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10 outubro 2018

O mundo impossível II

Preparando-se para jogar futebol

Brasília, 26 de setembro de 2084.


Em um condomínio fechado em Brasília uma mãe conversa com o seu filho de onze anos.
— Filho não esquece de colocar a segunda pele — a mãe fala enquanto digita no seu home office em casa.
— Já estou com ela mãe — a criança diz apressada.
— Já aproveita e coloca a lente ultravioleta — a mãe diz resolvendo uma série de tarefas no planner.
— Sim mãe não quero queimar minha retina — ele levanta o polegar concordando.
—E.. — a mãe começa a falar e o menino interrompe — já estou com minha roupa especial contra raios ultravioletas e aclimatadora.
Ela tenta começar novamente e ele confirma que também está com as luvas.
— Ótimo, não esquece de pegar a água concentrada, não podes desidratar. — ela finaliza.
— Pode deixar mãe, só vou jogar um futebol no campo coberto e depois eu volto — enquanto fala puxa a máscara de oxigênio e abre a porta de casa.
— Tudo bem só não quero você com queimaduras de novo — responde a mãe olhando pela janela.

Abraços que pousam,
Mayara Floss

26 setembro 2018

Viagem Amazônica

Canyon Amazônico em formação
English Below

Da Série Mundo Impossível 

Manaus, 19 de setembro de 2084

A mãe segura a mão da filha que está com os olhos grudados na janela. A floresta é linda e uma seringueira imponente recebe alguns raios do sol. É possível ver o frescor, provavelmente a maior árvore que a menina já viu na vida. A seringueira tem cerca de 7 metros e vai subindo pelos andares do hotel. O guia aparece no corredor e acena para as duas. Ele se apresenta:

- Olá meu nome é João vou ser o guia de vocês hoje pelo tour do Rio Negro, vocês podem me seguir até a garagem. - Elas seguiram ele pelo corredor.

Eles descem no subsolo pelo elevador e entram na garagem do hotel, um jipe autoguiado está estacionado logo perto. O guia parece muito animado. O portão da garagem começa a abrir e começam a andar pela rua em direção ao Rio Negro.

A menina começa a tossir dentro do carro. O guia diz:

- Acredito que o clima possa estar causando algum estranhamento pulmonar deixa eu ajustar aqui. O carro é autoguiado e vai em direção ao Rio Negro, eles sentam ao redor de uma mesa. O caminho sacolejo faz o guia advertir: 

- As estradas estão muito ruins - O carro se auto-estaciona na beira do Rio Negro. A mulher olha resoluta pela janela, os olhos tem um brilho seco.

O guia faz as instruções para colocarem as máscaras e proteção de pele:

- Obrigatórias desde 2058 pela legislação brasileira - Ele lembra e adverte. O guia puxa mantas protetoras também.

Eles descem e se cobrem com as mantas e o guia começa a explicar por um auto-falante que sai da sua máscara:

- Aqui são os vestígios de um dos que foi um dos maiores rios do Planeta. Infelizmente no passado devido a muita corrupção e problemas governamentais não se foi devidamente investido na preservação da natureza. Em 2020 começaram os primeiros registros de desertificação, mas devido às poucas políticas a humanidade ignorou na época. - E começa a caminhar em direção ao Rio, descendo por uma escada até o fundo do rio, a menina e a mulher seguem. Continua: 

- O Rio Negro foi o maior afluente da margem esquerda do rio Amazonas. 
 
Aqui podemos observar os restos de uma carcaça de jacaré, um dos grandes répteis extintos pela última onda de extinção a qual terminou com a maioria dos grandes répteis, peixes e mamíferos. 

- Ele aponta para uma carcaça, isolada pelas equipes de neopaleontologistas.

Eles caminham longamente pelo Rio seco quase um canyon com as margens. Ele explica que no passado o Rio enchia com o degelo dos Andes, mas após o aquecimento global se tornar mais severo os Andes não conseguiam mais formar neve e aí começaram as erosões.

Ele conta dados interessantes até que chega no local de encontro das águas, entre o Rio Negro e o Solimões. Um grande vão vazio.

O guia diz:
- Aguardem um segundo que vou mostrar uma imagem para vocês da floresta e do encontro das águas. - ele envia as informações do seu banco de dados para os implantes de retina da mulher e da filha. Os implantes cocleares também vibram com os sons da floresta.

Tudo gradualmente vai voltando ao tempo e ficando verde ao redor deles e aos poucos o Rio vai enchendo de neopixels retinianos. Macacos pulando, leopardos, jacarés, araras, botos cor-de-rosa. O pseudocheiro de floresta entra pelas narinas através da máscara. Mesmo assim as duas respiram fundo juntas maravilhadas. A imagem vai ficando mais intensa como se navegassem pela floresta, o guia vai escolhendo mentalmente os trajetos para aparecerem nas próximas imagens. De repente e abruptamente a imagem se dissolve e o guia diz:

- Desculpa por interromper a transmissão mas está vindo uma tempestade de areia precisamos voltar imediatamente. - ele já começa a dar os primeiros passos e segura a mão da menina. Rapidamente eles começam a correr, ele aciona o jipe autoguiado para vir na direção deles, mas ainda assim estão longe.

