filho (de verdade), dos alunos e da vida que não lhe foi justa.
- O que você fez para Arturo ir embora? Dizia ela quando bebia. Neste tempo ela passou a beber muito. Só dava aula depois de tomar dois comprimidos “tarja preta” e um copo cheio de vodca barata.
O fim da vida dela foi muito triste, mais triste do que me sentia. Prostrada, com olheiras profundas, deprimida, quase nunca saia da cama. Fumando e bebendo. Tossia sem parar.
Fiz o que pude. Sempre.  
- Você nunca diz nada. Sei que é culpa minha. Fui uma péssima mãe!
No começo pensava em dizer que me sentia revoltado em ser preterido, em ficar com os brinquedos quebrados, em estudar em escolas públicas onde até ratos andavam entre as carteiras. Tive também vontade de xingar, chorar, bater nas paredes. Mas fui desenvolvendo a capacidade de ficar calado. Acho que por isso ainda estou vivo. Se bem que não sei mais qual o valor disto. Antes só queria viver, agora fico esperando.
Pensava: vou ficar quieto. Vou aguentar porque um dia esse sofrimento vai acabar. O tempo foi passando e nada do sofrimento ter fim! Nada da dor passar! Nada da vida fazer algum sentido!
Quando ela morreu, depois de dias de agonia, Arturo voltou. Vendeu a casa e se foi de novo. Não falou comigo, não foi ao cemitério. Fiquei na rua sem saber o que fazer. Calado!
Agora entendo que a vida é só essa dor mesmo, essa bosta...
Por isso foi tão fácil ser convencido a partir rumo ao mundo novo. Tandoor. Promessa de vistos de viagem sem complicações, alojamentos limpos. comida balanceada, drogas lícitas, turnos curtos de trabalho, diversão, pagamento em dia. Retorno para casa com 15 anos de serviço.
Mas foi o mesmo engano de sempre, a mesma bosta...

Agora estou aqui: faz frio, o cheiro no ar é insuportável, tem lixo espalhado por todo o alojamento, o ambiente é hostil, a natureza não nos quer aqui, assim como minha mãe não me queria. Não tenho visto de permanência, mas como voltar para uma casa que nunca foi minha? Como ficar com uma mãe adotiva que não tem como cuidar de mais um filho. 

Revisão - Piedade Rosário (Paripiranga, Bahia - ontem uma de minhas melhores alunas)

[Ernande Valentin do Prado publica na Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

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