Lentilinhas II
(não tão pequeninas...)
TEOSINTO
Verão de 2014
Que tenhamos coragem de experimentar o silêncio com a segurança de estar entre os nossos
Que tenhamos coragem de dizer e de mudar.
Que nossas palavras sejam vividas.
Desejo e busca.
Sementes.
Jacimara Heckler
Verão de 2006
Há 10 anos terminei meu mestrado, em um turbilhão de perdas e ganhos, decepções, descobertas e reencontros. Quando eu estava saindo, ela estava entrando: Jacimara. Achei o máximo porque a Jaci era menor do que eu, o que a conferiu o título de ajudante do Papai Noel. É que nosso orientador se vestia de Papai Noel para o natal das crianças de um hospital e precisava de ajudantes com um tamanho e perfil adequados... E ela era tipo a fadinha ou gnomo ou duende ou algo assim, da festa das crianças.
Com a Jaci, fui pela primeira vez a Itapuã e vi a Lagoa dos Patos de um outro ângulo, de cima, limpa, apaixonada, se “envolvendo” com o rio Guaíba, a danada! Nessa tarde, ela se atirou na água gelada do rio, apesar do nosso espanto. Também, com ela e a turma do mestrado, cantamos juntos em um sarau e fomos bem aplaudidos. Era uma seleção de músicas do Roberto Carlos (das antigas!) que tínhamos ensaiado umas duas noites antes, na casa do Daltro, outro parceiro dos bons.
Como eu estava escrevendo, na fase final, pouco me envolvi com o trabalho da Jaci que era bióloga e estudava os saberes dos povos guaranis relacionados ao plantio do milho. Mas ela foi na minha defesa e me deu um colar de pequenas miçangas azuis que ela mesma tinha feito pra mim. Achei que era sinal de sorte. Afinal, meu trabalho era sobre um babalorixá e eu era, segundo a confirmação dos búzios, filha de Iemanjá... Daí um colar de contas azuis, presenteado por uma fadinha do Papai Noel, a menina-mãe da Maria Terra também de olhos azuis... Ah, isso me parecia sinal de bons ventos!
Os tempos de mestrado se foram em um inverno de 2004. E também, em um inverno de 2009 e da vida, nosso orientador, o Papai Noel, Nilton Fischer, nos deixou tão de repente, quanto uma chuvarada de verão que deixa poças nas ruas, árvores tombadas, fios e postes caídos e uma sensação de que nada será como antes. Ficamos todos desabrigados no frio, um pouco órfãos e como irmãos carentes, vez ou outra, nos vemos e nos abraçamos, sempre com o sorriso da lembrança da festa que fizemos, entre amigos, entre danças, desafios, descobertas, estreias, defesas, chegadas e partidas.
É verão, 2014, segunda-feira, 40 graus... passo na sorveteria e pego meu sorvete predileto, o de milho. Quinta, combino ceviche com amigos. Pra esperar, Carlos, o dono e cozinheiro, nos serve “mote” e “cancha”: mais milhos. Feira de sábado, mais fresco depois da chuva. Passo por um colar de sementes e me encanto. Sal, a artesã, me explica que a menor semente, a que parece uma pedrinha, um dente, é de teosinto. Pela semelhança, é chamada popularmente de dente de burro e explica que é a semente mais rústica, mais antiga, uma precursora do milho.
Curiosa, vou estudar a “conta” do meu colar novo. Teosinto, apesar de ser escandalosamente diferente, é mesmo um ancestral selvagem do milho. Uma espécie de grama nascida no México e que depois de 9 mil anos se tornou milho. O pesquisador que descobriu isso ganhou o prêmio Nobel em 1958. Para “virar” milho, o teosinto que tinha as sementes nuas em pendão, sofreu misteriosas mutações com o deslocamento do órgão feminino. Isso fez com que as sementes ficassem grudadas em uma espiga, tal qual as conhecemos. Fez também com que existisse uma palha cobrindo as sementes e que, se não fosse pelas mãos humanas, expondo as, a planta não teria como se reproduzir, germinar.
O teosinto consegue nascer em solo pobre e pode ser dado a qualquer espécie de animal. A semeadura deve ser feita na primavera e a colheita no inverno. E, apesar de ser considerada uma erva daninha, por alguns, em “nahuatl”, idioma dos astecas, a sementinha sem graça era chamada mãe do milho... Sim, os astecas já sabiam... Sabiam que o pequeno dente de burro, a daninha, é a mãe do alimento que representa 21% da nutrição humana em todo o globo. Mas, ora, ora, por que tantas linhas em função de uma sementinha antiga?
Ainda, “por que estudar as sementes? Quais sementes plantamos? Que plantas deixamos crescer? Que frutos deixamos? Qual a nossa arte? O que criamos e reinventamos juntos e sendo um?” E essas não são minhas, mas são as perguntas na dissertação da Jaci... Ela, que não coloca data na capa, mas estação do ano, porque é esse o tempo da semente. As perguntas que a Jaci faz e se faz, ela busca respostas nas aldeias guaranis. Respostas possíveis a partir de famílias que plantam milho, dançam, conservam rituais... Respostas que a própria Jaci constroi, quando resolve, em pleno trabalho de campo e escrita, semear e plantar milho...