Os três pontos humanos correm pelo deserto amazônico. As gotas de suor caem secas no meio de onde um dia foi o Rio Negro.

No trem de Bruxelas para Leuven, Bélgica - 11h 22/09/2018

Abraços que pousam,

Mayara Floss



19 setembro 2018

O mundo impossível

O mundo impossível por Mayara Floss

- Você tem certeza disso? - o homem pergunta para a mulher enquanto segura o filho de três anos no colo.
- Agora não tem mais volta, talvez Jimi possa voltar, mas só se a Terra melhorar. - ela acaricia o filho. 
- Estou com medo da viagem. - ele diz.
- Você nem vai ver, vamos entrar na crioimersão - diz ela.
- Verdade - ele diz mas  a ideia toda não agrada, ele imagina eles entrando na câmera deixando um vazio silencioso na conversa. - Ao menos marquei para fazermos a crioimersao os três juntos na mesma câmera. - complementa pensando no custo extra para uma câmera familiar.
A mulher suspira e diz:
- Por que você sempre tem que ser tão fraco? Não tem o que fazer, a Terra não dá mais. - ela fala de forma incisiva. Ele responde:
- Eu sei que a Terra não dá mais, por isso que estamos embarcando aqui. Mas vou sentir saudades. - diz com os olhos baixos.
- A saudades que a gente sente é de um lugar que não existe mais, olhe pela janela. - ela diz cética.Ele olha pela janela seca, os olhos são secos, a tosse é seca. 
- A Terra esquentou demais a natureza vai ter que fazer as pazes com o que a humanidade fez, estamos tomando a decisão certa e temos dinheiro pra conseguir um bom Condominio em Marte. - e segura a mão dele. 
- Vivemos em um mundo impossível. - ele diz, repetindo a propaganda que entra pela sua retina da Marte Travels. Ele inclusive começa a lembrar dos argumentos que é bom sair da Terra para deixar ela se reconstituir, um dia a humanidade volta. Uma parte da humanidade fica, ele pensa. Na verdade, quem não tem dinheiro fica. Fora as pessoas que ganham bolsas da Marte Travels para viverem em Marte. 

Ele fecha os olhos, mas nem assim imagem da terra seca desaparece. Ainda lembra de 2040 quando era mais novo e conseguiu ver um pouco da natureza nos parques, sua mãe dizia que não era mais tão bonita, mas ainda assim quando chovia levantava um cheiro fresco da terra molhada. Agora só levanta ácido que queima o nariz.

- Passageiros do voo MT1984 por favor dirijam-se até o portão B24 para Embarque. Por favor, tenham em mãos o passaporte inteplanetário. Primeiramente será realizado o embarque de clientes plus e prioritários.- diz a voz feminina no alto-falante. 

Abraços que pousam,
Mayara Floss

12 setembro 2018

TCLE

Ilustração: Pawel Kuczynski


Os pais sentam no escritório, o médico está por vir , a mãe segura o bebê recém nascido com força enquanto embala num ritmo que é mais para tranquiliza-la do que para tranquilizar o bebê, não fazem nem 48hs que ele nasceu. Eles postergaram ao máximo essa decisão. No hospital tudo parece áspero, as paredes azul claro, as janelas para um mundo quente e impossível de um ano quase impossível: 2084. A mesa branca áspera separa a cadeira dos pais e a cadeira do médico. Tudo precede a decisão que ainda não foi tomada.

O médico abre a porta dos fundos do consultório sem bater nem avisar, tem certas coisas que nem o tempo resolve, o que faz o homem e a mulher darem um sobressalto, por sorte o bebê não acordou, mas os olhos da mulher já usaram esse pressuposto para encherem de água. O médico de camisa sem botões, a mais nova modernidade desta era e uma calça super slim também da mais última moda. Ele tem um sorriso grande olha com comoção para os pais falando: 

- Senhor e senhora Silva, bom quase já não acontece mais nos dias de hoje, mas vejo que vocês estão em duvida em relação ao termo de consentimento livre e esclarecido e colocam em risco o futuro do filho de vocês.

O pai tenta falar mas falha a voz:

- É-é-é que não estamos certos se a colocação do implante é uma boa ideia. 

O médico olha para eles: 
- Qual é o medo de vocês?

A mãe fala:
- O implante parece ser seguro, mas temos medo que o nosso filho possa também ser controlado por ele.

O médico então segue:
- Em relação ao procedimento é extremamente seguro, cerca de 45 minutos e o, como é mesmo o nome dele? - e olha os formulários - Ah sim o Gabriel, poderá desfrutar de uma vida normal com acesso a informação direto no telencéfalo dele, basta pensar para fazer as conexões. A grande vantagem é que quanto menor a pessoa mais facilmente se adapta a transformação. Eu por exemplo coloquei o implante com três anos apenas e precisei de pelo menos toda a minha infância para lidar bem com ele. - os pais assentem com a cabeça, o médico faz mais uma observação: Vejo que vocês decidiram por não usar o implante.

