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Parteiras tradicionais do Amapá. Foto: divulgação/J.R. Ripper |
Chegaram correndo de carroça na casa de Dona Francisca, a melhor
parteira da região. Uma moça sem nome nem sobrenome tinha chegado na
cidade e já estava em trabalho de parto, mas a criança custava a nascer,
já tinham ido outras duas parteiras tentar resolver o caso, mas era de
difícil solução.
Dona Francisca arregaçou as mangas, pegou a sua bolsa cheia de chás e
ervas quase mágicas e foi a cavalo até a cidade, porque até mesmo
mulheres sem nome e sobrenome precisam de ajuda na hora do parto, e
também ninguém aguenta os gritos da mãe no nascimento. Aliás não há
maior alívio do que o choro do bebê. Dona Francisca já tinha visto de
tudo, mas sempre sabia que tinha mais algo para ver.
O homem que levava Dona Francisca suava, todo mundo tinha medo da hora
de nascer. Chegavam na boca da noite, a cidade repontava lá em baixo,
uma meia dúzia de casas com umas dez famílias, um mercado e, claro, uma
igreja. Dona Francisca, com os cabelos brancos amarrados fortemente na
cabeça desceu e adentrou numa casa que ficava nos fundos da igreja e que
quando fosse muito necessário ajudava quem estava com necessidades.
Porque na Vila ficava feio gente indulgente.
Entrou na casa, já era velha conhecida, encontrou a mulher chorando aos
berros e quase sem força. Aproximou-se e colocou a mão na sua testa,
estava com febre, mandou ferver mais água, amassou algumas plantas
mágicas e começou a rezar enquanto se colocava perto do canal do parto.
Mandou a mulher fazer força e segurar-se firme na mão de uma freira que
estava ao seu lado, disse para colocar o queixo no peito e não gritar
tanto porque dai perdia as forças.
Decidiu colocar a mão lá dentro para ver como estava a cabeça do bebê,
colocou sentiu o canal aberto, mas de cabeça não sentia nada, sentia uma
coisa pontuda. Será que isso é obra de coisa ruim? Pensou. Mas não ia
levantar a questão tão perto da igreja, porque se não iam deixar a
mulher de qualquer jeito em qualquer lugar, ninguém queria filhos desse
jeito.
Dali a pouco queria tentar ajudar a puxar a criança, mas quando colocava
a mão lá dentro sentiu algo redondo, começou a arregalar os olhos. Dona
Francisca estava achando aquilo tudo muito estranho. E assim passou a
noite, Dona Francisca tentando puxar, empurrando a barriga, tentando
fazer nascer aquela cria estranha.
Quando repontou o dia a mulher sem nome nem sobrenome desmaiou. E Dona
Francisca já não sabia o que fazer. Ela perdeu as forças, Dona Francisca
sabia que já estava partindo. A mulher relaxou e num último momento ela
tentou puxar o rebento. Enquanto isso todos saíram da sala e a freira
foi chamar o padre para terminar logo com tudo aquilo. De repente que
susto tomou. Foi quando já não tinha mais esperança.
Começaram a nascer letras e mais letras, palavras, frases e textos e
tudo que se imaginava. Dona Francisca nem sabia ler. Começaram a se
derramar no chão como criação poemas e textos, saiam com sangue, liquido
amniótico e placenta. Nasciam e gritavam o que queriam dizer, e caiam
pulsando com palavras. Dona Francisca ficou apavorada e se encostou na
porta para não deixar ninguém entrar, era assustador e belo o
nascimento.
Quando terminou de nascer e ficaram todas no chão a mulher acordou,
suada e cansada. E pediu para Dona Francisca recolher todas aquelas
palavras e fez com a mão que não tivesse medo, estava tudo certo, mas
pediu que mantivesse segredo. Dona Francisca colocou na bolsa da mulher
as letras, palavras, poemas e textos. Enquanto a mulher se virava para
descansar.
De repente chegou o padre, pronto para benzer e a mulher enterrar ela e o
bebê que não quis nascer. Dona Francisca avisou que a moça estava bem e
que não era bebê, era uma outra doença que não sabia reconhecer. Mas
que a mulher parecia estar bem e precisava descansar, olhava de canto
para a sacola que não parava de se mexer. Estava lá o bendito bebê.
É a sina dos poetas, parirem e quase morrerem para deixar escrita a dor de nascer.
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Parteiras tradicionais do Amapá. Foto: divulgação/J.R. Ripper |
[Mayara Floss publica na Rua Balsa das 10 às 4as-feiras]
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