18 março 2014

Mão inteira

 MÃO INTEIRA

Esse tempo não tem rédea
Vem nas asas do vento
O momento da tragédia
Chico Ferreira e Bento
Só souberam na hora do destino apresentar.
Gilberto Gil
(Parabolicamará)

Santana do Mundaú, Alagoas. Chico Ferreira, 37 anos. Foi abandonado pela mãe, junto com a irmã gêmea, aos 3 anos. Nunca conheceu o pai. Foram adotados por uma família e, logo depois, novamente abandonados. Aos 7 anos, Chico já sabia o que era trabalhar para não sentir fome. Varria pátios e passava pano nos chãos das casas por um prato de comida para ele e para a irmã. Desde cedo, aprendeu a cuidar na miséria, a proteger em meio à desproteção. Aos 8 anos, aprendeu a tirar leite de vaca. Aprendeu de tudo um pouco e fez de tudo um pouco. Acabou seguindo o destino comum de muitos homens da região: cortar cana no Espírito Santo. Esse ofício que ele bem sabe, lhe causou dores, males e doenças. Também trabalhou em lavoura de algodão no Mato Grosso, onde desenvolveu seu aprendizado mais valioso: cozinharA partir daí sempre que partia, de caminhão em caminhão pau-de-arara para as colheitas de cana, em São Paulo ou no Espírito Santo, Chico não ia para a lavoura, mas para um cantinho com fogão e panela. Passou a cozinheiro d"peonada"
Chico é de "pouca letra" e o que aprendeu foi no Mobral. Fez concurso na cidade em que nasceu, passou na prova e nunca foi chamado pra assumir. Diz que nessa gestão há 11 pessoas da mesma família ocupando cargos sem concurso. Igual quando fez prova e passou, igual a sempre: "aqui é assim...". Após longos anos de trabalho na roça alheia, nos caminhões, nas cozinhas, comprou seu terreno por 8 mil reais e fez sua casa, aos poucos, com as economias. Comprou as coisas da casa que pagou em duas vezes de 1200 reais. Aí veio a chuva e o rio encheu, virou mar.
Era junho de 2010, festa de São João. Em 20 minutos, a água levou tudo. Durante todo esse mês, sem casa, sem rumo, Chico ajudou a Defesa Civil local, exposto às pressões e à exaustão de uma situação de doenças e perdas. Por alguns serviços, ele ganhou 600 reais e resolveu pagar parte da sua dívida no comércio, a dos móveis que se foram com as águas. De toda a sua história, tem a marca de cumprir com seus compromissos, pois diz que todos dependem uns dos outros, todos se apoiam e não sabe quando precisará de alguém. Precisa ser honrado, ter palavra.
Tentou vender o terreno com os restos da casa que construiu, mas só deram 2 mil reais. Naquele momento, me diz Chico, ele falou com DeusFalou de pertinho, de joelhos. Disse que estava na vida entregue, rendido, para Ele fazer o que queria, que estava nas mãos de Deus e que nada mais tinha. Disse ainda para mim: "fui abandonado pela mãe até hoje". Até hoje, abandonado, Chico se vincula com os visitantes, profissionais da saúde que vem no auxílio e cuidado com os desabrigados. Chorou por dois diasquando o corpo de bombeiros do Rio de Janeiro se foi e confessou que iria sofrer quando o nosso grupo, o que eu fazia parte, enfim, partisse. Chico não caminhava para ajudar, Chico corria. Quando questionado pelas autoridades locais, sobre por que as coisas não funcionavam por li, ele só respondia: "eu sou só isso" e mostra o dedo mínimo. E continuava: "e vocês são isso tudo" e mostrava a mão inteira.
Ao contar sua história inteira, como a mão inteira, aberta, sem segredos,sem desviar o olhar, em uma única noite em que eu estava de plantão, ele sempre repetia ao fim de cada frase e creio, no fim de cada pensamento: "...é muita coisa...". E ficava olhando a minha escrita com admiração e esperança de que esse Deus que tanto rezou, olharia para ele. Chico deve estar, certamente, agora, aguardando alguma bênção, algum alívioEnfrentando outras cheias, outros recomeços, outros aprendizados em meio ao abandono. Destino...
Destino diz respeito a uma ordem natural estabelecida do universo. Geralmente é entendido como um acontecimento ou uma sucessão "inevitável"de acontecimentos provocados ou desconhecidos. tal do destino é muito usado para tentar explicar o absurdo dos fatos existenciais, os insucessos, as injustiças, os desencontros. Mas também para explicar e enfeitar os encontros, as alegrias, os amores achados e mantidos. Destino dá ideia de fatalismo, superstição, tradição, irracionalidade, magia, vocação... Como se alguém houvesse nascido para sofrer ou para brilhar. Nascido para ser mindinho ou para ser mão inteira. Mão que também se fecha em punho e bate na porta da vida ou é a vida que bate? Sim, diz o poeta, Ferreira Gullar, a vida bate:

A vida bate
Não se trata do poema e sim do homem e sua vida
- a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
(...)
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!
(...)
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
(...)
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.

Não se trata do poema e sim do homem, grita o poeta. Não se trata da palavra e sim do grito, da falta de escolha, da falta de escola, da falta de tempo para a vida. Não se trata do homem e sim do escravo. Não se trata da vida, mas da ferida mal curada, mal cuidada, mal sentida por medo de sentir, de se fazer notar, de se fazer frágil para não mais servir. Não se trata do sabor, mas da fome, das roças, das ruas, das pontes, das febres, da falta da mãe e do pai,das ilusões de pedra e pó: queimada, fumaça nua, brilho solitário, refúgio do presente, escuridões e sangue no campo, no asfalto, solidão. Não se trata de vozes, mas de buzinas, gases, passos, apitos, pulsos, coração e esse pequeno pão, alimento de esperança, migalha de futuro. Não se trata de canção, mas de oração.
Chico, meu companheiro de noitesmeu herói de plantão no hospital de campanha de Santana do Mundaú, as lágrimas me correm escondidas e não consigo te dizer o que sinto, comovida... Não se trata de destino, coisa de Deus, Chico, se trata de omissão, coisa de homens. Porque tu, Chico, ao contrário do que pensas, não és dedo mindinho. Tu és mão inteira. És mão inteira que acaricia a vida áspera com teu olhar de reza. És vida inteira que abraça a derrota e cada pequena vitória com a grandeza e a dignidade de umhomem que não pode ser esquecido. Tu és as minhas duas mãos inteiras, postas na escrita da tua história, entregues ao poema da tua vidaao facho de esperança e ternura que sinto, quando fecho os olhos e lembro da tua figura. Não esquece, Chico, és mão inteira...

[Maria Amélia Mano escreve na Rua Balsa das 10 às terças-feiras]

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