O pai diz ajustando o óculos tecnológico que busca informações e interage com a lente em sua Iris enquanto escuta o médico:
- Não, na nossa época o governo não fornecia gratuitamente como agora. Nos mantivemos como Androids tipo 1. 

O médico diz:
- Ah sim, certamente, mas então seguindo a grande vantagem é que todas as crianças agora serão muito mais competitivas e o filho de vocês não conseguirá acompanhar o nível educacional se não colocar o implante. Vocês poderão dar um futuro para o filho de vocês. Se não ele será um excluido digital, como já existem muitas crianças em países menos desenvolvidos.

A mãe diz:
- Sim, estamos acompanhando as propagandas na nossa retina. 

O médico segue:
- Ele poderá ter acesso às informações instantaneamente, e irá processa-las muito mais rapidamente, com a energia do cérebro dele e irá desenvolver-se muito bem.

O pai pergunta:
- E qual a sua opinião sobre a Síndrome de Excesso de informação?

O médico diz:
- Aguarde um segundo vamos conectar nossos dispositivos e vou mostrar algo para vocês.

Uma sequência de imagens envolvendo os pais e a criança começa a aparecer na retina dos pais e do médico, e os implantes cocleares começam a vibrar com as informações sobre o futuro da criança, cuidados para evitar a síndrome do excesso de informação e claro, no final, eles aparecem abraçados e felizes com um possível Gabriel já crescido, que já muito se assemelha ao que será o real Gabriel, pois todos os bebês agora tem leitura de código genético fenotípica prévia. É claro que o logo do laboratório BB aparece no final. 

- Perfeito não? - Diz o médico - para vocês concordarem com isso basta assinarem esse termo de consentimento livre e esclarecido digital. 

- Está é uma bela demonstração de amostra grátis do laboratório BB - diz o pai. O médico sorri e pega uma caneta digital, um ato simbólico nos dias de hoje, que estava no bolso e estende para a mãe, não sem antes dizer - pelo futuro do seu filho. 


Abraços que pousam,
Mayara Floss

02 fevereiro 2018

MARIAS

Imagem capturada na internet e adaptada. 2018.
Ernande Valentin do Prado

1 Maria precisa ir

Quando Gustavo nasceu, não pude cuidar dele. Uma impossibilidade se apossou de meu eu, como uma entidade alienígena, tomou conta do corpo e da alma. Maria veio nesta época em que tudo era escuridão. E trouxe luz.
Era como se Gustavo não tivesse mãe, até ela chegar, não tinha quem cuidasse dele. Até o peito foi Maria quem deu. O filho dela só tinha mãe de noite, alta noite, quando ela voltava para casa, na periferia onde morava (e nunca conheci), acho que Vila São José ou alguma destas com nome de santo.
Agora a luz começou a voltar à minha alma... Gustavo tem que entender: Maria precisa ir (a mãe dele sou eu).

2 Maria vai

Ele me despediu...
O cachorro escapou da coleira e se enfiou embaixo de um daqueles carrões vermelhos que circulam em alta velocidade aqui no bairro.
— Morreu, morreu, o que eu podia fazer?
Dois anos cuidando deste bicho, vi crescer, ficar doente, sarar. Limpei coco, limpei vômito, limpei xixi. Dei de comer, dei banho, dei companhia e carinho, que sem eu era um bicho infeliz.
Agora morreu...

— Eu é que devia ficar triste!

3 Maria fica

— Precisa chegar às seis horas.
Foi o que a mulher me disse, ao mesmo tempo que falava ao celular, com alguém, de um jeito! Sei não, parecia falar com homem, deus me livre:
— ...seis horas em ponto tô aí, pode esperar? Faço valer a pena, juro. Antes não tenho como sair, não posso deixar Stephanny sozinha.
Continuou a mulher a falar, jogando o cabelo loiro artificial de um lado para o outro, trocando o telefone de orelha. Eu sem saber se ela falava comigo ou com o amante. Na dúvida fiquei quietinha, fingindo não notar o tom da conversa.
— ...espera só mais um pouquinnnhoooo. Já vou, promete que espera?
Ficou falando arrastado, olhando pela janela. Depois virou-se para mim:
— Tudo certo, minha filha, pode chegar às seis, amanhã.

Seis horas, pensava eu. Como vou chegar aqui seis horas? Quer dizer, eu tentava pensar nisso, mas de fato pensava em outra coisa: será que vou ter que acobertar o caso da madame, quando o patrão perguntar onde ele foi?

4 Maria não chegou

Marquei oito horas em ponto. Já estou quase atrasada, detesto me atrasar.
Não consigo conter a ansiedade, talvez por ser o primeiro encontro. Preciso voltar à minha vida, já são oito meses de separação e eu não estou morta.
Quase oito, quase oito, quase oito... E Maria que não atende. Bem que ela disse que lá no bairro dela nem sinal de celular tem.
Passei na depiladora, arrumei o cabelo, as unhas, comprei calcinha nova... e Maria não chega. Tinha que me deixar na mão logo hoje?
E esse telefone sem sinal.
Minhas mãos estão suadas. Não posso sair antes de Maria chega, detesto me atrasar, mas não vou sair antes. Vou ligar para ele, avisar que vou me atrasar.