Jaci diz que sente a força do milho e ouve as histórias, a fala do índio guarani que afirma que se deve levar o milho no coração, no corpo, andando, rezando... E lendo as palavras dela, depois de tanto tempo, me vem tudo o que genuinamente me atraiu para a educação popular: a beleza, a simplicidade, os saberes trocados, os questionamentos, a valorização da cultura, da história, da magia, da semeadura do outro. O milho é uma identidade, uma bandeira, um símbolo de gerações e ofícios. Ofícios da terra. Ofício de tempo que precisa maturar, para florir. E me reapaixono pela educação popular...
Sim, casamentos longos com desgastes, institucionalizações (o papel passado das políticas...), poderes, vaidades, lutas vãs, perda de sentido, perda de sentimento, ausência de diálogo, palavras e atitudes duras, silêncios, pactos, tendas e palcos e a uma amorosidade contida em somente um jeito de fazer desapaixonam e frustram. A gente fica tentando, buscando, mas nem tudo é achado. E em uma manhã na feira, por conta de um colar de sementes de erva daninha, renasce uma beleza de longe que se achega, se aconchega de novo, pedindo para ser confiada, acreditada, apostada, amada.
Volta o Nilton, caminhando em Itapuã; Brandão dizendo da primeira troca de saberes (ao fim do texto) e um Freire que trabalha nos campos, na terra, tal qual um jardineiro que prepara o jardim para uma rosa que se abrirá na primavera:
Por isto, enquanto te espero
trabalharei os campos e
conversarei com os homens
Suarei meu corpo, que o sol queimará;
minhas mãos ficarão calejadas;
meus pés aprenderão o mistério dos caminhos;
meus ouvidos ouvirão mais,
meus olhos verão o que antes não viam,
enquanto esperarei por ti.
Paulo Freire
Um Freire esperançoso que prepara a próxima estação, a próxima colheita. Prepara a partir de um conhecimento ancestral, algo que esquecemos porque é terno e diminuto, sensível e de cor leve. Algo que não está na exuberância, mas tal qual essência rara, está escondido na pequeneza, em meio centímetro de semente milenar, mãe humilde de um alimento sagrado, uma divindade, uma história de vidas e de povos.
Grata, Jacimara, pelo primeiro colar de contas azuis que ainda tenho e, já pressentia, é mágico como esse reencontro de esperança, a partir de um outro colar... Teosinto, conta do meu enfeite, semente nua, para ser nascida em qualquer terra, espalhada no vento, para ser alimento de todos. Teosinto, pequena, te sinto, imensa, mãe... Teosinto, milenar, te sinto, nascendo em mim, como a primeira pergunta, o primeiro gesto, a primeira palavra, a primeira troca entre avós e netos, no meio da noite, ao redor da fogueira, em algum inverno do início dos tempos...
Avós e netos no meio da noite
Como teria sido a noite talvez esquecida de todas as memórias?
Uma noite primitiva e ancestral na aurora da história,
Quando um pequeno ser vivo, um milhão de anos depois chamado: “homem”.
Chamou para um lugar mais perto da fogueira acesa o seu neto
E então, apontando com dois dedos da mão direita uma estrela.
entre as muitas do céu de julho, pronunciou pela primeira vez
o seu primeiro nome. Como terá sido aquela noite?
com que gestos de um afeto rude, no entanto cheios de uma estranha luz,
mais do que a fogueira, mais do que a das estrelas do inverno
teria acontecido aquilo um dia ... no meio da noite?
Como teria sido, anterior de mil milênios
uma outra noite, mais esquecida ainda no silêncio do tempo
quando um ancestral mais antigo ainda daqueles primeiros homens
descansou sobre os ombros de um menino o peso do braço
e entre movimentos das mãos apenas, e do olhar
ensinou a ele pela primeira vez um pequeno segredo
num tempo em que debaixo das árvores e das estrelas não existiam ainda nem mesmo as palavras, nem mesmo os nomes do mundo?
como teria sido o desenho daqueles gestos sem voz
e tão humanamente simples que sob a proteção dos astros
o homem e o menino adormeceram sem de longe imaginar
que haviam feito ali o milagre de aprender-e-ensinar
para que o saber não morra, e nem as pessoas, e nem as estrelas?
Que pássaros acordados na noite e que outros seres dos céus
é que flores noturnas dessas onde só o perfume
já torna tão cheio de mistérios o mundo e a vida
terão assistido, uma vez e outra, separadas de um milhão de anos
aqueles instantes fulgazes da história quando, primeiro o gesto
e, depois, a palavra, teriam criado a façanha de inventar a troca
entre os símbolos, entre os sentidos e entre os sentimentos do mundo através dos gestos da vida em consciência e em saber?
transformados naquilo a que outros, tanto tempo ,
deram o nome de educação, entre os homens e os filhos dos homens.
Carlos Rodrigues Brandão
Dissertacao da Jacimara:
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