27 maio 2014

PROTEÇÃO [Maria Amélia Medeiros Mano]

            
Maio, 2014, sexta-feira. Pelotas. Sou médica de família, supervisora do Provab. Termino uma reunião em uma unidade de saúde da periferia. Violência nas ruas da comunidade. Profissionais de saúde se sentindo ameaçados. Assaltos diários, tiroteios noturnos. Pedem ajuda policial. De alguma forma, os "de dentro", precisam se proteger "dos de fora". Eu e a equipe da Secretaria de Saúde tentamos negociar outras formas de lidar com a violência, já que ela atingiria os profissionais de outras formas, a partir do sofrimento dos usuários, das angústias dos agentes comunitários de saúde. Mas a solução mais desejada era a proteção policial.

Maio, 2014, sábado, véspera do dia das mães. Rio de Janeiro. Engarrafamento na frente do Shopping Jardim Guadalupe, bairro de mesmo nome. Sequestro de um ônibus. A mídia diz que o "criminoso assaltava os passageiros". Paulo Roberto, 35 anos, morador da Mangueira, pobre, negro, usuário de drogas, passagem na polícia por furto, roubo, resistência e uso de material entorpecente. Ameaçava a refém, a estudante Raphaella, com uma tesoura de costura, possivelmente comprada na véspera do crime.

Dezembro, 1531. Cidade do México. Nossa Senhora de Guadalupe, popularmente chamada de Virgem de Guadalupe, aparece a um índio Nahuatl. Fez crescer flores em uma colina quase deserta em pleno inverno. A "Senhora do Céu" tornou-se padroeira da América Latina e é reverenciada por milhões de devotos. Como Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora de Guadalupe é negra.

Maio, 1888. Rio de Janeiro. Princesa Isabel, filha de Dom Pedro II assina a Lei Áurea, abolindo a escravidão no país.

Abril, 1984. Brasília. Philipe tinha uma canção, mas não tinha letra. Estava apaixonado pela primeira namorada. Então, o Movimento das Diretas termina em estado de sítio e exército nas ruas. Ele compõe a letra Proteção, que viria a ser sucesso 2 anos depois. Mais ou menos na mesma época, um pouco depois do sucesso de Proteção, que amo, veio Faroeste Caboclo, uma canção marcada pela voz de Renato Russo que contava a história de João de Santo Cristo. Eu tinha uns 16 anos, andava sempre apaixonada, tinha um diário e uma camiseta do Rock in Rio com a Plebe Rude e a Legião Urbana.

Julho, 1993. Rio de Janeiro. Igreja da Candelária. Policiais, ocupantes de dois carros com placas cobertas atiram contra dezenas de crianças e adolescentes, que dormiam nas proximidades da Igreja. Quase todos negros e pobres. Eu tinha 21 anos e estava na Faculdade de Medicina, tirando nota baixa em anatomia e histologia. Lia o Dia do Curinga e Vinícius de Moraes e frequentava a boate da odontologia, lugar onde o pessoal do diretório acadêmico assumia o som e sempre botava U2...

Voltamos a maio, 2014, Rio. Ônibus. Paulo Roberto permite que Raphaella ligue para o pai. Os dois conversam. Ele afirma que não vai machucar a menina. Ele lembra da filha e do dia das mães. Pediu a presença de familiares dele, moradores do morro do Chapadão. Um sargento do Batalhão de Operações Especiais (Bope), Glebson, começa as negociações, amparado por cerca de 400 agentes. Conforme Glebson, Paulo falava coisas vagas, sem nexo. Possivelmente estava sob efeito de drogas.

Junho, 2000. Rio de Janeiro. Estava fazendo residência em Medicina Preventiva e Social em Pelotas. Um sobrevivente da chacina da Candelária, Sandro do Nascimento, entrou no ônibus 174 armado. Após 4 horas, com o ônibus cercado, a refém que Sandro usava de escudo, a professora Geisa, foi atingida e morreu no local. Dominado pelos policiais, Sandro foi asfixiado no carro da Polícia Militar a caminho do hospital. Sandro era negro e pobre.