Maria, cadê você?

5 Ainda Maria?

Assim como quem não quer nada, perguntei ao Paulo, no fim do dia:
— O que achou da nova babá?
Ele fez de conta quem não ouviu...
Eu entendi tudo. Cachorro! Menina novinha, com um corpão de mulher, peitão, bundão... cachorro sem vergonha. Pior que Paulinho Junior gostou dela...

Preciso arrumar outra, é urgente, de preferência velha, cheia de estrias, desdentada até. Paulinho que se conforme.

6 Maria Maria

São todas Marias, gentinha burra. Não sabem nem limpar direito, tem que ficar ensinando, insistindo, fiscalizando ou não fazem nada certo. E agora estão com essa mania de querer receber no fim o dia, como se a gente fosse obrigada a ter dinheiro vivo toda hora. Não têm mais humildade, querem exigir seus direitos, querem ser gente.
— Só tenho cartão, Maria, fica para eu te pagar na próxima semana, tá bom.
— Mais eu preciso desse dinheiro, dona...
Não vou nem olhar na cara da coitada, não é de dó não, é nojo mesmo, a mulher tem bigodes. Quando olha para ela não sei se dou risada ou se vomito.
Não vou pagar hoje, que se conforme. Agora sou obrigada a ter dinheiro em casa? Que arrume uma máquina de cartão, se quer receber. Eu que não vou ao banco.
— ...se não puder receber na próxima faxina, Maria, nem precisa voltar mais.
E são mal-agradecidas. Uma vez ofereci uma sacola de pão, que estava aí na cozinha, não quis, disse que na casa dela ninguém come pão dormido. 

7 São todas Marias

Lá vem Maria de novo, com cara de sofredora. Toda hora a mesma coisa, coitada! Não entendo porque não arruma outra família pra trabalhar.
O pior é que é tudo de propósito, só para infernizar mesmo. Já vi a pestinha jogando sorvete no chão e mandando Maria limpar, só de maldade.  Tem criança que parece já nascer ruim, Deus me perdoe, mas essa tem parte com o demo.
Minha avó dizia que a fruta não cai longe do pé, acho que é verdade, a Dona Sophia, mãe dela, parece que vive endemonhada,  até o marido corta uma com ela.
— Vaninha tá aí, tá?
— Tá não, maria, tá não.

8 Maria não sonha

Abri a porta da cozinha com cuidado, já imaginando que o traste estaria encostado nela. Infelizmente não é a primeira vez. Ontem bebeu de novo, bateu na porta até não aguentar mais, foi a maior baixaria com os vizinhos, mas não abri. Quer beber, quer farrear, quer chegar a hora que quiser? Que durma na rua, que a casa é minha.
De verdade mesmo, como fala minha patroa, minha vida está um lixo. Ela diz isso quando briga com o namorado ou tem que estudar para uma prova ou quando tem quer ir para casa dos pais no interior. Depois sai, fica o dia inteiro no Shopping e volta com um monte de sacolas, deixa no quarto, amontoadas num canto, nem desembrulha. 
Que fique na porta. Vou escovar os dentes, jogar uma água no roto, se tiver, que neste lugar água é um luxo que nem sempre tenho. 
Quando não tem água, como hoje, como acontece sempre, levo a escova, a toalha, o desodorante e tomo banho quando a patroa vai para aula ou para o Shopping. As vezes ela não sai, fica na cama o dia todo, aí não dá para tomar banho, que ela não gosta que eu use o chuveiro.
Estou cansada.
Pego a bolsa, pego o cartão do ônibus, pego as chaves, vou deixar tudo trancado, não quero o traste dentro de casa hoje. Se a raiva passar, deixo entrar quando eu voltar ou não deixo mais, vai depender do meu humor.  
Pulo o corpo do nojento encostado na porta, ainda babando e roncando.
— Que nojo, que ódio, traste desgraçado.
Caminho até o final do beco, as vizinhas, sempre tão próximas umas das outras, saem na porta para olhar minha cara mal dormida, quando passo. Viro à direita, antes olho de volta para o traste desacordado na porta, com o sol já quente na cara. Não consigo deixar de pensar: minha vida é um lixo, devia beber também.
Caminho rápido até o ponto de ônibus, que já vem passando, antes pulo o esgoto que corre no canto da rua, aceno para o ônibus.

9 Maria passou por aqui

Maria saiu do elevador carregando uma sacola, parecia cheia de roupas. Deveria ser, sua patroa vivia lhe dando as roupas que não queria mais. Vai ver era por isso que ela estava sempre tão bem vestida.
Fiquei observando aquela mulher miúda e cheia de curvas, que todos os dias, por volta das dezenove horas, passa pela portaria, quase sempre sem me notar atrás do balcão.
Hoje tá diferente, vem em minha direção, até levantei para melhorar a postura, para parecer mais alto, que mulher não gosta de baixinho. O que será que ela quer?
Está usando uns shorts jeans curtinho, uma camiseta branca, com letras prateadas bem grandes: coma! Que já vi, outras vezes, a patroa dela usando. Será isso, COMA, um sinal?
Quando maria abriu a boca, vermelha de batom, igual a patroa, ele achou que ela ia dizer outra coisa, mas só disse:
— Alex, se coisinha passar aqui, diz que eu já fui.

10 Maria só pensou

— Olha, Maria, só ajustar, vai ficar lindo em você, só usei uma vez, para ir em uma festa, tá novinho.
Eu não disse nada. Fiquei olhando a patroa segurando aquela monstruosidade prateado e pensando: que tipo de gente sem noção usa um vestido desses?
— Essa sandália, Maria, serve em você, pode levar também, combina com o vestido.
— Combina mesmo, é verdade.
Disse, olhando a sandália, que a patroa segurava na palma da mão. Salto enorme, tipo plataforma, acho que já vi em vídeos de discoteca, coisa horrível. Era isso que eu pensava, enquanto ela falava entusiasmada.
— ...pode levar, toma.
Peguei a sandália e o vestido, sem demonstrar má vontade, que minha mãe me ensinou que cavalo dado não se olha os dentes, além do mais é muito feio ser mal-agradecida. Quem sabe até posso usar esse vestido, e essa sandália, no baile dos ridículos.
[Ernande Valentin do Prado publica no Rua Balsa das 10 às 6tas-feiras]

22 setembro 2017

ALÉM DA ARREBENTAÇÃO

Queimada. Imagem captada na internet, 2017.
Ernande Valentin do Prado

Camila viu na parede da sala o retrato dela mesma: cabelos dourados, cachinhos caindo sobre os enormes olhos verdes. Estava em pé, com a firmeza possível para uma criança de três anos que se equilibra na areia da praia. Ao fundo o mar esmeralda da orla de Tambaú, em João Pessoa. Foto feita em uma das raras vezes em que a família viajou de férias.
Mais de vinte anos separam as duas Camilas, aquela alegre dos cachinhos dourados, desta em pé de frete a um passado que nem tem certeza ser o seu. Vidas impossível de conciliar.
Tudo besteira, pensa ela, ouvindo a mãe, como um ruído vindo de muito longe. A vida é minha, sei eu qual meu caminho, o que tenho que fazer. Vale, no final das contas, para quase todos e tudo, o que se encontra no fim do arco íris... pronto, vale o que parece. Mas não disse nada, continuou imóvel olhadas as fotos na parede, como um túnel do tempo, sentindo-se emburrada por dentro, mas com a ilusão de não transparecer, prometeu que não iria perder a paciência, alterar a voz, como em outras conversas. A vida também não foi nada fácil para a mãe: Camila ainda lembra do luto, de quanto tempo ela ficou fechada em si mesma. Tempo que parecia que nunca ia ter fim.
Durante o luto a mãe não conseguia expressar-se, falar sobre a perda, sobre como suas vidas mudariam, sobre todas as dificuldades que passariam. Chorava o tempo todo, sentia-se ofendida com demonstrações de afeto, evitava lugares que lhe evocava lembranças do marido, teve síndrome do pânico por muito tempo, culpava-se por ter deixo Joaquim ir para o acampamento, como se pudesse fazer algo para evitar. Camila teve que ser forte pelas duas, dar apoio à mãe, continuar a luta do pai, se não exatamente pelos coletivos, por justiça, por não deixar a comunidade esquecer do massacre que vitimou seu pai, seus companheiros de luta, os que não podiam falar nem lutar por si mesmos.
- Certo? O que é certo nesta história, mãe? Ficar e ser consumida por esse desejo que nem é mais de justiça, que no Brasil não existe, mas de vingança... eu queria, mãe... matar esse desgraçado com minhas próprias mãos.
- Filha, não fale assim!
- A senhora acha que eu gosto de me sentir assim?
Quando o pai morreu, Camila teve que adultecer de uma vez só: lidar com suas perdas, fazer o dever de casa sozinha, enfrentar a escola, as opiniões da professora, que ainda ensinava que existiam coisas que meninas não podiam fazer, isso sem ele para lhe explicar que as cabeças, as opiniões são muitas, e ela precisaria ser mais forte que o mundo para manter suas convicções... as novas e as antigas. Como enfrentar o mundo sem seu apoio e ser digna de seus ensinamentos?
Na escola lhe tratavam como a coitadinha, a menina que teve o pai assassinado brutalmente, nem a professora tinha coragem de lhe dar notas baixas. As tias, o avô, os primos insistiam que ela deveria esquecer a luta de seu pai, dar as costas para tudo, não insistir em buscar justiça, que tinha que tocar a vida, esquecer o pai, seus ideais, seu modo de levar a vida. Ir embora dali, porque “a corda sempre arrebenta do lado do mais fraco”.
- Minha filha...
- Você é minha mãe, eu te amo, mas não importa, eu vou fazer o que tem que ser feito. Nunca conheci ninguém mais certo do que meu pai, e o que ele ganhou com isso? O que nós ganhamos com isso, mãe?
- Acha que ele aprovaria?
- Sei que não. Mas não posso mais esperar aprovação, nem dele nem de ninguém. Eu não tenho pai, mãe... desde os 13 anos! Só uma lembrança cada vez mais longe, imagens cada vez mais desbotadas.
- Filha...
- Sempre vou amar e admirar meu pai, mas não vou seguir seus passos, não vou ter o mesmo fim dele, não mais...