Outubro, 2002. Brasil inteiro. Lançamento do filme ônibus 174. O filme conta a trajetória do sequestrador, Sandro, desde o processo de transformação da criança de rua em bandido e sugere as causas da violência nas grandes cidades brasileiras. Estou fazendo mestrado em Educação e trabalhando em uma das comunidades mais violentas de Porto Alegre, o Campo da Tuca – Centro de Saúde Escola Murialdo.

Novembro, 2011. Rio de Janeiro. Trabalho na Vila Dique, Grupo Hospitalar Conceição. Inaugurado o Shopping Jardim Guadalupe em plena Baixada Fluminense, na Avenida Brasil. O empreendimento que é um belíssimo projeto arquitetônico, segundo o site comercial, se diz catalisador da revitalização da região. O site fala em práticas de sustentabilidade. "Sustenta" 180 lojas satélites e 16 âncoras. Há bares, restaurantes, academia e até universidade e espaço para Centro Médico. São 1.443 vagas de estacionamento, cinco salas de cinema, três delas com projeção 3D, com a maior tela do país e sistema de "som espacial", além de fileiras VIPs com poltronas inclináveis...

Maio, 2013. Brasil inteiro. Um mês antes, entro como supervisora do Provab e inicio as visitas aos municípios do sul do estado. Lançamento do filme Faroeste Caboclo. A saga de João de Santo Cristo, pobre, negro, que migra para Brasília, para tentar a vida na cidade grande. Cai na marginalidade e, no fim, morre violentamente, como muitos. Na canção, a última parte diz que João tinha ido para Brasília para falar com o presidente "pra ajudar toda essa gente que só faz sofrer". Possivelmente, em uma destas grandes salas de cinema do Shopping Jardim Guadalupe, a vida de João foi vista em "tela olímpica".

Maio, 2014. Rio, cena final do sequestro em Guadalupe. Após 2 horas, Paulo se entrega com um colete a prova de balas. Negociadores falam que Paulo dizia que estava com medo das vítimas dos roubos que tinha praticado, que se sentia perseguido por elas. Disse também que já tinha tentado suicídio, que estava desesperado, "mas não deixou claro o motivo". Disse também que o sequestro era para chamar a atenção da família, da polícia, da imprensa, "mas não explicou o objetivo disso tudo" (em itálico, as falas de um negociador).

Maio, 2014. Pelotas. Domingo, dia das mães. Assisto ao programa de TV que entrevista Raphaella e a mãe, felizes pela vida. Pelo retorno sã e salva para casa. Entrevistado, Glebson disse que buscou acalmar Paulo. Assegurou que nada lhe aconteceria e que aquela situação poderia ser o fim de seu desespero, que poderia ser um marco, o início de uma nova vida. Um recomeço. Leio, mais tarde que todos teriam feito uma oração antes de deixar o ônibus.

Apesar de Raphaella explicar que Paulo não tentou assaltar o ônibus, boa parte dos jornais afirma o contrário. Também a mídia ora dizia que o nome do "meliante" era Paulo Roberto, outras, Paulo Alberto, ora 33 anos, ora 35 anos. Detalhes... Não faz mesmo muita diferença... O que importa é que passa mais uma data significativa para as famílias e para o comércio. Possivelmente o Shopping Jardim Guadalupe estava lotado de filhos e filhas se esforçando para homenagear suas mães.

Passa maio. Mais um pouco e é dia dos namorados. Mais um pouco e é  Copa do Mundo. Faço 15 anos de formada, em julho. Depois eleições. Outubro, dia das crianças. Joãos de Santo Cristo, Sandros, Paulos Albertos ou Robertos, mortos e sobreviventes, inventados e reais, bandidos e vítimas, desprotegidos e ameaçadores, todos jogaram pelada em campo de terra, foram crianças, como fui. Paulo pensou na filha, na mãe, na família, sobreviveu pela reza, pela esperança de vida nova. Talvez seja a esperança a grande arma, a verdadeira, a mais humana.

Não é preciso mesmo muito esforço para entender porque um negro, pobre e usuário de drogas pensa em se matar e pensa em chamar atenção da família e da sociedade. Daqui a pouco será dezembro. Quero estar com os meus e desejaria a Paulo, um indulto de natal, para, quem sabe, abraçar a filha. É difícil manter a esperança que o fez se entregar, no presídio de Bangu. Mas, em alguma data do ano, um dia, que ele tenha a chance de diminuir seu desespero, seu medo, sua culpa, sua dor.





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