Mariangela sente que a filha, depois de anos, está pronta para chorar a morte do pai, sentir medo, raiva, saudade, viver o luto, coisa que ainda não teve tempo de fazer, sempre tão preocupada, sempre tão ativa na luta. Por isso se cala. Cala para que a filha possa finalmente sentir sua perda, talvez até chorar.
Por seu lado, Camila sente crescer em si um tremor que vai subindo dos pés até trincar os dentes. Sente a mandíbula rígida, os dentes pressionados uns contra os outros. Fixa o olhar nos retratos na parede, que seu pai pendurou um a um, com paciência que não lhe era comum. Sente que vai perder o controle, que não vai conseguir segurar sua dor, como sempre fez na frente da mãe e de todos. O choro chega na garganta, antes dos olhos.
- Puta-que-pariu, mãe! 
Essa dor não vai passar nunca... Pensa Camila. 
- Parece que meu pai morreu ontem.
Diz Camila sentindo a primeira lágrima escorrer por seu rosto.
- Filha, pode chorar...
- Sim, posso, por que é a única coisa que me resta. Fiz tudo que podia, só não chorei a morte dele, mas acabou, não tenho mais forças, mãe, acabou pra mim. Os assassinos de meu pai ainda estão soltos, mais de dez anos depois, ainda estão soltos, estão rindo da gente, mãe. Estão rindo: o assassino, os advogados, os juízes, todos estão rindo de nossas crenças. A corda sempre arrebenta do lado dos fodidos.
- Não é verdade, minha filha, não pense assim.
- Tenho tanta raiva, tanto ódio! O povo unido não tem poder de merda nenhuma, mãe. É tudo mentira. A gente pode fazer qualquer coisa, mobilizar quantas pessoas quiser, juntar uma cidade inteira em passeata, mostrar as provas, os motivos, denunciar na ONU, e a justiça vai continuar dizendo que o assassino é inocente, que só estava defendendo seu patrimônio, sua sagrada família católica.
- Filha...
- Não! Não consigo fazer mais, pensar mais nada a não ser eu mesma fazer a justiça que nenhum dos filhos da chacina conhecerão de outra forma.
Camila soca a parede, em sua foto de criança, de filha...
- Para, para, para, por favor, para.
Ela chora, mas tá decidida. Joga-se ao chão de joelhos, num choro sonoro e desesperado, olhando a única coisa que seu pai realmente construiu e que não se perdeu nas nuvens do tempo.
- Minha filha...
Corre a mãe para acolhe-la em seus braços.
- Vou viver minha vida, agora, agora não vou mais fazer isso... vou me perder de ver no ódio se continuar aqui, se continuar fazendo isso.
- Eu te entendo, filha...
- Eu não vou morrer com a mesma dignidade de meu pai. Ele ganhou o que com isso?
- Mas... filha, ainda tem a apelação...
- Nunca vai ter justiça, mãe, não seja boba. Foi só mais uma chacina que não tem culpado. Nem foi a primeira, nem será a última, nesta terra desgraçada.
- Não é assim, aqueles criminosos vão pagar, vão ser punidos, ainda vai ter justiça.
- Mãe querida, não vai ter justiça! Nem papai e nem ninguém verá justiça nenhuma. Esse é nosso país... (a)corda.
- Não, filha...
Camila levanta-se, desvencilha-se dos braços da mãe, limpa os olhos, retira da parede um quadro com a foto do pai com ela no colo. Sai deixando a porta aberta.
A mãe caminha até a porta, sabendo que não adianta insistir com a filha, que àquela altura já estava decidida. Igualzinha o pai, pensa Mariangela, olhando a filha caminhar para o portão.
Falar o que? É quase certo que ela tem razão em tudo, apesar da tristeza de admitir que a justiça não será feita, que “a corda sempre arrebenta do lado do mais fraco”.
Quando o marido morreu, Mariangela ficou sem chão. Não conseguiu apoiar a filha, ajudá-la a lidar com a perda. Pelo contrário, foi Camila quem lhe ajudou, que enfrentou os avós, que queria lhes levar de volta ao Paraná, para ficar longe desta violência sem fim, para esquecer o que tinha acontecido e iniciar outra vida.
Mas Camila disse não, nós vamos ficar aqui, vamos lutar por justiça, para que a morte de meu pai não tenha sido em vão.
Mariangela mergulhou em profunda depressão por mais de um ano, não conseguia trabalhar, relacionar-se com a família, com os vizinhos, com os grupos sociais que queriam apoiar a luta, usar sua imagem para divulgar o que estava acontecendo no campo. Assistia a filha se mobilizando, articulando as famílias das vítimas, os filhos da chacina, fazia reuniões com os sindicatos, com ONG, os órgãos indigenistas, as igrejas, reunia estudantes, fazia passeatas, viajava para Brasília, para os Estados Unidos, para Europa, onde denunciava a morosidade da justiça brasileira, as manobras jurídicas da defesa, dos agricultores e agropecuarista que continuavam avançando as fronteiras agrícolas, contaminando com agrotóxicos os rios, as terras sagradas dos indígenas. Tudo isso com a conivência dos poderes públicos e apoio de milícias armadas.
Do portão, Camila olha para trás, como se já estivesse muito longe da mãe, muito longe do lugar onde esteve por longos anos: 
- Eu vou embora desse país, mãe. Se a senhora quiser, levo a senhora comigo.
Camila viajou o Brasil, fez contato em várias partes do mundo. Por onde passava era apresentada como vítima de uma terra violenta, sem lei, como a filha de um herói da luta contra o latifúndio, contra a invasão de terras indígenas. Por conta disso recebeu vários convites para deixar o Brasil, levar uma vida de asilada política, mas nunca aceitou, seria como trair a memória do pai, tinha uma tarefa a ser feita, continuar a luta.
- Você sabe que eu não vou, não sabe?
Responde a mãe, quase sussurrando.
- Sei!
Diz Camila, saindo pelo portão, enquanto seu cachorro latia pedindo atenção.
Joaquim morreu há mais de dez anos, assassinado em um acampamento, onde protestava contra a invasão de terras indígenas por um fazendeiro da região. Camila, com 13 anos sofreu muito a perda do pai. Ele era seu herói, o homem mais bom, inteligente, bonito e decente que conhecia. A forma como imaginava seu pai, acabou confirmada após sua morte. Quem o conhecia falava dele assim. Até quem dele não gostava, quem desprezava suas opiniões, seu modo de levar a vida, reconhecia o homem justo e honrado que era, ao menos após sua morte e na frente da filha.
O pai era enfermeiro, desde que formou-se entrou e saiu de empregos nos mais variados lugares, mas sempre aonde julgava que estavam precisando do pouco que ele poderia dar. O último foi em um ONG, contratado por um amigo, Toninho dos Índios, que conheceu nos tempos de movimento estudantil. Ele era tão sonhador quanto o pai. Deveriam ajudar a cuidar de uma aldeia em uma área de conflito entre indígenas e fazendeiros plantadores de soja no Mato Grosso do Sul.
Nesta época, Joaquim estava concursado em uma Universidade Federal, era professor do curso de enfermagem, mas não estava feliz com o que fazia.
- Não foi para isso que me formei, ser professor não é ser enfermeiro, Mariangela.
Ouvia o pai falar com a mãe.
- Minha casa é você, meu amor, se você quer ir para o Mato Grosso do Sul, então vamos.
Disse a mãe.
Desde que cursava o ensino médio, Joaquim prometeu-se a si mesmo que mudaria o mundo. Primeiro achou que seria pela revolução armada: iria salvar a América, missão incompleta deixada por Che Guevara. Depois engajou-se na construção dos sindicatos, dos movimentos populares, na construção de um partido operário que se tornou tão corrupto quanto os partidos dos patrões. Por um tempo achou que a solução era ajudar a formar jovens enfermeiros com compromisso com as mudanças sociais e por fim engajou-se na luta direta à construção de alternativas locais. O cuidado vai mudar o mundo, dizia. Fracassou em todas, embora Camila admita que ele tenha revolucionado a vida de muita gente. Mas de que vale isso se morreu na miséria, se nem casa própria conseguiu ter ao longa da vida?
Essa vida acabou para mim, definitivamente não posso mais fazer isso, pensa Camila enquanto caminha pela rua.
Ela cresceu ouvindo o pai dizer que no fim a justiça vingaria, que os honestos venceriam, que uma revolução socialista seria feita no Brasil. Tudo ilusão de um homem que não vivia com os pés no chão. Cada um que se vire como pode, agora vou me virar com as armas que tenho. Não vou lutar e morrer por uma terra que não merece o sacrifício de ninguém.
- Meu pai, você tá errado, o Brasil não tem jeito!
Fala sozinha Camila, como que tentando ser ouvida pelo pai. Mas já é tarde, ele já não pode lhe convencer do contrário, de que vale a pena continuar lutando por justiça, de que nossos sonhos de um mundo melhor são valiosos, são possíveis.
Você estava errado, meu pai. Sonhos não enchem barriga, só atrapalham nosso caminho.
No outono o pai estava acampado com indígenas, sindicalistas, lideranças comunitárias da Comissão Pastoral da Terra e de outros líderes populares, todos tão indignados quanto ele.
- Esse não é seu trabalho.
Dizia a mãe.
Mas o pai não se conformava, dizia que não era enfermeiro de verificar pressão e dar injeção, mas de mudar o mundo. Cuidar é mais que técnicas, cuidar é olhar nos olhos, é ouvir, tomar parte, dizia sempre.
- Eu sei que é perigoso.
Disse o pai para a mãe. Camila ouvia da sala.
- Mas se a gente não fizer, quem fará? Estão mantando todas aquelas pessoas, amor. Temos que fazer alguma coisa.
- Vão matar você também, e o que será da gente?
Disse a mãe.
- Pai, você tem mesmo que ir?
- Vão matar ninguém não, não desta vez...
- Eu estou com um pressentimento ruim, não vá...
- Pai, tem certeza?
- Tenho que ir, amor, não posso ver essa injustiça sem fazer nada, sem ao menos estar do lado deles...
- E nós?
- Nós temos mais do que eles, vocês entendem, não é justo, temos que ajudar.
Naquela madrugada de sábado para domingo, Camila acordou no meio da noite chorando. Disse que tinha tido um sonho ruim. Chorou descontroladamente e foi levada para a cama juntos dos pais, onde dormiram os três apertados o resto da noite.
Antes do pai sair, abraçou-lhe bem apertado por muito tempo, como se já estivesse sentindo saudades, mas não pediu para ele não ir, apenas disse:
- Volta logo, pai!
Foi a última vez que falou com ele, ao menos tendo certeza que ele ouvia.
Joaquim levou três tiros no peito a queima roupa durante a invasão do acampamento pelos jagunços contratados pelo fazendeiro invasor das terras indígenas. Outras cinco lideranças comunitárias, sendo quatro indígenas foram torturados, assassinados e seus corpos amarrados em pedras no fundo do Rio. O mandante da chacina continua livre. As terras, que a FUNAI dizia ser dos índios, parraram formalmente à posse do fazendeiro, presente da justiça brasileira.
- No Brasil, não basta eliminar os desafetos políticos, eles fazem isso com uma crueldade que desumaniza a vítima, a brutalidade é proposital. Ao causar horror nas comunidades, nas famílias e nos companheiros das vítimas, estão passando uma mensagem: é isso que vai lhe acontecer se se rebelar, agora ou no futuro. Mas nós continuamos vivos e temos esperança de fazer justiça.
Disse Camila em San José, na Costa Rica, em uma sessão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, aonde esteve apresentando a chacina e suas vítimas.
Toninho, companheiro de Joaquim, ainda respirando teve as orelhas cortadas. “A ordem era levar as orelhas dele, os outros bastava matar e jogar no rio”, disse um dos jagunços, em depoimento.
Lembrando de tudo, Mariangela, não tem como negar que a filha tem suas razões em querer simplesmente virar as costas para tudo isso e seguir em frente, longe do Brasil. Finalmente enlutar-se pela perda do pai. Mas como ela poderia seguir em frente?
Os jagunços executores da chacina, chegaram a ser presos, mas a “justiça” do estado levou três anos para decidir sobre um pedido de desaforamento do julgamento para capital do estado, pois temia, com razão, que na comarca não haveria justiça. O Tribunal não julgou o pedido da defesa como procedente. O processo rolou pelos corredores da burocracia e do jogo judiciário por quase cinco anos, uma demora injustificada, mas estratégica para defesa dos assassinos, que nunca chegaram a denunciar o mandante do crime, embora fosse evidente.
O fazendeiro acusado de ordenar o crime nunca chegou a ser preso, aguardou em liberdade o julgamento e foi absolvido pelo tribunal do júri, o que escandalizou o país por duas semanas, depois foi esquecido completamente. O estado, por conta das ações e omissões do judiciário, ainda responde processo na Organização dos Estados Americanos pela demora na condução do processo, pela impunidade que reina nos conflitos fundiários no Brasil.
- No fim, os sonhadores estão sozinhos.
Diz ainda hoje Camila para seu pai, com quem conversa cotidianamente, em sonhos e quando está só, sentindo tanta saudade, quanto sentiu naquele último abraço na madrugada.
Durante sua adolescência, quando assumiu a luta por justiça, tentou estar à altura dos sonhos do pai, de seus ideais, mas sem nunca sentir que conseguia. Quanto mais brigava, mais gente mobilizava, menos digna e mais indigna sentia-se.
Durante muito tempo sentia que apenas os jagunços seriam punidos, em mais um caso de chacina por conflito de terras, mas no final nem eles foram punidos. A defesa, paga pelo fazendeiro, argumentou que deveriam ser libertados porque houve excesso de prazo de sua prisão. Tese aceita pelo juiz. A soltura foi comemorada com um churrasco na fazendo do mandante, numa afronte às famílias das vítimas.
Camila está certa, pensa a mãe. E eu deveria ir com ela, ao invés de questionar sua decisão. Mas com que forças posso fazer, posso virar as costas para as utopias de Joaquim?
Só esse ano, que ainda não terminou, pensa Mariangela, olhando anotações que vem fazendo desde a morte do marido, foram assassinadas quase quarenta pessoas, muitas delas indígenas. Existem quase duas centenas de pessoas ameaçadas de morte, em inúmeros conflitos por posse de terras. Quase todos terão o mesmo destino de Joaquim, pensa desanimada Mariangela.

[1] Felipe Milanez / Carta Capital. Fazenda Princesa: acusado de ser mandante da chacina vai a júri depois de 30 anos. Disponível em: . Acessado em: 09 abr. 2016.



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COLEÇÃO: ALÉM DA ARREBENTAÇÃO



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